E
contudo, ao sair de lá, tive umas sombras de dúvida; cogitei se não
ia expor insanamente a reputação de Virgília, se não haveria
outro meio razoável de combinar o Estado e a Gamboa. Não achei
nada. No dia seguinte, ao levantar-me da cama, trazia o espírito
feito e resoluto a aceitar a nomeação.
Ao
meio-dia, veio o criado dizer-me que estava na sala uma senhora,
coberta com um véu. Corro; era minha irmã Sabina.
– Isto
não pode continuar assim, disse ela; é preciso que, de uma vez por
todas, façamos as pazes. Nossa família está acabando; não havemos
de ficar como dois inimigos.
– Mas
se eu não te peço outra coisa, mana! bradei eu estendendo-lhe os
braços.
Sentei-a
ao pé de mim, e falei-lhe do marido, da filha, dos negócios, de
tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido
viria mostrar-ma, se eu consentisse.
– Ora
essa! irei eu mesmo vê-la.
– Sim?
– Palavra.
– Tanto
melhor! respirou Sabina. É tempo de acabar com isto.
Achei-a
mais gorda, e talvez mais moça. Parecia ter vinte anos, e contava
mais de trinta. Graciosa, afável, nenhum acanhamento, nenhum
ressentimento. Olhávamos um para o outro, com as mãos seguras,
falando de tudo e de nada, como dois namorados. Era a minha infância
que ressurgia, fresca, travessa e loura; os anos iam caindo como as
fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em
pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa família, as nossas
festas.
Suportei
a recordação com algum esforço; mas um barbeiro da vizinhança
lembrou-se de zangarrear na clássica rabeca, e essa voz – porque
até então a recordação era muda, – essa voz do passado, fanhosa
e saudosa, a tal ponto me comoveu, que...
Os
olhos dela estavam secos. Sabina não herdara a flor amarela e
mórbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de
minha mãe, e eu disse-lho com ternura, com sinceridade... Súbito,
ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco
anos.
– Entra,
Sara, disse Sabina.
Era
minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a pequena,
espantada, empurrava-me o ombro com a mãozinha, quebrando o corpo
para descer... Nisto, aparece-me porta um chapéu, e logo um homem, o
Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu estava tão comovido, que deixei
a filha e lancei-me aos braços do pai. Talvez essa efusão o
desconcertou um pouco; é certo que me pareceu acanhado. Simples
prólogo. Daí a pouco falávamos como bons amigos velhos. Nenhuma
alusão ao passado, muitos planos de futuro, promessa de jantarmos em
casa um do outro. E não deixei de dizer que essa troca de jantares
podia ser que tivesse uma curta interrupção, porque eu andava com
ideias de uma viagem ao Norte. Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim
para Sabina; ambos concordaram que essas ideias não tinham senso
comum. Que diacho podia eu achar no Norte? Pois não era na corte, em
plena corte, que devia continuar a luzir, a meter num chinelo os
rapazes do tempo?
Que,
na verdade, nenhum havia que se me comparasse; ele, Cotrim,
acompanhava-me de longe, e, não obstante uma briga ridícula, teve
sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triunfos. Ouvia o que se
dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de
louvores e admirações. E deixa-se isso para ir passar alguns meses
na província, sem necessidade, sem motivo sério? A menos que não
fosse política...
– Justamente
política, disse eu.
– Nem
assim, replicou ele dai a um instante. – E depois de outro
silêncio: – Seja como for, venha jantar hoje conosco.
– Certamente
que vou; mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar comigo.
– Não
sei, não sei, objetou Sabina; em casa de homem solteiro... Você
precisa casar, mano. Também eu quero uma sobrinha, ouviu?
Cotrim
reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem.
Não
importa; a reconciliação de uma família vale bem um gesto
enigmático.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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