segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O azarão | 11


Nosso plano era ir atrás dele rápido. Não adiantava esperar uma semana ou duas. Se esperássemos, a vontade de tirar a limpo aquela história com o cara ia passar.
Sem chance de isso acontecer.
Descobrimos que o tal Bruce Patterson estava saindo com outra garota havia cerca de um mês e enganava minha irmã, aparecendo por aqui. Era um tapa na cara de todos nós, que o deixávamos entrar em casa, enquanto ele andava por aí com alguma vagabunda.
Será que devemos acabar com ele? — perguntei a Rube, mas ele só olhou para mim, com ar de riso.
Tá falando sério? Olhe o seu tamanho. Você é tipo um chihuahua e o Patterson é uma porra de um armário. Você tem ideia do que aquele cara faria a você? — Bem, pensei que talvez nós dois.
Também não sou grande coisa. — Foi a resposta curta de Rube ao meu comentário. — Claro, tenho uma porra de uma barba no rosto, mas Bruce pode matar nós dois.
É. Você tem razão.
O que aconteceu em seguida foi inesperado.
Ouvimos uma batida à porta que era mais como se a estivessem arranhando, e, quando a abri, meu ex-melhor amigo Greg estava parado lá.
Posso entrar? — perguntou.
O que é que você acha? Abri a porta de tela, e ele entrou em casa, pouco depois de lançar um olhar ao Steve, que, como sempre, estava sentado de cara amarrada na varanda.
Ei, lobisomem! — Greg cumprimentou Rube dentro de casa, e Rube respondeu ameaçando jogá-lo para fora.
Desculpe — falou, e eu o levei para o quarto. Ele sentou debaixo da janela, apoiado na parede.
Em silêncio.
Bem — falei, sentando na cama —, se não se importa, o que diabos traz você aqui? — Preciso de ajuda. — Foi a resposta rápida e sincera. Passou a mão pelo cabelo e pude ver a caspa caindo. Greg sempre teve um pouco de caspa. Ele se divertia quando deixava cair na carteira da escola.
Ajuda com o quê? — continuei perguntando.
Dinheiro.
Quanto? Trezentos.
Trezentos! Caramba, mas que diabos você andou fazendo ultimamente? — Ah, nem pergunte. Só... — Contorceu um pouco o rosto. — Você tem? — Cara... trezentos... sei lá.
Fui até o meu pedaço do tapete e tirei o que estava escondido debaixo dele. Oitenta contos.
Bem, tenho oitenta aqui. — Peguei o caderno onde anotava minhas economias e vi que tinha cento e trinta lá. — Então, tenho duzentos e dez ao todo. É só o que posso fazer.
Ah, droga, cara.
Sentei ao lado dele no chão, apoiado na cama, e disse: — Só me diga para o que é, tá bem? Ele hesitou.
Se não disser, não dou o dinheiro. — Era mentira, e nós dois sabíamos disso. Nós dois sabíamos que eu ia dar o dinheiro a Greg e nem ia pedir de volta. Era assim que funcionava. Mas ele me devia, pelo menos, isso. Tinha que me dizer onde meu dinheiro ia parar.
Ah. — Desistiu. — É pra um dos meus colegas, Dale. Conhece? Dale Perry.
Sim, eu o conhecia bem. Era o tipo de cara que eu odiava porque andava por aí se achando o fodão aonde quer que fosse, e eu odiava esse cara. Na aula de relações comerciais, no ano passado (uma matéria que eu nunca deveria ter escolhido), ele levou a régua de metal, aqueceu-a no aquecedor e então a encostou na minha orelha, me deixando com uma queimadura horrorosa. Esse era Dale Perry. Também estava naquele grupo grande que batia papo com as garotas bonitas no futebol, no outro dia.
Sim, conheço o cara — falei com calma.
Então, bem, alguns dos colegas mais velhos dele precisavam de alguém pra pegar heroína pra eles. Valia trezentos contos.
