terça-feira, 18 de julho de 2023

As memórias de Sarah Bernhardt

Quando uma atriz promete nos dar suas memórias, há boas razões para sentirmos um interesse incomum, que aguça a fundo a curiosidade. Instrumento de variadas paixões, ela vive diante de nós em muitas formas e em muitas circunstâncias. Entretanto, se optarmos por tal lembrança, senta-se ainda em contemplação passiva, discretamente recolhida, numa atitude que nos cabe acreditar ter significado cabal. Pode-se alegar que a presença desse contraste é que atribui sentido às suas ações mais triviais, havendo nas mais grandiosas uma ponta adicional de mordacidade. Sabemos também que cada papel que ela representa deposita uma contribuição pequena e própria em sua forma não vista, até que esta se complete e distinga das criações que faz, ao mesmo tempo que lhes infunde vida. Ora, quando ela se dedica a mostrar-nos em que tipo de mulher esta se tornou, não deveríamos sentir uma excepcional gratidão e um interesse que é mais do que normalmente complexo?
Talvez nenhuma mulher de hoje pudesse nos dizer coisas mais estranhas, sobre si mesma e a vida, do que Sarah Bernhardt.[1] É verdade que ela, ao chegar a esse último ato de revelação, faz uso de certas convenções, preocupando-se demais, de acordo com nossas expectativas, com as poses que assume antes de deixar o pano se abrir; mas isso também é característico e, pondo de lado as metáforas, seu livro por certo deve fazer o que nenhum de seus papéis fez, mostrando-nos o que no palco não pode ser exibido.
Como foi educada no convento Grands Champs, em Versailles, sua vida logo assumiu a forma de brilhantes e separadas contas de rosário que, embora se sucedam, não estão bem interligadas. Sarah era de constituição tão intensa que mesmo então houve explosões, quando pela primeira vez ela tomou contato com a dureza das coisas do mundo exterior. Ao se ver confrontada pelas paredes tristonhas do convento, exclamou: “Papa, papa! Eu não quero ficar nesta prisão. É uma prisão, tenho certeza”. Porém no mesmo instante surgiu, de véu até a boca, “uma mulher baixinha e meio rechonchuda” que, depois de lhe falar um pouco, notou que Sarah estava tremendo e, com algum estranho instinto, levantou completamente seu véu por um segundo. “Eu então vi o rosto mais doce e mais alegre que se possa imaginar… Na mesma hora me atirei nos braços dela.” Entre aquelas paredes, suas ações foram sempre assim, arrebatadas, impulsivas. Seu cabelo, por exemplo, cresceu demais, todo encrespado, e a irmã que tinha de penteá-lo de manhã bem cedo o puxou com força cruel. “Eu me joguei em cima dela e, com os pés, mãos, dentes, cotovelos, cabeça, com todo o meu pobre corpinho, de fato, bati a torto e a direito, ao mesmo tempo que gritava.” As alunas e as irmãs acorreram, murmuraram suas preces e brandiram seus símbolos sagrados, mas mantendo-se a distância, até que a irmã responsável pela disciplina recorresse a um sortilégio a mais e lançasse um jato de água benta sobre o demônio ativo de Sarah Bernhardt. Após toda essa exibição espiritual, foi a boa madre superiora, com seu instinto certeiro para causar efeitos, que a conquistou por um sortilégio não mais forte que “uma expressão de pena.” Entretanto tais acessos de fúria eram em parte resultantes da extrema fragilidade de sua saúde. Mais significativo é ler como ela formou para si uma reputação de “personalidade” entre as companheiras. Levava sempre, para onde ia, suas caixinhas cheias de víboras, lagartixas e grilos. Em geral as lagartixas tinham o rabo cortado, pois, para ver se estavam comendo, ela costumava levantar a tampa e deixá-la cair, “vermelha de surpresa” ante o atrevimento dos bichos em correr para fora. “E plac – quase sempre havia um rabo esmagado.” Assim, enquanto a