Juízo Final (1536-1541), de Michelangelo
Três
condições contribuem para a produção, em nossa sociedade, de
objetos de arte forjada. São elas: (1) a remuneração considerável
dos artistas por seu trabalho e o consequente estabelecimento do
artista como um profissional; (2) a crítica de arte; e (3) as
escolas de arte.
No
período em que a arte era una e somente a arte religiosa era
apreciada e estimulada, enquanto que a arte que se caracterizava pelo
desprendimento quanto a quaisquer assuntos não o era, não havia
obras de arte forjadas; ou, se havia, como estavam sujeitas ao
julgamento do povo, eram descartadas imediatamente. Mas assim que a
divisão se realizou e as pessoas das classes privilegiadas
reconheceram que qualquer arte era boa desde que garantisse prazer, e
essa arte começou a ser mais bem remunerada do que qualquer outra
atividade pública, de pronto uma grande quantidade de pessoas se
devotou a essa atividade e ela adquiriu um caráter totalmente
diferente do que tinha antes, e se tornou uma profissão.
E
logo que se tornou uma profissão, sua maior e mais preciosa
propriedade — a sinceridade — tornou-se bastante enfraquecida e
foi parcialmente destruída.
O
artista profissional vive de sua arte e precisa, portanto, inventar
constantemente assuntos para suas obras — e ele os inventa. Fica
claro que deve haver diferença entre obras de arte criadas por
pessoas como os profetas hebreus, os autores dos Salmos, Francisco de
Assis, o autor da Ilíada e da Odisseia e os autores de todos os
contos, lendas e canções populares — os quais não só não
recebiam remuneração alguma por suas obras, como nem mesmo ligavam
seu nome a elas — e a arte que passou a ser produzida por poetas,
dramaturgos e músicos da corte, que recebiam honrarias e remuneração
por isso, e depois por artistas oficiais que viviam de seu ofício e
recebiam remuneração de jornalistas, editores, empresários e
mediadores em geral que se situam entre os artistas e o público
urbano — os consumidores de arte.
Esse
profissionalismo é a primeira condição para a disseminação de
arte forjada, falsa.
A
segunda condição é a recém-surgida crítica de arte — isto é,
a avaliação da arte feita não por todos e, acima de tudo, não por
pessoas comuns, mas por indivíduos instruídos, e portanto
pervertidos e ao mesmo tempo autoconfiantes.
Um
amigo meu, falando da atitude dos críticos em relação aos
artistas, a definiu, meio de brincadeira, deste modo: críticos são
os burros que discutem os inteligentes. Essa definição, ainda que
unilateral, imprecisa e grosseira, contém uma verdade parcial e é
incomparavelmente mais correta do que a definição segundo a qual os
críticos são os que explicam as obras de arte.
“Os
críticos explicam.” Mas o que eles explicam?
Um
artista, se for um artista verdadeiro, transmitiu a outros, em sua
obra, o sentimento que vivenciou: o que há para explicar aí?
Se
a obra é boa como arte, o sentimento expresso pelo artista é
transmitido a outros, seja a obra moral, seja imoral. Se ele é
transmitido a outros, estes o experimentam e o experimentam, além
disso, cada um à sua própria maneira, e toda interpretação é
supérflua. Se a obra não contagia os outros, nenhuma interpretação
vai torná-la contagiosa. Obras artísticas não podem ser
interpretadas. Se fosse possível para o artista explicar em palavras
o que ele quis dizer, ele o teria dito em palavras. Mas ele o disse
com sua arte porque era impossível transmitir o sentimento que
experimentou de qualquer outra maneira. A interpretação de um
trabalho artístico em palavras somente prova que o intérprete é
incapaz de ser contagiado pela arte. Isso é fato; e, por mais
estranho que pareça, são as pessoas menos capazes de ser
contagiadas pela arte que sempre foram verdadeiros críticos. Na
maior parte dos casos, são aquelas que têm facilidade para
escrever, bem instruídas, inteligentes, mas com uma capacidade de
ser contagiadas pela arte completamente pervertida ou atrofiada. E,
portanto, com seus textos, esses críticos sempre contribuíram
significativamente, e ainda contribuem, para deturpar o gosto do
público que os lê e acredita neles.
A
crítica não poderia nem pode existir em uma sociedade em que a arte
não está dividida em duas e é, portanto, avaliada pela visão de
mundo religiosa do povo. A crítica somente pôde emergir na arte das
altas camadas que não reconhecem a consciência religiosa do seu
tempo.
