domingo, 9 de julho de 2023

Adeus à infância

Aí o pai chegou de viagem e anunciou: “Vamos nos mudar para o Rio de Janeiro. Vamos nos mudar para a capital. A casa já está alugada...” . E pôs-se a descrever a casa.
A casa tem campainha...”
Nossa casa não tinha campainha. Quem quisesse teria de bater à porta com as juntas dos dedos da mão fechada. Campainha, só nas casas dos ricos.
E o assoalho é de tacos encerados...”
O nosso assoalho era de tábuas largas, lavadas. Piso de tacos encerados só nas casas dos ricos.
E tem um jardim na frente...”
À frente da nossa casa só havia um pastinho de capim. Jardim na frente, só em casa de ricos.
E os bondes passam na frente...
E tem um cinema na esquina...
E o mar está pertinho...”
Pegamos o trem numa madrugada fria de neblina. Eu, embalado pelo sacolejo do trem, ia construindo minha casa de menino rico com campainha, tacos encerados e jardim na frente, usando como tijolos as palavras que meu pai dizia... Eu acreditava nelas…

Rubem Alves, in O velho que Acordou Menino

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