sábado, 13 de abril de 2024

As ilhas da corrente | 3


Thomas Hudson tomou banho esfregando a cabeça com sabonete e depois lavou-a debaixo do forte jorro de água penetrante do chuveiro. Era um homenzarrão e nu parecia ainda maior do que vestido. Estava bem bronzeado, com o cabelo mais claro, malhado pelo sol. Não tinha engordado nada e viu na balança que continuava com 96 quilos.
Devia ter ido dar um mergulho antes da ducha, pensou. Mas nadei muito hoje de manhã antes de começar o trabalho e agora estou cansado. Não há de faltar ocasião quando os meninos chegarem. E Roger também está aí. Que bom.
Enfiou um calção limpo, uma velha camisa basca, o par de mocassins, saiu, desceu o barranco e cruzou o portão da cerca de tábuas, encontrando-se de chofre sob a claridade ofuscante do coral esbranquiçado de sol da Estrada do Rei.
Pouco adiante, um preto velho de passo empertigado, com casaco de alpaca preta e a calça escura frisada, surgiu de uma das cabanas de madeira crua, ao longo do caminho sombreado por dois coqueiros altos, e tomou a estrada. Quando virou de frente, Thomas Hudson enxergou-lhe o belo rosto negro.
Nos fundos da cabana, uma voz infantil começou a cantar uma antiga modinha inglesa em tom de deboche.

O tio Dudu veio de Nassau
Vender doce pra gente
Eu comi e me fez mal
Não há barriga que aguente…

O tio Dudu virou o belo rosto, parecendo tão triste quanto brabo na brilhante luz da tarde.
Eu te conheço — disse ele. — Não posso te enxergar, mas sei quem és. Vou me queixar pro guarda.
A voz infantil continuou, nítida e alegre:

Ai, Dudu
Ai, Dudu
Safado, danado, malvado Dudu
Teu doce tava estragado.

O guarda vai saber disso — disse o tio Dudu. — O guarda sabe o que ele tem que fazer.
Hoje tem doce estragado, tio Dudu? — perguntou a voz infantil, cuidando para não aparecer.
O homem é perseguido — queixou-se o tio Dudu em altos brados, seguindo adiante. — O homem tem o manto da dignidade arrancado e destruído. Ah, Senhor, perdoai-os porque não sabem o que fazem.
Mais abaixo na Estrada do Rei havia mais cantoria, vinda dos quartos do sobrado do Ponce de León. Um negrinho passou correndo pelo caminho de coral.
Deu uma briga, seu Tom — disse. — Ou troço parecido. Um moço que chegou de iate andou atirando coisas pela janela.
Que coisas, Louis?
De tudo quanto é jeito, seu Tom. O moço atira fora tudo o que encontra. A moça tentou fazer ele parar, ele disse que também atirava ela.
De onde veio o moço?
Lá do norte. Um baita homem. Disse que pode comprar e vender a ilha inteira. Acho que ele vai conseguir um preço bem barato se não parar de fazer bagunça como ele tá fazendo.
O delegado não tomou nenhuma atitude, Louis?
Não tomou, não, senhor, seu Tom. Ninguém mandou chamar o delegado ainda. Mas do modo que a coisa vai, tá na hora de ele vir.
Você anda com eles, Louis? Eu precisava que você me arrumasse umas iscas pra amanhã.
Sim, senhor, eu arrumo isca pro senhor, seu Tom. Não se preocupe. Não saio de perto deles. Contrataram-me pra levar eles pra pescar hoje de manhã, e não arredei mais o pé de junto deles. Só que não foram pescar coisa nenhuma. Não, senhor. A não ser que atirar pratos, xícaras, canecas e cadeiras seja pescar. Toda vez que o seu Bobby traz a conta, ele rasga e chama seu Bobby de gatuno, larápio, canalha e patife.
Parece um moço difícil, Louis.
