terça-feira, 22 de agosto de 2023

O que é arte? | Capítulo XII

Juízo Final (1536-1541), de Michelangelo

Três condições contribuem para a produção, em nossa sociedade, de objetos de arte forjada. São elas: (1) a remuneração considerável dos artistas por seu trabalho e o consequente estabelecimento do artista como um profissional; (2) a crítica de arte; e (3) as escolas de arte.
No período em que a arte era una e somente a arte religiosa era apreciada e estimulada, enquanto que a arte que se caracterizava pelo desprendimento quanto a quaisquer assuntos não o era, não havia obras de arte forjadas; ou, se havia, como estavam sujeitas ao julgamento do povo, eram descartadas imediatamente. Mas assim que a divisão se realizou e as pessoas das classes privilegiadas reconheceram que qualquer arte era boa desde que garantisse prazer, e essa arte começou a ser mais bem remunerada do que qualquer outra atividade pública, de pronto uma grande quantidade de pessoas se devotou a essa atividade e ela adquiriu um caráter totalmente diferente do que tinha antes, e se tornou uma profissão.
E logo que se tornou uma profissão, sua maior e mais preciosa propriedade — a sinceridade — tornou-se bastante enfraquecida e foi parcialmente destruída.
O artista profissional vive de sua arte e precisa, portanto, inventar constantemente assuntos para suas obras — e ele os inventa. Fica claro que deve haver diferença entre obras de arte criadas por pessoas como os profetas hebreus, os autores dos Salmos, Francisco de Assis, o autor da Ilíada e da Odisseia e os autores de todos os contos, lendas e canções populares — os quais não só não recebiam remuneração alguma por suas obras, como nem mesmo ligavam seu nome a elas — e a arte que passou a ser produzida por poetas, dramaturgos e músicos da corte, que recebiam honrarias e remuneração por isso, e depois por artistas oficiais que viviam de seu ofício e recebiam remuneração de jornalistas, editores, empresários e mediadores em geral que se situam entre os artistas e o público urbano — os consumidores de arte.
Esse profissionalismo é a primeira condição para a disseminação de arte forjada, falsa.
A segunda condição é a recém-surgida crítica de arte — isto é, a avaliação da arte feita não por todos e, acima de tudo, não por pessoas comuns, mas por indivíduos instruídos, e portanto pervertidos e ao mesmo tempo autoconfiantes.
Um amigo meu, falando da atitude dos críticos em relação aos artistas, a definiu, meio de brincadeira, deste modo: críticos são os burros que discutem os inteligentes. Essa definição, ainda que unilateral, imprecisa e grosseira, contém uma verdade parcial e é incomparavelmente mais correta do que a definição segundo a qual os críticos são os que explicam as obras de arte.
Os críticos explicam.” Mas o que eles explicam?
Um artista, se for um artista verdadeiro, transmitiu a outros, em sua obra, o sentimento que vivenciou: o que há para explicar aí?
Se a obra é boa como arte, o sentimento expresso pelo artista é transmitido a outros, seja a obra moral, seja imoral. Se ele é transmitido a outros, estes o experimentam e o experimentam, além disso, cada um à sua própria maneira, e toda interpretação é supérflua. Se a obra não contagia os outros, nenhuma interpretação vai torná-la contagiosa. Obras artísticas não podem ser interpretadas. Se fosse possível para o artista explicar em palavras o que ele quis dizer, ele o teria dito em palavras. Mas ele o disse com sua arte porque era impossível transmitir o sentimento que experimentou de qualquer outra maneira. A interpretação de um trabalho artístico em palavras somente prova que o intérprete é incapaz de ser contagiado pela arte. Isso é fato; e, por mais estranho que pareça, são as pessoas menos capazes de ser contagiadas pela arte que sempre foram verdadeiros críticos. Na maior parte dos casos, são aquelas que têm facilidade para escrever, bem instruídas, inteligentes, mas com uma capacidade de ser contagiadas pela arte completamente pervertida ou atrofiada. E, portanto, com seus textos, esses críticos sempre contribuíram significativamente, e ainda contribuem, para deturpar o gosto do público que os lê e acredita neles.
A crítica não poderia nem pode existir em uma sociedade em que a arte não está dividida em duas e é, portanto, avaliada pela visão de mundo religiosa do povo. A crítica somente pôde emergir na arte das altas camadas que não reconhecem a consciência religiosa do seu tempo.