A
arte do povo tem um critério interno definitivo e indiscutível: a
consciência religiosa. Isso não ocorre na arte das altas classes,
e, portanto, seus amantes devem inevitavelmente se apegar a algum
critério exterior. Para eles, esse critério é, como foi dito por
um esteta inglês, o gosto dos “homens mais bem nutridos”, ou
homens mais instruídos — isto é, a autoridade das pessoas
consideradas instruídas e a sua tradição. Essa tradição, porém,
é errônea, tanto porque os julgamentos dos “homens mais bem
nutridos” frequentemente estão errados, como também porque os
julgamentos que foram uma vez corretos deixam de sê-lo com o tempo.
Todavia os críticos, mesmo não tendo base para seus julgamentos,
nunca cessam de repeti-los. Os escritores de tragédia da Antiguidade
foram na época considerados bons, e os críticos ainda os consideram
assim. Dante foi considerado um grande poeta, Rafael, um grande
pintor, Bach, um grande músico — e os críticos, não tendo padrão
pelo qual distinguir a arte boa da má, não apenas consideram esses
artistas ainda grandes, como também consideram que todos os seus
trabalhos são grandes obras, dignas de imitação. Nada contribuiu e
contribui tanto para a perversão da arte quanto essas autoridades
definidas pela crítica. Um jovem produz uma obra de arte,
expressando nela, em seu modo particular, como faz qualquer artista,
os sentimentos que experimentou. A maior parte das pessoas é
contagiada pelo sentimento do artista, e seu trabalho se torna
conhecido. E então os críticos, discutindo esse artista, começam a
dizer que sua obra não é má, porém ele ainda não é nenhum
Dante, nenhum Shakespeare, ou Goethe, ou Beethoven do último
período, ou Rafael. E o jovem artista, ouvindo essas opiniões,
começa a imitar aqueles que foram colocados como exemplos para ele,
e produz obras, além de fracas, forjadas e falsas.
Assim,
por exemplo, nosso Pushkin escreve seus poemas curtos, seu Eugeniy
Onegin, seu Ciganos, suas lendas — trabalhos de mérito
variado, mas todos obras de verdadeira arte. Influenciado então pela
falsa crítica louvando Shakespeare, ele escreve Boris Godunov,
uma obra fria e cerebral, e os críticos elogiam-na, chamam-na
exemplar, e imitações da imitação começam a aparecer: Minin,
de Ostrovsky, Czar Boris, de Aleksei Konstantinovich Tolstói,
e outras. Tais imitações de imitações enchem todas as literaturas
com obras sem valor e totalmente desnecessárias. O maior dano dos
críticos é que, por serem homens sem a capacidade de ser
contagiados pela arte (e todos os críticos são assim; se não
carecessem dessa capacidade, não poderiam empreender a interpretação
impossível de obras artísticas), dão muita atenção e fazem
elogios a obras cerebrais e inventadas, e apontam-nas como modelos
dignos de imitação. Eis porque, sempre autoconfiantes, não cansam
de elogiar os trágicos gregos, Dante, Tasso, Milton, Shakespeare,
Goethe (quase tudo) e, entre os novos, Zola, Ibsen, a música do
último período de Beethoven, Wagner. Para justificar sua apreciação
dessas obras, inventam teorias inteiras (a famosa teoria da beleza é
uma delas), e não só as pessoas obtusas criam suas obras
estritamente de acordo com essas teorias, como, muitas vezes, até
mesmo verdadeiros artistas se forçam a cumpri-las.
Toda
obra falsa elogiada pelos críticos é uma porta pela qual irrompem
os hipócritas da arte.
É
somente graças aos críticos, que hoje louvam as obras grosseiras,
selvagens e muitas vezes sem sentido, para nós, dos antigos gregos:
Sófocles, Eurípedes, Ésquilo e especialmente Aristófanes; ou os
modernos: Dante, Tasso, Milton, Shakespeare; na pintura, tudo de
Rafael, tudo de Michelangelo, com o seu absurdo Juízo final; na
música, tudo de Bach e tudo de Beethoven, inclusive seu último
período — é somente graças a esses críticos que em nossa época,
também, os Ibsens, Maeterlincks, Verlaines, Mallarmés, Puvis de
Chavannes, Klingers, Böcklins, Stucks, Schneiders e, na música, os
Wagners, Liszts, Berliozes, Brahmses, Richard Strausses et al.
e toda a enorme massa de imitadores desses imitadores se tornaram
possíveis.