Seu Tom, ele é o maior desgraçado que já vi, fora de comparação. Pediu pra eu cantar pra eles. O senhor sabe que não canto tão bem como o Josey, mas eu faço o que posso e às vezes canto até melhor do que posso. Eu estava cantando como eu posso. Sabe como é. O senhor já me ouviu cantar. Pois ele só queria que eu cantasse aquele negócio de mamãe-não-quer-ervilha-nem-arroz-nem-azeite-de-dendê. Sem parar. A música é velha, eu cansei e então falei pra ele: “Moço, eu sei música nova. Música da boa. Música bonita. E sei música velha, que nem a da morte do John Jacob Astor no Titanic, quando ele foi ao fundo por causa do iceberg e queria cantar elas em vez dessa nem-ervilha-nem-arroz, se o senhor deixar.” Falei com bons modos, educado que só vendo. Como sei que o senhor falaria. Aí então o tal moço disse: “Olha aqui, seu negrinho cretino e ignorante, eu tenho mais lojas, fábricas e jornais do que o John Jacob Astor tinha penicos pra, o senhor sabe a palavra, dentro, e eu vou te pegar e enfiar a tua cabeça nesses penicos se tu tentares dizer-me o que eu quero escutar.” Aí então a moça que tava com ele disse: “Meu bem, não precisa ser tão grosseiro assim com o rapaz. Eu achei que ele cantou muito bem e gostaria de ouvir alguma música nova.” E o moço falou: “Olha aqui. Você não vai ouvir, e ele vai cantar.” Seu Tom, o cara é um troço. Mas a moça que tava com ele só falou: “Ah, meu bem, como você é difícil.” Seu Tom, ele é mais difícil que motor de locomotiva pra mico de árvore que mal saiu da barriga da macaca. Desculpe se tô falando demais. É que o negócio me enfezou. Ele deixou ela se sentindo muito chateada.
O que é que você vai fazer agora com eles, Louis?
Fui buscar pérolas de caramujo — disse ele.
Tinham parado na sombra de um coqueiro enquanto ele falava. Tirou do bolso um pano muito limpo, desdobrando-o para mostrar meia dúzia de pérolas que não pareciam pérolas, brilhantes, de um rosa nacarado, que às vezes os nativos encontram quando limpam as conchas e que nenhuma mulher que Thomas Hudson conhecia, com exceção da rainha Mary da Inglaterra, jamais valorizava como presente. Naturalmente Thomas Hudson não podia imaginar que conhecesse a rainha Mary, a não ser pelos jornais, fotografias e um artigo publicado no New Yorker, mas o simples fato de gostar de pérolas de caramujo dava-lhe a sensação de que a conhecia melhor que várias pessoas que conhecia há muito tempo. A rainha Mary gosta de pérolas de caramujo, e a ilha hoje à noite vai festejar o aniversário dela, pensou. Mas parecia-lhe que as pérolas não iam contribuir em nada para melhorar a disposição da “moça que tava com o moço”. Além disso, era bem possível que a rainha Mary tivesse dito aquilo só para agradar os súditos das Bahamas.
Foram caminhando até o Ponce de León, e Louis ia dizendo:
A moça começou a chorar, seu Tom. Começou a chorar pra valer. Então eu me ofereci pra ir lá no Roy buscar umas pérolas de caramujo pra ela escolher.
Decerto vão deixá-la muito contente — disse Thomas Hudson. — Se é que ela gosta desse tipo de pérola.
Tomara que sim. Vou levar lá pra cima agora mesmo.
Thomas Hudson entrou no bar, fresco e quase escuro depois da claridade do caminho de coral, e tomou um gim-tônica com um pedaço de casca de lima misturada com umas gotas de angustura. Seu Bobby, parado atrás do balcão, estava com cara de enterro. Quatro rapazes negros jogavam bilhar erguendo de vez em quando a mesa, quando se fazia necessário executar uma carambola difícil. A cantoria no sobrado tinha parado, e o salão se achava muito silencioso, só se ouvindo o estalo das bolas. Dois membros da tripulação do iate ancorado no cais estavam no bar, e, quando os olhos de Thomas Hudson se acostumaram com a luz, o ambiente se encontrava em penumbra, refrescante e agradável. Louis desceu a escada.
O moço tá dormindo — disse. — Deixei as pérolas com a moça que tava com ele. Ela ficou olhando pra elas e chorando.
Notou que os dois marinheiros do iate se entreolharam, mas nenhum deles disse nada. Continuou ali parado, segurando o copo grande com a bebida agradavelmente ácida, saboreando o primeiro gole, que o fez lembrar de Tanga, Mombasa, Lambu e toda aquela costa, dando-lhe uma súbita nostalgia da África. Cá estava ele, instalado na ilha, quando podia andar perfeitamente na África. Que diabo, pensou, sempre posso ir pra lá quando quiser. A gente tem que se sentir bem é no íntimo, pouco importa o lugar onde se está. Você está se saindo muito bem aqui mesmo.
Tom, você gosta mesmo do gosto desse troço? — perguntou-lhe Bobby.
