O
pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca,
uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar
que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se
coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha
fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, e não atinava com
a solução do enigma.
O
melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela
janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei
essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei
aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito,
deixou novamente entrar o bichinho, e ai fiquei eu a noite toda a
cavar o mistério, sem explicá-lo.
Amanheceu
chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a manhã era límpida
e azul, e apesar disso deixei-me ficar, não menos que no terceiro
dia, e no quarto, até o fim da semana. Manhãs bonitas, frescas,
convidativas; lá embaixo a família a chamar-me, e a noiva, e o
parlamento, e eu sem acudir a coisa nenhuma, enlevado ao pé da minha
Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não
havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e moral.
Queria-lhe,
é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e
coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem, e ela
creio que ainda se sentia melhor, ao pé de mim.
E
isto na Tijuca. Uma simples égloga. Dona Eusébia vigiava-nos, mas
pouco; temperava a necessidade com a convivência. A filha, nessa
primeira explosão da natureza, entregava-me a alma em flor.
– O
senhor desce amanhã? disse-me ela no sábado.
– Pretendo.
– Não
desça.
Não
desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: – Bem-aventurados
os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das damas. Com
efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia, – o primeiro
que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou
arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga
uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que ideias me vagavam
pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os
braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo,
e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que
não podias mentir ao teu sangue, à tua origem...
Dona
Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos
apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até à janela. Eugênia
sentou-se a consertar uma das tranças. Que dissimulação graciosa!
que arte infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso
natural, vivo, não estudado, natural como o apetite, natural como o
sono. Tanto melhor! Dona Eusébia não suspeitou nada.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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