Heroína? Claro que eu sabia o que era heroína, mas pensei em tornar a coisa toda um pouco mais difícil pro Greg. Afinal, estava dando pro cara cada centavo que eu tinha.
Agora não ia ter dinheiro para comprar um aparelho de som ou coisa assim. Não ia ter mais o dinheiro que ganhei trabalhando duro com meu pai, nas últimas semanas. Tudo aquilo ia pela descarga porque um ex-melhor amigo me procurou, sabendo que eu era o único cara que não ia deixá-lo na mão. Nenhum dos novos amigos ia ajudar, mas o antigo ia.
É esquisito.
Você não acha? Não que as antigas amizades sejam melhores. É só que você conhece melhor a pessoa e sabe que ela não se importa se você estiver agindo feito um perfeito idiota puxa-saco.
Sabe que você faria o mesmo por ela. Eu sabia que Greg faria o mesmo por mim, se fosse o contrário.
Então, sim.
Heroína? — perguntei. — Do que você está falando? — Você sabe — respondeu ele. Deixei ele escapar com essa.
É. Eu sei.
De leve — continuou ele —, mas um bocado dela. Eram uns dez caras e todos deram a grana, mas eram preguiçosos demais pra ir lá e pegar o negócio. — Ele escorregou um pouco mais na parede. — Peguei o troço sem problemas, mas as coisas pioraram porque tive que esconder durante a noite.
Aah. -Joguei a cabeça para trás e comecei a rir. Tinha certeza de que sabia agora exatamente o que havia acontecido.
É, isso mesmo. — Assentiu Greg. — A coroa achou tudo debaixo da cama e o coroa jogou no fogo. Estavam assinando minha sentença de morte... não consigo acreditar que o coroa jogou tudo no fogo, caramba.
Agora eu quase chorava de tanto rir, porque podia ver o coroa do Greg: um grosseirão magro e baixinho, com cabelos cacheados, xingando feito louco e jogando tudo no fogo. Para falar a verdade, Greg também riu, ainda que ficasse repetindo: — Não tem graça, Cam. Não tem graça.
Tinha. E foi por isso que ele conseguiu o dinheiro.
O que o salvou foi que contei a história pro Rube, e ele desencavou os outros noventa contos de que Greg precisava, embora ameaçasse acabar com ele, se não devolvesse rápido. No fim, a solução foi eu pagar pro Rube o dinheiro que ganharia com papai no mês seguinte, e todo mundo ficaria satisfeito. Depois, Greg ia devolver tudo para mim.
Quanto a Greg, dava para ver que o rosto dele estava menos tenso. Já não parecia tão exausto quando o dinheiro foi parar em sua mão.
No quarto ao lado, Sarah estava deitada na cama, na pior.
Passamos por ela ao voltar para o quintal, onde Rube, Greg e eu chutamos para o gol contra a cerca. Nós nos revezávamos no gol. Foi minha ideia (sobretudo, por causa do sonho da noite anterior), e, na verdade, eu só torcia para não acabar com o nariz sangrando. Mas Rebecca Conlon não estava no quintal, estava? Eu achava que estava bastante seguro.
Claro, o cachorro do vizinho começou a latir e os papagaios enlouqueceram.
Para completar, Rube ligou para os colegas.
E a conversa foi: — Alô?
Alô, Simon? É o Rube.
Ruben. E aí?
Tudo bem. Quer vir pra cá?
Por que não? Parece boa ideia.
Chama o Cheese e o Jeff.
Tá certo.
Tchau.
Tchau.
Quando chegaram, jogamos pra valer.
Sem parar, chutamos a bola contra a cerca, aproveitando todo o tempo antes de mamãe e papai voltarem para casa. Você devia ter visto. Bam. Bam. A bola acertava em cheio dos dois lados, e o som ecoava por toda parte, seguido de gritos e palavrões.
Meu time era Jeff, Greg e eu, e, na verdade, estávamos ganhando, embora fôssemos menores e mais fracos que o time do Rube. Era a nossa fome de bola.