Lógico. Senão não bebia.
Uma vez eu abri uma garrafa por engano e tinha gosto de quinino.
É que contém quinino.
As pessoas sem dúvida são bem loucas — disse Bobby. — Um homem pode beber tudo o que quer. Tem dinheiro pra comprar. A gente imagina que ele queira tirar algum proveito, e ele vai e estraga gim do bom misturando com uma espécie de bebida hindu que contém quinino.
Eu acho o gosto ótimo. Gosto do gosto de quinino com casca de lima. Acho que ele abre, por assim dizer, os poros do estômago ou coisa que valha. Estimula mais que qualquer outro drinque com gim. Dá uma sensação ótima.
Sei. A bebida sempre lhe dá uma sensação ótima. A mim me dá uma sensação horrível. Onde tá o Roger?
Roger era o amigo de Thomas Hudson que tinha uma cabana de pesca na outra ponta da ilha.
Não demora deve aparecer por aí. Vamos jantar com o Johnny Goodner.
Por que é que gente como você, o Roger Davis e o Johnny Goodner, que já andaram por tudo quanto é parte, ficam nessa ilha é que eu não sei.
A ilha é ótima. Você também fica, não fica?
Fico pra ganhar a vida.
Podia ganhar em Nassau.
Nassau, porra. Aqui é mais divertido. Esta ilha é boa pra gente se divertir. Já ganhei muito dinheiro aqui também.
Eu gosto de morar aqui.
Claro — disse Bobby —, eu também gosto. Você sabe disso. Desde que dê pra ganhar a vida. Você vende todos esses quadros que vive pintando?
Agora eles estão vendendo bem.
Gente pagando dinheiro por retratos do tio Dudu. Retratos denegros dentro d’água. Negros em terra. Negros em barcos. Barcos de pescar tartaruga. Barcos de pescar esponja. Tempestades se armando. Trombas-d’água. Escunas indo a pique. Escunas em estaleiros. Tudo o que podiam ver de graça. Isso de fato tem saída?
Lógico que tem. Você faz uma exposição por ano em Nova York, e todo mundo compra.
Em leilão?
Não. O proprietário da galeria que faz a exposição estipula um preço pra cada quadro. O pessoal compra. De vez em quando os museus ficam com um.
Não dava pra você vender pessoalmente?
Claro que dá.
Eu gostaria de comprar uma tromba-d’água — disse Bobby. — Uma tromba-d’água danada de grande. Preta como o diabo. Talvez fosse melhor duas trombas-d’água passando com estrondo pelos baixios, fazendo um barulhão desgraçado. Engolindo toda a água que encontram pela frente e deixando a turma morta de medo. Eu lá na canoa, pescando esponja, sem poder fazer nada. A tromba-d’água arrancando o copo d’água bem da minha mão. Quase levando a canoa pelos ares. Uma tromba-d’água do rabo, inventada por Deus. Quanto custaria um assim? Eu podia pendurar aqui mesmo. Ou então lá em casa, se não deixasse a minha velha apavorada.
Depende do tamanho.
Faz do tamanho que você quiser — pediu Bobby, com largueza. — Um bruto quadro desses nunca é grande que chega. Põe logo três trombas-d’água. Uma vez eu vi três trombas-d’água bem de perto lá pela ilha Andros. Subiam até lá em cima no céu, e uma atirou o barco dum pescador de esponja pelos ares, e quando caiu o motor entrou pelo casco adentro.
Custaria só o preço da tela — disse Thomas Hudson. — Eu cobraria apenas a tela.
Por Deus, então compre uma tela enorme — disse Bobby. — Vamos pintar trombas-d’água que farão o pessoal sair correndo de medo deste bar e ir bem pra longe desta droga de ilha.
Empolgado com a grandeza do projeto, as possibilidades mal começavam a se abrir para ele.
Tom, meu rapaz, você não acha que dava pra pintar um furacão completo? Pintá-lo bem no meio do vendaval, quando já soprou de um lado, acalmou, e está recém-começando do outro? Pondo de tudo, desde os negros chicoteados pela ventania nos coqueiros até os navios arrastados pro topo da ilha? Pondo o hotel grande levado embora. Pondo tudo quanto é coisa cortando o ar feito lança, as carcaças de pelicanos voando como se fizessem parte das rajadas de chuva. Faz o barômetro baixar pra vinte e seis e explode as velocidades do vento. Faz o mar quebrar na marca de dez braças e a lua surgir no meio do temporal… Faz aparecer um maremoto submergindo o que ainda estiver vivo. Faz as mulheres serem arrastadas nuas pro mar, com a roupa arrancada pelo vendaval. Faz os negros mortos boiando por toda a parte e voando pelos ares.
