E
aí, de repente, o filme rolava de novo. Como a maioria das notícias,
esta veio pelo telefone, via Jon.
– É
– ele me disse –, recomeçamos a produção amanhã.
– Eu
não entendo. Achava que o filme estava morto.
– A
Firepower vendeu alguns bens. Uma filmoteca e alguns hotéis que eles
tinham na Europa. Em cima disso ainda conseguiram arrancar um grande
empréstimo de um grupo italiano. Dizem que o dinheiro desse grupo
italiano é meio sujo, mas... é dinheiro. De qualquer modo, eu
gostaria que você e Sarah viessem pra filmagem amanhã.
– Não
sei...
– É
amanhã à noite...
– Tudo
bem, legal... Quando e onde?
Sarah
e eu nos sentávamos num reservado. Era sexta à noite e havia no ar
uma boa sensação. Estávamos ali sentados quando Rick Talbot entrou
e sentou-se conosco. Ali estava ele em nossa barraca. Queria apenas
um café. Eu o vira muitas vezes na TV, criticando filmes com seu
opositor, Kirby Hudson. Eram muito bons no que faziam, e muitas vezes
se emocionavam com a coisa. Faziam avaliações interessantes, e
embora outros houvessem tentado copiar o formato, eles eram muito
superiores aos concorrentes.
Rick
Talbot parecia muito mais jovem do que na TV. Também parecia mais
retraído, quase tímido.
– Vemos
você sempre – disse Sarah.
– Obrigado...
– Escuta
– perguntei –, que é que te aborrece mais em Kirby Hudson?
– O
dedo dele... Quando ele aponta aquele dedo.
Entrou
Francine Bowers. Resvalou para dentro do reservado. Nós a
cumprimentamos. Ela conhecia Rick Talbot. Trazia uma pequena
prancheta de anotações.
– Escuta,
Hank, quero saber mais um pouco sobre Jane. Índia, certo?
– Meio
índia, meio irlandesa.
– Por
que bebia?
– Era
um lugar onde se esconder, e também uma forma de suicídio.
– Você
algum dia levou ela a algum lugar, além de um bar?
– Levei
ela a um jogo de bêisebol, uma vez. Ao Wrigley Field, no tempo em
que os Angels de L.A. jogavam na Liga da Costa do Pacífico.
– Que
aconteceu?
– Nós
dois ficamos muito bêbados. Ela ficou fula comigo e saiu correndo do
parque. Eu dirigi horas procurando ela. Quando voltei ao quarto, ela
estava desmaiada na cama.
– Como
é que ela falava? Aos berros?
– Ficava
calada durante horas. Então, de repente, enlouquecia e se punha a
gritar, xingar e atirar coisas. A princípio eu não reagia. Depois
ela me dava nos nervos. Eu andava de um lado para outro, de um lado
para outro, berrando e devolvendo os xingamentos. Isso continuava por
talvez uns vinte minutos, depois a gente se aquietava, bebia mais um
pouco e recomeçava. Vivíamos sendo despejados. Fomos expulsos de
tantos lugares que não consigo me lembrar de todos. Uma vez,
procurando uma nova casa, batemos numa porta. A porta se abriu e lá
estava a senhoria que acabava de expulsar a gente. Ela nos viu, ficou
pálida, gritou e bateu a porta...
– Jane
morreu? – perguntou Kirby Hudson.
– Há
muito tempo. Estão todos mortos. Todos com quem eu bebia.
– Que
é que mantém você de pé?
– Gosto
de bater à máquina. Me emociona.
– E
eu mantenho ele numa dieta de vitaminas e baixa caloria, sem carne
vermelha – disse-lhe Sarah.
– Ainda
bebe? – perguntou Rick.
– Sobretudo
quando escrevo, ou quando aparecem visitas. Não me sinto bem com as
pessoas, e depois de beber bastante elas parecem desaparecer.
– Me
fale mais sobre Jane – pediu Francine.
– Bem,
ela dormia com um terço debaixo do travesseiro...
– Ia
à igreja?
– Em
horas estranhas ia ao que chamava de “missa alka seltzer”. Acho
que começava às oito e meia da manhã e durava cerca de uma hora.
Ela detestava a missa das dez horas, que muitas vezes durava duas
horas.
– Ela
ia à confissão?
– Nunca
perguntei...
– Pode
me dizer alguma coisa sobre ela que explique o seu caráter?
– Só
que, apesar de todas as coisas aparentemente terríveis que fazia, os
xingamentos, a loucura, o amor à garrafa, sempre fazia tudo com uma
certa classe. Me agradaria pensar que aprendi algumas coisinhas sobre
classe com ela...
– Quero
te agradecer por essas coisas, acho que podem ajudar.
– Esteja
à vontade.
Francine
e sua prancheta se foram.
– Acho
que nunca me diverti tanto num set – disse Rick Talbot.
– Que
quer dizer, Rick? – perguntou Sarah.