A
melhor ilustração da influência danosa da crítica pode ser a sua
atitude em relação a Beethoven. Entre seus incontáveis trabalhos,
muitas vezes escritos às pressas, sob encomenda, existem também
algumas obras artísticas, apesar da artificialidade de sua forma;
mas ele fica surdo e começa a escrever obras totalmente planejadas,
inacabadas e, portanto, muitas vezes sem sentido e musicalmente
incompreensíveis. Eu sei que os músicos podem imaginar sons de modo
bastante vívido e quase ouvem o que leem; mas sons imaginários não
podem nunca substituir os reais, e todo compositor tem que ouvir sua
obra para colocar um toque final nela. Beethoven não podia ouvir e,
portanto, não podia pôr o toque final em suas obras, e assim ele
entregou ao mundo o que vem a ser algaravias artísticas. Contudo a
crítica, tendo-o uma vez reconhecido como grande compositor,
encontra uma satisfação especial em agarrar-se justamente a essas
obras mais feias, procurando belezas extraordinárias nelas. E, para
justificar os próprios elogios, a crítica perverte a própria noção
de arte musical, atribuindo a ela a propriedade de retratar o que ela
não pode retratar; e aparecem os imitadores, uma hoste incontável
de imitadores desses ensaios de obras de arte criados pelo surdo
Beethoven.
E
então aparece Wagner, que antes de mais nada elogia Beethoven em
seus artigos de crítica, precisamente o Beethoven do último
período, e estabelece uma conexão entre a sua música e a teoria
mística de Schopenhauer (tão absurda quanto a própria música de
Beethoven), a de que a música é a expressão da vontade — não
expressões particulares da vontade em vários estágios de
objetificação, mas a sua essência mesma. E então, seguindo a sua
teoria, ele escreve sua própria música, em conexão com o sistema
ainda mais falso da unidade de todas as artes. E depois de Wagner
aparecem mais imitadores, ainda mais distanciados da arte: os
Brahmses, os Richard Strausses e outros.
Essas
são as consequências da crítica. Mas a terceira condição da
perversão da arte — escolas que ensinam arte — é quase
igualmente danosa.
Logo
que a arte se tornou arte para as classes ricas, e não para todo o
povo, ela se transformou em uma profissão, e, assim,
desenvolveram-se métodos para ensiná-la. Aqueles que escolheram a
arte como atividade profissional começaram a estudar esses métodos
e, dessa forma, apareceram as escolas: aulas de retórica ou
literatura em escolas públicas, academias de pintura, conservatórios
de música, escolas de arte dramática.
Nessas
escolas está sendo ensinada a arte. Mas, se ela consiste em
transmitir a outros o sentimento especial vivenciado por um artista,
como isso pode ser ensinado nas escolas?
Nenhuma
escola pode invocar sentimentos em um homem e menos ainda poderia
ensiná-lo aquilo que é a essência da arte: a manifestação de
sentimento de sua característica peculiar.
A
única coisa que uma escola pode ensinar é como transmitir
sentimentos experimentados por outros artistas, da forma como eles os
transmitiram. É precisamente isso que é ensinado em escolas de
arte, e essa instrução, além de não contribuir para a
disseminação da arte verdadeira, uma vez que propaga falsificações
artísticas, priva o povo, mais do que qualquer coisa, da capacidade
de entender a arte verdadeira.
Na
arte literária, as pessoas que não têm o desejo de dizer coisa
alguma adquirem a destreza de escrever uma redação de várias
páginas sobre um tópico no qual nunca haviam pensado, e de
escrevê-la de tal forma que lembre o texto de autores reconhecidos
como famosos. Isso é ensinado nas escolas públicas.
Na
pintura, a principal instrução consiste em desenhar e pintar a vida
e a natureza, em especial o corpo nu — precisamente o que uma
pessoa nunca vê e o que um homem ocupado com arte de verdade quase
nunca tem que retratar —, e desenhá-las, e pintá-las da mesma
maneira como os mestres antigos fizeram. A composição dos quadros é
ensinada dando temas semelhantes àqueles tratados por reconhecidas
celebridades do passado. Assim também, nas escolas de arte
dramática, os estudantes aprendem a recitar monólogos tal como
foram recitados por atores trágicos considerados famosos. Da mesma
forma na música. Toda a teoria da música não passa de uma
incoerente repetição dos métodos que reconhecidos mestres de
composição utilizaram para criar sua própria música.
Eu
já citei em outro lugar uma frase profunda sobre a arte do pintor
russo Briullov, mas não posso me impedir de citá-la novamente,
porque ela mostra melhor do que qualquer outra coisa o que pode e o
que não pode ser ensinado nas escolas. Corrigindo o esboço de um
aluno, Briullov o retocou um pouquinho aqui e ali, e aquele
esboço pobre e morto de repente ganhou vida. “Nossa, o senhor só
o retocou um pouquinho e tudo mudou”, disse um dos alunos.
