Foi
o caso que um homenzinho, recém-aparecido na cidade, veio à casa do
Meu Amigo, por questão de vida e morte, pedir providências. Meu
Amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de
cavalaria e delegado de polícia. Por tudo, talvez, costumava
afirmar: — “A vida de um ser humano, entre outros seres
humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor
raciocínio.” Meu Amigo sendo fatalista.
Na
data e hora, estava-se em seu fundo de quintal, exercitando ao alvo,
com carabinas e revólveres, revezadamente. Meu Amigo, a bom seguro
que, no mundo, ninguém, jamais, atirou quanto ele tão bem — no
agudo da pontaria e rapidez em sacar arma; gastava nisso, por dia,
caixas de balas. Estava justamente especulando: — “Só quem
entendia de tudo eram os gregos. A vida tem poucas possibilidades.”
Fatalista como uma louça, o Meu Amigo. Sucedeu nesse comenos que o
vieram chamar, que o homenzinho o procurava.
O
qual, vendo-se que caipira, ar e traje. Dava-se de entre
vinte-e-muitos e trinta anos; devia de ter bem menos, portanto.
Miúdo, moído. Mas concreto como uma anta, e carregado o rosto,
gravado, tão submetido, o coitado; as mãos calosas, de enxadachim.
Meu Amigo, mandando-lhe sentar e esperar, continuou, baixo, a
conversa; fio que, apenas, para poder melhor observar o outro, vez a
vez, com o rabo-do-olho, aprontando-lhe a avaliação. Do que disse:
— “Se o destino são componentes consecutivas — além das
circunstâncias gerais de pessoa, tempo e lugar... e o karma...”
Ponto é que o Meu Amigo existia, muito; não se fornecia somente
figura fabulável, entenda-se. O homenzinho se sentara na ponta da
cadeira, os pés e joelhos juntos, segurando com as duas mãos o
chapéu; tudo limpinho pobre.
Convidado
a dizer-se, declinou que de nome José de Tal, mas, com perdão, por
apelido Zé Centeralfe. Sentia-se que ele era um sujeito já arrumado
em si; nem estava muito nervoso. Embrulhava-se a falar, por
gravidade: — “Sou homem de muita lei... Tenho um primo
oficial-de-justiça... Mas não me abrange socorro... Sou muito
amante da ordem...” Meu Amigo murmurou mais ou menos: — “Não
estamos debaixo da lei, mas da graça...” — cuido que citasse
epístola de São Paulo; e receei que ele não simpatizasse com Zé
Centeralfe. Mas, o homenzinho, posto em cruz comprida, e porque se
achasse rebaixado, quase desonrado — e ameaçado — viera dar
parte. Apanhou o chapéu, que caíra ao chão, com a mão o espanava.
Representou:
que era casado, em face do civil e da igreja, sem filhos, morador no
arraial do Pai-do-Padre. Vivia tão bem, com a mulher, que tirava
divertimento do comum e no trabalho não compunha desgosto. Mas, de
mandado do mal, se deu que foi infernar lá um desordeiro, vindiço,
se engraçou desbrioso com a mulher, olhou para ela com olho
quente... — “Qual é o nome?” — Meu Amigo o
interrompeu; ele seguia biograficamente os valentões do Sul do
Estado. — “É um Herculinão, cujo sobrenome Socó...” —
explicou o homenzinho. Meu Amigo voltou-se, rosnou: — “Horripilante
badameco...” Por certo esse Herculinão Socó desmerecesse a
mínima simpatia humana, ao contrário, por exemplo, do jovem
Joãozinho do Cabo-Verde, que se famigerara das duas bandas da
divisa, mas, ao conhecer pessoalmente Meu Amigo — ... “um
homem de lealdade tão ilustre”... — resolveu passar-se
definitivo para o lado paulista, a fim de com ele jamais ter de
ver-se em confusão. Sem saber o quê, o homenzinho Zé Centeralfe
aprovava com a cabeça. Relatava.
Só
para atalhar discórdias, prudenciara; sempre seria melhor levar à
paciência. E se humilhara, a menos não poder. Mas, o outro, rufião
biltre, não tinha emenda, se desbragava, não cedia desse
atrevimento. — “Ele não tem estatutos. Quem vai arrazoar com
homem de má cabeça? Para isso não tenho cara...” Só se para
o vir-às-mãos, para alguma injusta desgraça. Nem podia dar
querela: a marca de autoridade, no Pai-do-Padre, se estava em falta.
A mulher não tinha mais como botar os pés fora da porta, que o
homem surgia para desusar os olhos nela, para a desaforar, com essas
propostas. — “Somente a situação empiorava, por culpa de
hirsúcia daquele homem alheio...” Curvara-se, sempre de
meia-esguelha, a ponto que parecia cair da cadeira. Meu Amigo
animou-o: — “Quanta crista!” — e aí ele depositou no
colo o chapéu, e direito se sentou.
