Quando
a feminina sentou junto de Meio da Noite, o negro musculou entre as
pernas e ela temeu que o próprio jacaré fosse ali. Não podiam
entender seus vocábulos distintos, o negro sabia poucas palavras
abaeté, mas ela entoou o espanto de lhe parecer que os tamanhos do
guerreiro eram mais ferozes, sua folia haveria de ser descontrolada.
Ele, sem muito ter comparado nem ponderado sobre outros tipos de
guerreiro, mais pequenos ou mais estreitos, mais macios ou mais
ásperos, verticais ou dobrados para alguma direcção, viu a
feminina abrir as pernas e esperou. Era certa paisagem e não deixava
de ter também um tamanho gigante porque, para ele, ignorar e
aprender aumentava os tamanhos, assemelhava à maravilha. Aprendia a
feminina e hesitava pela magnitude do assombro, tinha a impressão de
ser importante agarrar como se agarrava uma ave toda feita para ir
embora. Só se poderia fazer numa tocaia suave que demitisse a presa
de qualquer susto. Meio da Noite demitia o susto de Dois Amanhãs.
Era gentil. O feio negro era gentil. E a ave toda feita para ir
embora ficou. A sua ansiedade acreditaria em tudo. Se houvesse de
viver uma população pequena na fortuna das femininas, entre as
pernas, naquele instante, o guerreiro julgaria normal. Se houvesse de
descer ali, entre as pernas, um igapó ou uma praia, e algum pouco de
mar ficasse banhando continuamente, justificando a humidade, a
frescura, o cheiro que por vezes já sentira no esconso da maloca, o
guerreiro julgaria normal. O que a feminina ali tivesse, entre as
pernas, seria sempre normal, e sua musculação de guerreiro, até
por força maior, euforia pura, jamais a recusaria. Meio da Noite
estava intenso e estava grato. Dois Amanhãs trazia o sentido da
vida. Ele pensou. Perguntou se poderia deitar a boca. Oferecer de
imediato o caminho do espírito. Ver com as abençoadas partes
canoras. Ela não entendeu. Ele deitou de qualquer modo. A feminina
desceu a cabeça para trás, semicerrou os olhos, via nada. Era ao
melhor abandono. Por isso, quando ele a quis beijar, não lembrou de
temores ou repulsas. Beijou de volta sem se bastar. O guerreiro pesou
no seu corpo inteiro e amainaram comuns, entendidos. Haviam afeiçoado
à folia. Dois Amanhãs sentiu assim. Que afeiçoaram à folia, como
se a tivessem aperfeiçoado, melhorado, inventado gestos que outros
antes deles não tivessem conhecido. Tão intensos e tão gratos, o
cansaço demorou-os um pouco pelo chão até que novamente o
guerreiro musculasse e acontecesse. Estavam como encarcerados naquele
sentimento. Sairiam dele com dificuldade. Não queriam sair.
Amainados várias vezes, escutavam a mata, procuravam na alta
folhagem formas curiosas que a luz criava. Animais que eram apenas o
recorte casual nas árvores, feito pelo sol claríssimo que subira ao
alto das ilhas dos três mares. De vez em quando, sem saberem muito
bem por que razão, ambos riam. Talvez fosse de encontrarem algum
animal na luz que parecesse torcido, ridículo. Talvez fosse por não
saberem entoar acerca da surpresa de se sentirem para depois da
alegria. Bem depois. Estavam felizes. Eram inexperientes para tão
grande sentimento.
Quando
levantaram para regressar à aldeia, acanhados embora, o negro quis
tocar o braço, a mão, o ombro da feminina. Andavam, sem cessar o
toque. Urgiam em brincar. E riam sempre. Por vezes, ela corria para
distante. Ele a caçava novamente e mudavam os braços um sobre o
outro. Depois, apenas o toque na mão, uma certa carícia no ombro ou
nas costas. Andavam e andar era caçar e ser caçado. Querer caçar,
querer ser caçado. Predavam-se mutuamente como duas feras que
esfaimavam por graça.
Ao
abeirar a cerca da aldeia litoral, apartaram. A feminina envergonhou.