Estava quatro a dois, quando o cachorro do vizinho parou de latir.
Para! Para! — gritei, quando percebi. — Vocês ouviram isso?
Isso o quê?
O cachorro.
É. Ele parou de latir.
Subi na cerca e olhei para o outro lado. Você não vai acreditar no que vi.
O cachorro estava morto.
Caramba! Acho que ele morreu — falei, virando o rosto para olhar os outros.
O quê?!
Estou falando sério. Venham dar uma olhada.
Rube subiu na cerca, perto de mim, e teve que concordar.
Caramba, acho que ele está certo. — Riu para os outros. — Acho que fizemos o pobrezinho ter um ataque cardíaco.
Tem certeza?
Ou um derrame.
Ah, não — lamentei. — O que foi que fizemos?
Que tipo de cachorro é esse?
Rube já tinha aguentado o suficiente.
E eu que vou saber?! — gritou para Cheese. — Acho que é um... um...
Lulu da Pomerânia— respondi por ele.
O que diabos é um Lulu da Pomerânia?
Você sabe — explicou Cheese para os outros —, é uma dessas coisinhas fofas com cara de rato... acho que ele latiu até não aguentar mais.
Até os papagaios na gaiola lançaram um olhar de tristeza ao cachorro.
A gente tem que fazer alguma coisa — falei pro Rube.
O quê? Boca a boca nele?
Olhe, ele está tremendo.
Ah, que lindo, hein? Pulei a cerca, tirei a camisa de flanela e enrolei o cachorro. Rube também pulou e os outros caras olhavam por cima da cerca enquanto dávamos tapinhas no cachorro fofinho com cara de rato, imaginando se ele realmente ia morrer.
Depois de uns quinze minutos, o vizinho voltou para casa. Era um cara de uns 50 anos com um bafo pior do que o de todos nós juntos. Para falar a verdade, ele até que se controlou, pois correu, nos xingou um pouco, pegou o Lulu da Pomerânia (que, por sinal, se chamava Miffy) e o levou para o veterinário.
Você acha que ele vai sobreviver? — Foi o que nos perguntamos ao voltar para casa.
Cara, não sei.
Aos poucos, todos foram embora. Greg foi o último.
Caramba. — Balançou a cabeça na saída. — Tinha me esquecido de como eram as coisas por aqui.
Os velhos tempos, hein?
É. — Fez que sim com a cabeça. — O caos.
Com certeza.
Tinha sido realmente como nos velhos tempos, mas eu sabia que não adiantava achar que ia continuar assim. Nós dois sabíamos que, da próxima vez que ele viesse, seria para devolver uma parte ou todo o dinheiro. Era assim que as coisas funcionavam.
A noite, algo que eu sabia que viria veio.
Veio para dizer à mamãe e ao papai que eles não podiam controlar a mim e ao Rube, e como o Rube era o único que tinha dinheiro sobrando, foi ele quem pagou a conta do veterinário do cara.
Por sinal, Miffy, o Lulu da Pomerânia, estava passando bem. Só teve um ataque cardíaco fraquinho. Pobre cachorrinho com cara de rato.
Mas isso foi a gota d'água para a nossa mãe.
Ela nos fez sentar à mesa da cozinha — e deu voltas ao nosso redor, gritando e dizendo coisas nas quais você não ia acreditar. Até esfregou a colher de pau debaixo do nosso nariz, apesar de não bater na gente desde que eu tinha dez anos. Para ser sincero, parecia que ia esfregar aquela coisa na nossa cabeça.
Por que vocês insistem em fazer isso?! — gritou para nós. — Deixando um ao outro de olho roxo, fazendo a droga do cachorro do vizinho enfartar. E uma desgraça... Tenho vergonha de vocês. De novo!
E papai só ficou sentado num canto, em silêncio total. Ele não ousava falar nada com medo de apanhar também.