A arte do povo tem um critério interno definitivo e indiscutível: a consciência religiosa. Isso não ocorre na arte das altas classes, e, portanto, seus amantes devem inevitavelmente se apegar a algum critério exterior. Para eles, esse critério é, como foi dito por um esteta inglês, o gosto dos “homens mais bem nutridos”, ou homens mais instruídos — isto é, a autoridade das pessoas consideradas instruídas e a sua tradição. Essa tradição, porém, é errônea, tanto porque os julgamentos dos “homens mais bem nutridos” frequentemente estão errados, como também porque os julgamentos que foram uma vez corretos deixam de sê-lo com o tempo. Todavia os críticos, mesmo não tendo base para seus julgamentos, nunca cessam de repeti-los. Os escritores de tragédia da Antiguidade foram na época considerados bons, e os críticos ainda os consideram assim. Dante foi considerado um grande poeta, Rafael, um grande pintor, Bach, um grande músico — e os críticos, não tendo padrão pelo qual distinguir a arte boa da má, não apenas consideram esses artistas ainda grandes, como também consideram que todos os seus trabalhos são grandes obras, dignas de imitação. Nada contribuiu e contribui tanto para a perversão da arte quanto essas autoridades definidas pela crítica. Um jovem produz uma obra de arte, expressando nela, em seu modo particular, como faz qualquer artista, os sentimentos que experimentou. A maior parte das pessoas é contagiada pelo sentimento do artista, e seu trabalho se torna conhecido. E então os críticos, discutindo esse artista, começam a dizer que sua obra não é má, porém ele ainda não é nenhum Dante, nenhum Shakespeare, ou Goethe, ou Beethoven do último período, ou Rafael. E o jovem artista, ouvindo essas opiniões, começa a imitar aqueles que foram colocados como exemplos para ele, e produz obras, além de fracas, forjadas e falsas.
Assim, por exemplo, nosso Pushkin escreve seus poemas curtos, seu Eugeniy Onegin, seu Ciganos, suas lendas — trabalhos de mérito variado, mas todos obras de verdadeira arte. Influenciado então pela falsa crítica louvando Shakespeare, ele escreve Boris Godunov, uma obra fria e cerebral, e os críticos elogiam-na, chamam-na exemplar, e imitações da imitação começam a aparecer: Minin, de Ostrovsky, Czar Boris, de Aleksei Konstantinovich Tolstói, e outras. Tais imitações de imitações enchem todas as literaturas com obras sem valor e totalmente desnecessárias. O maior dano dos críticos é que, por serem homens sem a capacidade de ser contagiados pela arte (e todos os críticos são assim; se não carecessem dessa capacidade, não poderiam empreender a interpretação impossível de obras artísticas), dão muita atenção e fazem elogios a obras cerebrais e inventadas, e apontam-nas como modelos dignos de imitação. Eis porque, sempre autoconfiantes, não cansam de elogiar os trágicos gregos, Dante, Tasso, Milton, Shakespeare, Goethe (quase tudo) e, entre os novos, Zola, Ibsen, a música do último período de Beethoven, Wagner. Para justificar sua apreciação dessas obras, inventam teorias inteiras (a famosa teoria da beleza é uma delas), e não só as pessoas obtusas criam suas obras estritamente de acordo com essas teorias, como, muitas vezes, até mesmo verdadeiros artistas se forçam a cumpri-las.
Toda obra falsa elogiada pelos críticos é uma porta pela qual irrompem os hipócritas da arte.
É somente graças aos críticos, que hoje louvam as obras grosseiras, selvagens e muitas vezes sem sentido, para nós, dos antigos gregos: Sófocles, Eurípedes, Ésquilo e especialmente Aristófanes; ou os modernos: Dante, Tasso, Milton, Shakespeare; na pintura, tudo de Rafael, tudo de Michelangelo, com o seu absurdo Juízo final; na música, tudo de Bach e tudo de Beethoven, inclusive seu último período — é somente graças a esses críticos que em nossa época, também, os Ibsens, Maeterlincks, Verlaines, Mallarmés, Puvis de Chavannes, Klingers, Böcklins, Stucks, Schneiders e, na música, os Wagners, Liszts, Berliozes, Brahmses, Richard Strausses et al. e toda a enorme massa de imitadores desses imitadores se tornaram possíveis.