O guerreiro envergonhou. Entraram de olhos pelo chão para não serem
explicados pela simples ostentação da cumplicidade. Olharam o chão
e a comunidade entoava cumprimentos já nada matinais e certas
instruções para as tarefas a atender. Fazer assim foi toda a espera
de que seriam capazes. Um e outro haviam entendido que necessitavam
de regressar ao encontro. Haveriam de ser uma dupla. Por mais
escondida fosse a cumplicidade, toda a comunidade a pressentiu. O
guerreiro negro e a feminina jovem estavam amorosos. As folias da
fertilidade fediam pelo terreiro. Os fogos cozinhavam para as
refeições, mas não conseguiam apagar o quanto fediam de folia
aqueles dois. A comunidade sentia alegria. Noticiavam uns aos outros
e alegravam uns aos outros. Mesmo que persistissem as dúvidas, a
curiosidade de saber se o animal negro negociaria com a feminina
alguma aberrante forma de família. Algum resultado protuberante,
inviável, pouco social, sem serventia ou sem ânimo. Talvez tivessem
filhos emocionados, destituídos de palavras, se era verdade que ele
e a feminina ainda nem poderiam entoar e entender. O feio negro
aparentava gentileza e estava em paz desde que chegara. Era bravo e
embravecia nas tarefas e na amizade com Honra. Se o ovo da feminina
houvesse de eclodir um filho azarado, o filho de um negócio até
perigoso, começaria por ser um modo de tristeza. Depois, talvez
pudessem chefiar para embora dali, talvez até pudessem matar. O que
matasse os abaeté era feito para ser matado também. A comunidade
noticiava a cumplicidade de Meio da Noite e Dois Amanhãs e preferia
acreditar que Pai Todo tinha razão. O negro era alguém. Talvez lhe
restasse a cor de acordos antigos com feras já esquecidas em seu
físico e sua memória, mas maturava no esplendor. Soava. O negro
soava. Sabia as primeiras palavras abaeté. Em pouco tempo estaria
inteiro dentro da bênção da Verdadeiríssima Divindade, e seus
filhos seriam lúcidos, valentes, belos, férteis, carregados de
espírito. Todos o repetiam para mais alegrar, que seus filhos seriam
lúcidos, belos, férteis, carregados de espírito, e haveriam de
normalizar por completo junto ao igarapé, educados para a mata como
toda a ancestralidade, como toda a comunidade, como era certo e
benigno. Como era bom. A Voz Coral tinha prometido. Estava a ser
evidente. O negro era evidência da promessa feita.
*
Os
feios caminharam ao areal para as tarefas nas pirogas e Meio da Noite
contou:
mexi
na feminina. Ela foi gentil. Sagrado Honra, eu sinto que a feminina
quer ser para mim, porque eu quero ser para ela.
O
guerreiro branco apressou o passo. Era insuportável que Dois Amanhãs
preferisse o negro. Era insuportável que o negro tivesse melhor
folia do que a sua. Honra adiantou o passo e entoou:
as
femininas são demoradas. Ela só vai entender o que quer mais tarde.
És precipitado e arrogante. Dois Amanhãs ainda hoje me olhou e
outros guerreiros a buscam. Somos todos parte da sua alegria.
O
negro temeu, por um instante, que Honra estivesse certo. Depois, a
simples visão do sol passando as copas das árvores o fez sorrir. O
negro respondeu:
és
meu amigo, sagrado Honra, quero que te alegres com minha alegria.
O
feio branco deitou corrida pela mata fora. Correndo
desaustinadamente, o ar fustigando o rosto melhor secou suas
lágrimas, as que não foi capaz de conter.
Havia
pedido à feminina que mexesse no corpo do negro. Era agora amargo
que a feminina pudesse cair de dupla e terminar seus encontros
livres, pela abundância do desejo. Talvez Honra tivesse pressentido
o que seria essa entrega amorosa e não estivesse atento. Talvez
atentasse agora. Não sabia. Podia ser que lhe parecesse perder o
sabor e o gesto da feminina, bem como perdia um pouco a companhia de
seu amigo. Quanto tempo teria Meio da Noite para abdicar em favor de
suas tocaias, seus diálogos, seus espantos, suas ideias de matança.