Sucedendo-se
os sustos e vexames, não acharam outro meio. Ele e a mulher
decidiram se mudar. — “Sendo para a pobreza da gente um
cortado e penoso. Afora as saudades de se sair do Pai-do-Padre; a
gente era de muita estimação lá.” Mas, para considerar Deus,
e não traspassar a lei, o jeito era. — “Larguei para o
arraial do Amparo...” Arranjaram no Amparo uma casinha, uma
roça, uma horta. Mas, o homem, o nominoso, não tardou em aparecer,
sempre no malfazer, naquela sécia. Se arranchou. Sua embirração
transfazia um danado de poder, todos dele tomavam medo. E foi a custo
ainda maior, e quase à escondida, que José Centeralfe e a esposa
conseguiram fugir de lá também, tendo pesar.
Por
conta daquele. — “Cujalma!” — proferiu Meu Amigo,
meticuloso indo ajeitar uma carabina, que se exibia, oblíqua, na
parede. Pois a sala — de tão repleta de: rifles, pistolas,
espingardas — semelhava o que nunca se vê. — “Esta leva
longe...” — disse, e riu, um tanto malignamente. Tornou a
sentar-se, porém, sorrindo agradado para o José Centeralfe.
Mas
mais o homenzinho se ensombrara.
Fosse
chorar?
Falou:
— “Viajamos para cá, e ele, nos rastros, lastimando a gente.
É peta. Não me perdeu de vistas. Adonde vou, o homem me
atravessa... Tenho de tomar sentido, para não entestar com ele.”
Durou numa pausa. Daí, pela primeira vez, alçou a voz: — “Terá
o jus disso, o que passa das marcas? É réu? É para se citar? É um
homem de trapaças, eu sei. Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar
pelos seus direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a
lei...” Tanto dito, calou-se, em silêncio médio; pedia, com
olhos de cachorro.
Meu
Amigo fez uma coisa. Virou, por metade, o rosto, para encarar aquela
carabina. Sério, carregando o minuto. Só. Sem voz. Mais nela
afirmando a vista, enquanto umas quantas vezes rabeava com os olhos,
na direção do homenzinho; em ato, chamando-o a que também a
olhasse, como que ao puxar à lição. Mas o outro ainda não
entendia que ele acenasse em alguma coisa. Sem tanto, que deu: — “E
eu o que faço?” — na direta perguntação.
Surdeava
o Meu Amigo, pato-mudo. Soprou nos dedos. Sempre em fito, na arma, na
parede, e remirando o outro — ao tempo que — tanto quanto tanto.
De feito. O homenzinho se arregalou — de desperto. Desde que desde,
ele entendesse, a ver o que para valer: a chave do jogo. Entendeu.
Disse: — “Ah.” E se riu: às razões e consequências.
Donde bem, se levantou; podia portar por fé.
Sem
mais perplexidades, se ia. Agradecia, reespiritado, com sua força de
seu santo. Ia a sair. Meu Amigo só ainda perguntou: — “Quer
café... ou uma cachacinha?” E o outro, de sisório: — “Seja,
que aceito... despois.” Outras palavras não trocaram. Meu
Amigo apertou-lhe a mão. Sim, se foi, o José Centeralfe.
Meu
amigo, tão valedor, causavelmente, de vá-à-garra o deixava?
Comentou: — “Coronha ou cano...” O homenzinho, tão
perecível, um fagamicho, o mofino — era para esforço tutânico?
Meu Amigo sendo o dono do caos. Porém, revistando sua arma, se o
tambor se achava cheio. Disse: — “Sigamos o nosso carecido
Aquiles...” Pois se pois.
Seguimo-lo.
Ele
ia, e muito.
Tinha-se
de dobrar o passo.
E
— de repente e súbito — precipitou-se a ocasião: lá vinha,
fatalmente, o outro, o Herculinão, descompassante. Meu Amigo soprou
um semi-espirro, canino, conforme seu vezo e uso, em essas, em
cheirando a pólvoras.
E...
foi: fogo, com rapidez angélica: e o falecido Herculinão, trapuz,
já arriado lá, já com algo entre os próprios e infra-humanos
olhos, lá nele — tapando o olho-da-rua. Não há como o curso de
uma bala; e — como és bela e fugaz, vida!
Três,
porém, haviam tirado arma, e dois tiros tinham-se ouvido? Só o
Herculinão não teve tempo. Com outra bala, no coração. Homem
lento.
O
Centeralfe se explicou: — “Este iscariotes...”
Meu
Amigo, não. Disse um “Oh” polissilábico, sem despesas de
emoção. Disse: — “Tudo não é escrito e previsto? Hoje, o
deste homem. Os gregos...” Disse: — “Mas... a
necessidade tem mãos de bronze...” Disse: — “Resistência
à prisão, constatada...” Dissera um “não”,
metafisicado.
Sem
repiques nem rebates, providenciava a remoção do Herculinão, com
presteza, para sua competente cova.
E
convidava-nos a almoçar, ao Zé Centeralfe, principalmente.
Meditava,
o Meu Amigo. Disse: — “Esta nossa Terra é inabitada.
Prova-se, isto...” — pontuante.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
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