A melhor ilustração da influência danosa da crítica pode ser a sua atitude em relação a Beethoven. Entre seus incontáveis trabalhos, muitas vezes escritos às pressas, sob encomenda, existem também algumas obras artísticas, apesar da artificialidade de sua forma; mas ele fica surdo e começa a escrever obras totalmente planejadas, inacabadas e, portanto, muitas vezes sem sentido e musicalmente incompreensíveis. Eu sei que os músicos podem imaginar sons de modo bastante vívido e quase ouvem o que leem; mas sons imaginários não podem nunca substituir os reais, e todo compositor tem que ouvir sua obra para colocar um toque final nela. Beethoven não podia ouvir e, portanto, não podia pôr o toque final em suas obras, e assim ele entregou ao mundo o que vem a ser algaravias artísticas. Contudo a crítica, tendo-o uma vez reconhecido como grande compositor, encontra uma satisfação especial em agarrar-se justamente a essas obras mais feias, procurando belezas extraordinárias nelas. E, para justificar os próprios elogios, a crítica perverte a própria noção de arte musical, atribuindo a ela a propriedade de retratar o que ela não pode retratar; e aparecem os imitadores, uma hoste incontável de imitadores desses ensaios de obras de arte criados pelo surdo Beethoven.
E então aparece Wagner, que antes de mais nada elogia Beethoven em seus artigos de crítica, precisamente o Beethoven do último período, e estabelece uma conexão entre a sua música e a teoria mística de Schopenhauer (tão absurda quanto a própria música de Beethoven), a de que a música é a expressão da vontade — não expressões particulares da vontade em vários estágios de objetificação, mas a sua essência mesma. E então, seguindo a sua teoria, ele escreve sua própria música, em conexão com o sistema ainda mais falso da unidade de todas as artes. E depois de Wagner aparecem mais imitadores, ainda mais distanciados da arte: os Brahmses, os Richard Strausses e outros.
Essas são as consequências da crítica. Mas a terceira condição da perversão da arte — escolas que ensinam arte — é quase igualmente danosa.
Logo que a arte se tornou arte para as classes ricas, e não para todo o povo, ela se transformou em uma profissão, e, assim, desenvolveram-se métodos para ensiná-la. Aqueles que escolheram a arte como atividade profissional começaram a estudar esses métodos e, dessa forma, apareceram as escolas: aulas de retórica ou literatura em escolas públicas, academias de pintura, conservatórios de música, escolas de arte dramática.
Nessas escolas está sendo ensinada a arte. Mas, se ela consiste em transmitir a outros o sentimento especial vivenciado por um artista, como isso pode ser ensinado nas escolas?
Nenhuma escola pode invocar sentimentos em um homem e menos ainda poderia ensiná-lo aquilo que é a essência da arte: a manifestação de sentimento de sua característica peculiar.
A única coisa que uma escola pode ensinar é como transmitir sentimentos experimentados por outros artistas, da forma como eles os transmitiram. É precisamente isso que é ensinado em escolas de arte, e essa instrução, além de não contribuir para a disseminação da arte verdadeira, uma vez que propaga falsificações artísticas, priva o povo, mais do que qualquer coisa, da capacidade de entender a arte verdadeira.
Na arte literária, as pessoas que não têm o desejo de dizer coisa alguma adquirem a destreza de escrever uma redação de várias páginas sobre um tópico no qual nunca haviam pensado, e de escrevê-la de tal forma que lembre o texto de autores reconhecidos como famosos. Isso é ensinado nas escolas públicas.
Na pintura, a principal instrução consiste em desenhar e pintar a vida e a natureza, em especial o corpo nu — precisamente o que uma pessoa nunca vê e o que um homem ocupado com arte de verdade quase nunca tem que retratar —, e desenhá-las, e pintá-las da mesma maneira como os mestres antigos fizeram. A composição dos quadros é ensinada dando temas semelhantes àqueles tratados por reconhecidas celebridades do passado. Assim também, nas escolas de arte dramática, os estudantes aprendem a recitar monólogos tal como foram recitados por atores trágicos considerados famosos. Da mesma forma na música. Toda a teoria da música não passa de uma incoerente repetição dos métodos que reconhecidos mestres de composição utilizaram para criar sua própria música.