Quanto tempo seria o negro capaz de passar com ele ao invés de
deitar sobre a feminina, aprender com ela o lado mais junto da vida.
Muito
do que entoavam um ao outro era apenas sonoro, sem sentido. Partes
canoras em certo susto, entoavam à pressa e não se escutavam por
completo. Enredados nos sentimentos e obrigados à língua branca, o
que pronunciavam podia ser tudo ao contrário. Honra assim o pensou.
Meio da Noite assim o pensou. Estavam à deriva naquele desajuste.
Escavavam a piroga a fazer cálculos a todos os significados. O feio
branco circunspecto, avaro, violento. O feio negro ligeiro, molengo
para a tarefa, de sorriso furtivo, um sorriso que o próprio espírito
lhe roubava aos lábios. O negro escondia o rosto. Era cheio de
tiques. O branco notava. Era torto.
Perguntaram:
uma
araponga. É uma araponga.
O
canto da ave abeirou. Jamais deixariam de escutar. Era uma lição de
intensidade. Nenhuma outra ave se pronunciaria depois. A mata
estabelecia prioridades e os feios calaram. Eram pouco na gestão
exuberante da mata. Valia mais que calassem por um instante. A
araponga fez seu império. Depois, em sua tarefa voou.
*
Então,
Pé de Urutago ausentou e seu corpo grande foi para dentro da mata
com alguma pressa. Os guerreiros nas pirogas não perguntavam. Os
abaeté seguiam suas tarefas por complexidades, eram opacos, não
havia necessidade de questionar ninguém, e os que soam moviam-se por
lucidez, eram bons na mata que era boa. Contudo, Honra mais levantou
os olhos para o negro e o negro já havia levantado os olhos para o
grande guerreiro sob as sombras das árvores. Poderia ser que Honra
lesse no negro alguma intuição, que o negro fosse uma ciência
capaz de noticiar, não sabia muito bem como pensar. Honra soube
subitamente que o céu pesaria e se abriria uma tempestade. O vento
era levantado num vocábulo mínimo. Era abeirando e o sol ia cobrir.
Honra berrou:
vai
haver tempestade. Vão nascer nuvens de fogo para acender o clarão.
O
negro respondeu:
Pé
de Urutago está no cimo das copas.
Os
outros guerreiros alertaram. Era ainda um dia limpo. Nada se via.
Quando, por uma palavra dita, anoiteceu e o fogo começou no alto
lugar das nuvens. Honra berrou:
irmão
negro, sinto que é ao nosso alcance o osso do relâmpago. Eu sinto
ou eu sei. O clarão virá até junto de nossas mãos. Vê, Meio da
Noite, vê. Se puderes, agarra. Será nossa toda a salvação.
Começaram
a subir as pirogas atracadas. O primeiro mar haveria de ficar
revolto. Nas piores tempestades, ele engolia até pedaços das ilhas.
Mordia na mata e navegava para longe tudo quanto se soltasse. Algumas
árvores soltavam e todas as que houvessem tombado e fossem dormentes
pelo chão flutuavam em conflito sem parar. O primeiro mar tomava
para longe muito do que pertencia ao órgão vital onde o começo
conservava seu sentido, e talvez o fosse oferecer a lugares apenas
silvestres, sem bênção alguma, à míngua de uma graça, de
beleza, da gentileza boa dos abaeté. Eles as pirogas e as amarravam
para que as águas, se viessem por ali, não as soubessem roubar.
Enquanto isso, escutavam-se os fogos abeirando, acendendo a caminho
das ilhas, atormentados por suas combustões violentas. Pairavam já
à distância. O céu vermelho à distância pairava mais e mais
perto. E os bandos se afugentavam dali. Os bichos que podiam deixavam
as ilhas para se salvarem daquele desafio. Honra entoava:
vê
o clarão. O clarão que deita.
Era
tão brilhante, tão rápido como acendia e se recolhia
imediatamente, que podia ser apenas um modo de partir o próprio
olho. Meio da Noite pensava que não poderia haver caça de algo
assim. O osso do relâmpago era impossível para a mão de qualquer
guerreiro. Ele viu e pensou que os abaeté haviam intuído uma
ilusão. Uma ideia impossível para viverem em direcção ao
impossível.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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