Vai dar uma tela grande pra cachorro — disse Thomas Hudson.
A tela que se dane! — exclamou Bobby. — Eu consigo uma vela mestra de escuna. Vamos pintar os quadros mais danados de grande no mundo e teremos os nossos nomes gravados na história. Até agora você só pintou uns quadrinhos de nada.
Vou dedicar-me às trombas-d’água — prometeu Thomas Hudson.
Ótimo — disse Bobby, detestando ter que interromper o grande projeto. — Isso é o que vale. Mas, palavra, a gente pode fazer uns quadros fabulosos com a experiência que nós dois temos e a prática que você já adquiriu.
Vou começar as trombas-d’água amanhã.
Perfeito — disse Bobby. — Já é um início. Mas, por Deus, eu também gostaria que a gente pintasse aquele furacão. Alguém já pintou o naufrágio do Titanic?
Não numa escala realmente grande.
Pois é. Taí um assunto que sempre empolgou minha imaginação. Você podia captar a frieza do iceberg se afastando depois de bater no navio. Pintar o troço todo no meio de um nevoeiro denso. Incluir todos os detalhes. Pegar aquele sujeito que se meteu no salva-vidas com as mulheres pensando que poderia ajudar porque estava habituado a pilotar o iate dele. Pintá-lo entrando no bote, pisando em cima de uma porção de mulheres em tamanho natural. Ele me fazlembrar esse camarada que está agora aí em cima. Por que você não vai lá e o desenha enquanto ele tá dormindo e depois aproveita pro quadro?
Acho melhor a gente começar pelas trombas-d’água.
Tom, eu quero que você seja um grande pintor — disse Bobby. — Deixe todas essas titicas de galinha de lado. Você está desperdiçando seu talento. Ora, a gente imaginou junto três quadros em menos de meia hora, e eu ainda nem comecei a desenhar de cabeça. E o que é que você andou fazendo até agora? Pintando negro virando tartaruga marinha na praia. Se ao menos fosse uma tartaruga-verde. Não. Uma reles tartaruga marinha. Ou pintando dois negros numa canoa mexendo numa redada de lagostas. Você desperdiça sua vida, rapaz.
Parou para tomar um gole às pressas de um copo que tinha embaixo do balcão.
Este não conta — disse. — Você nunca me viu tomar este. Olhe, Tom, são três grandes quadros. Quadros fabulosos. Universais. Próprios pra serem pendurados no Palácio de Cristal ao lado das obras-primas de todos os tempos. Menos o primeiro, naturalmente, que é um projeto modesto. Mas a gente ainda nem começou. Não há motivo pra não se pintar um que liquide com todos. Que você acha disso?
Tomou outro, rapidíssimo.
Disso o quê?
Debruçou-se sobre o balcão para que os outros não pudessem escutar.
Não tire o corpo fora — disse. — Não se assuste com a magnitude do projeto. Você precisa ter visão, Tom. A gente pode pintar o Fim do Mundo. — Fez uma pausa. — Em tamanho natural.
Com os diabos! — exclamou Thomas Hudson.
Não. Antes dos diabos. Os diabos mal estão começando a aparecer. Os fiéis vão empurrando a igreja deles morro acima, todos falando numa língua que ninguém entende. Tem um demônio que vai fisgando um por um com o forcado e empilhando numa carroça. A turma grita, geme e pede socorro a Jeová. Dá negro caído por tudo quanto é canto, com moreias, lagostas e caranguejos se arrastando no meio e por cima deles. Há uma espécie de escotilha aberta, gigantesca, por onde os diabos atiram os negros, os padres, os fiéis e tudo mais,que somem de vista. A água se levanta em torno da ilha inteira, e as cornudas, os tubarões-sombreiros, os cações e os esqualos rondam por perto, papando os que tentam fugir a nado pra não serem fisgados e jogados na imensa escotilha aberta que solta rolos de fumaça. Os beberrões tomam seus últimos porres e batem com as garrafas nos diabos. Mas os diabos continuam fisgando-os com os forcados, ou então eles se veem engolfados pelo mar bravio, agora cheio de baleias, grandes tubarões-brancos, baleias assassinas e outros peixes enormes, que giram ao redor do lugar em que os tubarões maiores estraçalham o pessoal que caiu n’água. O topo da ilha fica atulhado de cães e gatos, que os diabos também vão fisgando, e os cães se encolhem, aos uivos, e os gatos correm na disparada metendo as garras nos diabos, de pelo arrepiado, e por fim mergulham no mar, nadando de um jeito que você nem queira saber. Às vezes um tubarão abocanha um, e a gente vê o gato indo ao fundo. Mas a maioria consegue escapar.