“A arte começa onde esse pouquinho começa”, disse Briullov,
expressando nessas palavras o traço mais característico da arte.
Essa observação vale para todas as artes, mas sua correção é
especialmente perceptível nas apresentações musicais. Para que uma
apresentação musical seja artística, seja arte — isto é, para
que produza contágio —, três condições principais devem ser
observadas: o diapasão, a duração e a intensidade do som (além
dessas há muitas outras condições necessárias para a perfeição
musical: que a transição de som para som seja abrupta ou mesclada,
que o som aumente ou diminua gradualmente, que ele combine com um som
e não com outro, que o som tenha este e não aquele timbre, e muitas
coisas mais). Uma apresentação musical é arte e pode contagiar
somente quando o som não é mais alto nem mais baixo do que devia
ser — isto é, deve ser tocado o centro infinitamente pequeno da
nota requerida — e ele deve ter exatamente a duração necessária,
e a sua intensidade não deve ser mais forte nem mais fraca do que a
necessária. O menor desvio na altura do som para um lado ou para
outro, o menor alongamento ou encurtamento da duração e a menor
intensificação ou enfraquecimento do som, em comparação com o que
é exigido, destrói a perfeição da apresentação e,
consequentemente, da capacidade de contágio da obra. De forma que
somente podemos ser contagiados pela arte da música — algo que
pode parecer tão simples e fácil de obter — se o intérprete
encontrar aqueles momentos infinitamente pequenos necessários para a
perfeição musical. É o mesmo em todas as artes. Na pintura: um
pouquinho mais claro, um pouquinho mais escuro, um pouquinho mais
alto, mais baixo, para a direita, para a esquerda. Na arte dramática:
um pouquinho mais fraco ou mais forte na entonação, um pouquinho
cedo demais ou tarde demais. Na poesia: um pouquinho demais que é
dito, ou não dito, ou exagerado, e não há contágio. Esse contágio
é conseguido somente quando e na medida em que o artista encontra
aqueles momentos infinitamente pequenos dos quais é composta a obra
de arte. E é absolutamente impossível ensinar alguém a encontrar,
de qualquer maneira exterior, esses momentos infinitamente pequenos:
eles são encontrados somente quando um homem se entrega ao seu
sentimento. Nenhuma instrução pode fazer um dançarino seguir o
ritmo exato da música, ou um cantor ou violinista tocar o centro
infinitesimal de uma nota, ou um desenhista traçar a única linha
necessária, entre todas as linhas possíveis, ou um poeta encontrar
o único arranjo necessário das únicas palavras necessárias.
Somente o sentimento pode fazer isso. E, portanto, as escolas podem
ensinar o que é necessário para criar algo que lembre arte, mas
nunca a própria arte.
A
instrução de escola para onde aquele pouquinho começa —
e, portanto, onde a arte começa.
Habituar
as pessoas àquilo que lembra arte as torna desacostumadas a
compreender a verdadeira arte. Como consequência, não há pessoas
mais obtusas do que aquelas que frequentaram escolas de arte
profissionais e se saíram muito bem nelas. Essas escolas produzem
uma hipocrisia de arte exatamente do mesmo tipo da hipocrisia
religiosa produzida pelas escolas que educam pastores e vários tipos
de professores religiosos. Tal como é impossível educar um homem na
escola para ser um professor religioso, também é impossível
ensinar um homem a ser um artista.
Assim,
as escolas de arte são duplamente perniciosas: primeiro, por
destruir a capacidade de produzir arte real nas pessoas que têm a
desventura de frequentá-las durante sete ou oito anos de estudo. Em
segundo lugar, porque elas multiplicam por quantidades enormes aquela
arte forjada que perverte o gosto das massas e da qual o mundo está
cheio a ponto de transbordar. Para que aqueles que nasceram artistas
aprendessem os métodos dos vários tipos de arte que foram
desenvolvidos por seus precedentes, deveria haver aulas de desenho,
música e canto em todas as escolas primárias, e, tendo completado
os estudos, cada estudante que tivesse um dom poderia aperfeiçoar-se
independentemente na sua arte, fazendo uso dos modelos existentes e
disponíveis a todos.
Estas
três condições — o profissionalismo dos artistas, a crítica e
as escolas de arte — são as que levaram à presente situação em
que a maior parte das pessoas não tem absolutamente nenhuma
compreensão do que seja arte e confundem com arte as falsificações
mais grosseiras dela.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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