Eu já citei em outro lugar uma frase profunda sobre a arte do pintor russo Briullov, mas não posso me impedir de citá-la novamente, porque ela mostra melhor do que qualquer outra coisa o que pode e o que não pode ser ensinado nas escolas. Corrigindo o esboço de um aluno, Briullov o retocou um pouquinho aqui e ali, e aquele esboço pobre e morto de repente ganhou vida. “Nossa, o senhor só o retocou um pouquinho e tudo mudou”, disse um dos alunos. “A arte começa onde esse pouquinho começa”, disse Briullov, expressando nessas palavras o traço mais característico da arte. Essa observação vale para todas as artes, mas sua correção é especialmente perceptível nas apresentações musicais. Para que uma apresentação musical seja artística, seja arte — isto é, para que produza contágio —, três condições principais devem ser observadas: o diapasão, a duração e a intensidade do som (além dessas há muitas outras condições necessárias para a perfeição musical: que a transição de som para som seja abrupta ou mesclada, que o som aumente ou diminua gradualmente, que ele combine com um som e não com outro, que o som tenha este e não aquele timbre, e muitas coisas mais). Uma apresentação musical é arte e pode contagiar somente quando o som não é mais alto nem mais baixo do que devia ser — isto é, deve ser tocado o centro infinitamente pequeno da nota requerida — e ele deve ter exatamente a duração necessária, e a sua intensidade não deve ser mais forte nem mais fraca do que a necessária. O menor desvio na altura do som para um lado ou para outro, o menor alongamento ou encurtamento da duração e a menor intensificação ou enfraquecimento do som, em comparação com o que é exigido, destrói a perfeição da apresentação e, consequentemente, da capacidade de contágio da obra. De forma que somente podemos ser contagiados pela arte da música — algo que pode parecer tão simples e fácil de obter — se o intérprete encontrar aqueles momentos infinitamente pequenos necessários para a perfeição musical. É o mesmo em todas as artes. Na pintura: um pouquinho mais claro, um pouquinho mais escuro, um pouquinho mais alto, mais baixo, para a direita, para a esquerda. Na arte dramática: um pouquinho mais fraco ou mais forte na entonação, um pouquinho cedo demais ou tarde demais. Na poesia: um pouquinho demais que é dito, ou não dito, ou exagerado, e não há contágio. Esse contágio é conseguido somente quando e na medida em que o artista encontra aqueles momentos infinitamente pequenos dos quais é composta a obra de arte. E é absolutamente impossível ensinar alguém a encontrar, de qualquer maneira exterior, esses momentos infinitamente pequenos: eles são encontrados somente quando um homem se entrega ao seu sentimento. Nenhuma instrução pode fazer um dançarino seguir o ritmo exato da música, ou um cantor ou violinista tocar o centro infinitesimal de uma nota, ou um desenhista traçar a única linha necessária, entre todas as linhas possíveis, ou um poeta encontrar o único arranjo necessário das únicas palavras necessárias. Somente o sentimento pode fazer isso. E, portanto, as escolas podem ensinar o que é necessário para criar algo que lembre arte, mas nunca a própria arte.
A instrução de escola para onde aquele pouquinho começa — e, portanto, onde a arte começa.
Habituar as pessoas àquilo que lembra arte as torna desacostumadas a compreender a verdadeira arte. Como consequência, não há pessoas mais obtusas do que aquelas que frequentaram escolas de arte profissionais e se saíram muito bem nelas. Essas escolas produzem uma hipocrisia de arte exatamente do mesmo tipo da hipocrisia religiosa produzida pelas escolas que educam pastores e vários tipos de professores religiosos. Tal como é impossível educar um homem na escola para ser um professor religioso, também é impossível ensinar um homem a ser um artista.
Assim, as escolas de arte são duplamente perniciosas: primeiro, por destruir a capacidade de produzir arte real nas pessoas que têm a desventura de frequentá-las durante sete ou oito anos de estudo. Em segundo lugar, porque elas multiplicam por quantidades enormes aquela arte forjada que perverte o gosto das massas e da qual o mundo está cheio a ponto de transbordar. Para que aqueles que nasceram artistas aprendessem os métodos dos vários tipos de arte que foram desenvolvidos por seus precedentes, deveria haver aulas de desenho, música e canto em todas as escolas primárias, e, tendo completado os estudos, cada estudante que tivesse um dom poderia aperfeiçoar-se independentemente na sua arte, fazendo uso dos modelos existentes e disponíveis a todos.
Estas três condições — o profissionalismo dos artistas, a crítica e as escolas de arte — são as que levaram à presente situação em que a maior parte das pessoas não tem absolutamente nenhuma compreensão do que seja arte e confundem com arte as falsificações mais grosseiras dela.

Leon Tolstói, in O que é arte?

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