– É
uma sensação no ar. Às vezes, em filmes de baixo orçamento, a
gente sente essa sensação, essa sensação de carnaval. Mas sinto
mais aqui do que nunca...
Falava
sério. Os olhos brilhavam, ele sorria com verdadeira alegria.
Pedi
outra rodada de bebidas.
– Pra
mim, só café – ele disse.
Chegou
a nova rodada e Rick disse:
– Vejam!
Lá está Sesteenov!
– Quem?
– eu perguntei.
– O
cara que fez aquele filme maravilhoso sobre cemitérios de bichinhos
de estimação. Ei, Sesteenov!
Sesteenov
aproximou-se.
– Por
favor, sente-se – pedi.
Ele
escorregou para dentro do reservado.
– Quer
beber alguma coisa? – perguntei.
– Oh,
não...
– Vejam
– disse Rick Talbot –, lá está Illiantovitch!
Eu
conhecia Illiantovitch. Ele fizera uns filmes darks malucos, tendo
como tema principal a violência da vida vencida pela coragem das
pessoas. Mas fazia isso bem, rugindo de dentro da escuridão.
Era
um homem muito alto, de pescoço torto e olhos alucinados. Os olhos
alucinados não se desgrudavam da gente, olhando a gente. Era meio
embaraçoso.
Nós
nos afastamos para deixá-lo entrar. O reservado estava cheio.
– Gostaria
de um drinque? – perguntei.
– Uma
vodca dupla – ele disse.
Gostei
disso, acenei para o garçom.
– Vodca
dupla – ele disse ao garçom, fixando-o com seus olhos alucinados.
O garçom correu a cumprir seu dever.
– É
uma noite sensacional – disse Rick.
Eu
adorava a falta de sofisticação dele. Era preciso coragem, quando
se estava por cima, para dizer que gostava do que fazia, que se
divertia com o que fazia.
Illiantovitch
recebeu sua vodca dupla, emborcou-a de vez.
Rick
Talbot fazia perguntas a todo mundo, incluindo Sarah. Não havia
nenhuma sensação de competição ou inveja no reservado. A sensação
era de total bem-estar.
Aí
entrou Jon Pinchot. Aproximou-se do reservado, fez uma ligeira
curvatura, sorrindo:
– Vamos
rodar daqui a pouco, espero. Venho chamar todos...
– Obrigado,
Jon...
Ele
se afastou.
– É
um bom diretor – disse Rick Talbot –, mas eu gostaria de saber
por que você escolheu ele.
– Foi
ele que me escolheu...
– É
mesmo?
– É...
e eu posso te contar uma história que explicará por que é um bom
diretor, e por que eu gosto dele. Mas fica aqui entre nós...
– Manda
– disse Rick.
– Aqui
entre nós?
– É
claro...
Curvei-me
para a frente no reservado e contei a história de Jon com a
motosserra e o dedo mindinho.
– Isso
aconteceu mesmo? – perguntou Rick.
– Aconteceu.
Aqui entre nós.
– Claro…
(Eu
sabia: nada é aqui entre nós, uma vez que a gente conta.)
Enquanto
isso, Illiantovitch matara duas vodcas duplas e sentava-se
contemplando uma terceira. Continuava me fitando. Depois puxou a
carteira, retirou um sebento cartão de apresentação e me entregou.
O cartão tinha os quatro cantos gastos e estava mole e preto de
sujeira. Desistira de ser um cartão de apresentação. Illiantovitch
parecia um gênio emporcalhado. Eu o admirei por isso. Era um sujeito
sem pretensão. Ele agarrou a vodca dupla e virou-a garganta abaixo.
Depois
me olhou, densamente. Mas os olhos negros me eram demais. Tive de
desviar os meus. Chamei o garçom para reabastecer. Depois tornei a
olhar para Illiantovitch.
– Você
é o melhor – eu disse. – Depois de você, não tem mais nada.
– Não,
não é assim – ele disse. – VOCÊ é o melhor! Eu te dou meu
cartão! No cartão está a hora da PROJEÇÃO DE MEU NOVO FILME!
VOCÊ DEVE IR VER!
– Claro,
baby – eu disse, e tirei minha carteira e guardei cuidadosamente o
cartão.
– Está
uma noite daquelas – disse Rick Talbot.
Falaram-se
mais algumas bobagens, e apareceu Jon Pinchot.
– Estamos
quase prontos pra rodar. Vocês podem vir agora, pra eu arranjar
lugares pra vocês?
Todos
nos levantamos para segui-lo, exceto Illiantovitch. Ele afundou no
reservado.
– Foda-se!
Vou tomar mais vodcas duplas! Vão vocês!
Aquele
bastardo roubara-me uma ou duas páginas. Acenou para o garçom,
puxou um cigarro, meteu-o entre os lábios, acendeu o isqueiro e
queimou um pedaço do nariz.
Bastardo.
Nós
avançamos noite adentro.
Charles Bukowski, in Hollywood
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