Começa a sair um calor medonho da escotilha, e os demônios têm que arrastar as pessoas lá pra perto porque quebraram os forcados ao tentar fisgar alguns dos padres. Você e eu estamos parados no centro do quadro, assistindo a tudo na maior calma. Você toma anotações, e eu refresco a garganta, oferecendo-lhe de quando em quando um trago. Uma vez que outra, um diabo, todo molhado de suor, passa rente por nós puxando um padre que luta pra cravar os dedos na areia e não ser jogado dentro da escotilha, clamando por Jeová, e o diabo então diz: ‘Com licença, seu Tom. Com licença, seu Bobby. Tô muito ocupado hoje.’
Eu ofereço um trago ao diabo quando ele volta suado e encardido, pra buscar outro padre, e ele responde: ‘Não, obrigado, seu Bobby. Nunca toco em bebida quando estou trabalhando.’
Pode dar um quadro infernal, se a gente conseguir pôr todo esse movimento e grandeza nele, Tom.”
Creio que por hoje fizemos praticamente tudo o que é possível fazer em matéria de plano geral.
Por Deus, acho que você tem razão — disse Bobby. — Esse plano geral até me deixou com sede.
Houve um cara chamado Bosch que pintava num estilo muito parecido com esse.
Aquele dos motores de explosão.
Não. Hieronymus Bosch. Da antiga. Bom à beça. Pieter Bruegel também trabalhava nesse gênero.
Também da antiga?
Da antiga à beça. Muito bom. Você ia gostar.
Ah, que joça — disse Bobby. — Ninguém da antiga se compara conosco. Além do mais, o mundo ainda não se acabou, portanto como é que ele podia entender do assunto mais do que nós?
Vai ser difícil pra burro fazer melhor que ele.
Não acredito de jeito nenhum — disse Bobby. — Nós temos aí um quadro que liquidava com o negócio dele.
Que tal mais um destes?
Ah é, porra. Já ia esquecendo que isto aqui é um bar. Deus salve a rainha, Tom. Também esquecemos a data de hoje. Tome aqui, beba um por minha conta e brindemos a ela.
Serviu-se de um copinho de rum e entregou a Thomas Hudson a garrafa amarela de Gim Booth’s, limas num prato, uma faca e uma garrafa de Água Tônica Hindu da Schweppes.
Prepare você mesmo essa droga de drinque. Pro inferno com esses drinques cheios de frescuras.
Depois que Thomas Hudson aprontou a bebida, sacudindo dentro umas gotas de bíter da garrafa cuja rolha tinha uma pena de gaivota, ergueu o copo e olhou para o outro canto do bar.
O que é que vocês dois estão tomando? Digam o nome, se não for complicado.
— “Cabeça de Cachorro” — respondeu um dos marinheiros.
Então, “Cabeça de Cachorro” — disse Bobby, estendendo o braço para o barril de gelo e entregando-lhes as duas garrafas geladas de cerveja. — Não tem mais copo. Os beberrões passaram o dia inteiro jogando copos pela janela. Tá todo mundo de bebida pronta? Senhores, à rainha. Tenho a impressão de que ela não liga muito pra esta ilha e até acho que nem se daria bem aqui. Mas à rainha, senhores. Que Deus a abençoe.
Todos beberam à saúde dela.
Deve ser uma grande mulher — disse Bobby. — Meio empertigada demais pro meu gosto. Sempre tive um fraco pela rainha Alexandra. Bonitona. Mas vamos procurar honrar o aniversário da rainha. Esta ilha pode ser pequena, mas é patriótica. Teve um sujeito daqui que foi na última guerra e perdeu um braço. Não dá pra ser mais patriótico do que isso.
Aniversário de quem que ele disse que era? — perguntou um dos marinheiros.
Da rainha Mary da Inglaterra — explicou Bobby. — A mãe do atual rei imperador.
Não foi a tal que deu nome ao Queen Mary? — perguntou o outro.
Tom — disse Bobby. — O próximo brinde nós dois vamos fazer sozinhos.

Ernest Hemingway, in As ilhas da corrente

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