No fim, ela ficou maluca de verdade, pegou o lixo orgânico da pia da cozinha e, em vez de levar lá para fora e jogar na lixeira correta, jogou tudo no chão, catou e jogou de novo, dessa vez, nos meus pés.
Vocês são uns animais! — gritou ainda mais alto que antes. Então, falou o que sempre parecia magoar mais: — Cresçam!
Não preciso nem dizer que o Rube e eu limpamos a bagunça, levamos para fora e ficamos por lá. Não ousávamos entrar.
Da janela do quarto, Sarah olhou para nós e sorriu, balançando a cabeça em meio ao sofrimento. Deu uma risada, o que nos fez rir um pouco também. E fez Rube voltar à sua decisão, dizendo: — Ainda vamos pegar o Patterson. Não tenha dúvida disso.
Temos que pegar — concordei.
Depois de um tempo, pensei sobre o que acontecera durante o dia, porque agora eu devia ao Rube metade da conta do veterinário também. As coisas estavam indo de mal a pior, falando sério.
Maldito Lulu da Pomerânia— falei.
Hum. — Rube bufou. — Um Lulu da Pomerânia com coração fraco. Isso só podia acontecer com a gente, hein?

Tem um cara na minha frente, numa estrada poeirenta, ao nascer do sol.
Ele olha para mim.
Eu olho para ele.
Estamos de pé, separados por uns dez metros, talvez, até que, enfim, resolvo quebrar o silêncio.
Digo: — E aí?
E aí, o quê? — É a resposta dele. Ele veste uma túnica, coça a barba e tenta tirar uma pedra de uma das sandálias.
Bem, não sei. — Penso para responder. — E quem diabos é você, pra começo de conversa?
Ele sorri.
Dá uma gargalhada.
De pé.
Depois de se ajeitar, repete a pergunta e responde: — Quem diabos sou eu? — Um risinho curto. — Sou Cristo.
Cristo? Você existe mesmo?
Claro que existo, porra.
Decido testá-lo. — Então, quem sou eu?
Não me interessa quem você é. — Ele caminha pela estrada até mim, ainda tentando tirar a pedrinha da sandália. — Droga de sandália. — Arrasta o pé; então, contínua. — Na verdade, me interessa o que você é.
E o que eu sou?
Infeliz.
É. — Encolho os ombros, concordando com ele.
Eu posso ajudar.
Continua falando, e fico esperando Ele citar o versículo tradicional que todos os professores de religião citam na peregrinação anual à nossa escola. Não é o que Ele faz.
Em vez disso, estende uma garrafa com líquido vermelho e move a mão dizendo “Beba tudo” para que eu beba.
O que é isso? — pergunto.
Vinho.
Sério?
Não. Na verdade, é groselha. Você é muito novo para beber.
Aah, seu estraga-prazeres.
Ei, não ponha a culpa em mim. Não tenho nada a ver com isso, falando sério. Foi o coroa quem não me deixou lhe dar bebida de verdade. Ponha a culpa Nele.
Está bem, está bem... E, por falar nisso, qual é o problema Dele?
Ah, anda sob muita pressão ultimamente.
Por causa do Oriente Médio?
É, voltaram a brigar. — Ele chega mais perto e cochicha. — E, cá entre nós, faltou pouco pra Ele acabar com tudo na semana passada.
Com o quê? O mundo?
É.
Cristo Todo-Poderoso!
A expressão no rosto de Cristo é de decepção, ao ouvir as minhas palavras.
Ah, claro. Foi mal — digo. — Não é legal falar assim, não é?
Sem problema.
Preste atenção. — Jesus decide que é hora de falar sério. — Vim, na verdade, para lhe dar isto.
Tira alguma coisa do bolso da túnica e eu pergunto: — O que é?
Ora, é só uma pomada. — Ele a entrega para mim. — Para o sangramento no nariz.
Ah, legal. Obrigado.

Markus Zusac, in O Azarão

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