irmã lecionava, ela alisava com os dedos as partes amputadas, imaginando se haveria um modo de colá-las novamente. Depois ela criou aranhas e, se uma menina se cortasse, “‘Venha logo’, diria, ‘que tenho teia de aranha fresca para enrolar no seu dedo’”. Com paixões e afazeres assim tão esquisitos, já que com os livros nunca se deu bem, ela se abriu para a imaginação. E claro está que toda essa intensidade de sentimentos se canalizou, no convento, para compor um belo quadro dramático em que Sarah representou o principal papel como a freira que havia renunciado ao mundo, ou a freira morta, jazendo sob a pesada mortalha negra enquanto velas queimavam e as irmãs e suas pupilas choravam numa deleitosa agonia. “Vistes, Senhor meu Deus”, rezava ela, “como mamãe chorou, sem que isso me afetasse”, porque “eu adorava a minha mãe, mas com um desejo tocante e fervoroso de deixá-la… de sacrificá-la por Deus.” Contudo uma escapada violenta, que terminou numa doença grave, acabou com a carreira religiosa que prometia tanto. Ela saiu do convento e, embora nutrisse ainda uma ambição apenas, tomar o véu, foi decidido de maneira bem informal, num extraordinário conselho familiar, mandá-la para o Conservatoire.[2] Sua mãe, mulher charmosa e indolente, com olhos misteriosos e uma doença do coração e paixão por música, de nenhum modo uma asceta, tinha o hábito de reunir parentes e conselheiros quando havia alguma questão familiar para resolver. Nessa ocasião estavam presentes um notário, um padrinho, um tio, uma tia, uma governanta, um amigo do andar de cima e um senhor muito distinto, o duque de Morny. Sarah tinha razões para odiar ou amar a maioria dessas pessoas – “ele tinha o cabelo ruivo plantado como capim na cabeça”, “ele me chamava de ma fil”, “ele era gentil e atencioso… e ocupava um alto posto na Corte”. Discutiram se não seria melhor, com os 100 mil francos que o pai lhe havia deixado, encontrar um marido para ela. Mas diante disso ela se enfureceu e gritou: “Vou me casar com o Bon Dieu… Eu vou ser freira, e pronto!”. Ficou vermelha de raiva e enfrentou os inimigos, que a repreendiam sussurrando, enquanto sua mãe passava a falar numa “voz clara e arrastada como o som de uma cachoeirinha…”. Finalmente o duque de Morny, entediado, levantou-se para sair. “Sabe o que a senhora deve fazer com essa criança?”, disse ele. “Deve mandá-la para o Conservatoire.”
Tais palavras, como sabemos, tiveram tremendas consequências, mas vale a pena examinar toda a cena, à parte delas, como um exemplo do singular talento que dá a tantas passagens dessa autobiografia a precisão e a vitalidade das fotografias coloridas e animadas. Nenhuma emoção que pudesse se expressar em ação ou gesto se perdia a seus olhos e, mesmo que incidentes como esse nada tivessem a ver com o assunto em pauta, seu cérebro os valorizava e podia, se necessário, usá-los para explicar alguma coisa. Em geral alguma coisa muito banal, mas talvez por isso mesmo quase espantosa no efeito. Assim, a irmãzinha sentada no assoalho estava “trançando a franja do sofá”; Mme Guérard entrou “sem chapéu; usava uma roupa caseira de indienne, com um estampado de folhinhas marrons”. Mais tarde, um pequeno drama é descrito assim:

Meu padrinho deu de ombros, levantou-se e saiu do camarote, batendo a porta atrás de si. Mamma, perdendo toda a paciência comigo, pôs-se a vistoriar o teatro com seu binóculo. Mlle de Brabender me passou o lenço, pois eu tinha deixado o meu cair e não ousava abaixar para apanhá-lo.

Pode-se talvez tomar isso por um simples exemplo do que há de natural no modo como uma atriz vê as coisas, ainda que ela só tenha doze anos. Sua função é ser capaz de concentrar tudo o que sente em algum gesto perceptível aos olhos e receber suas impressões do que passa pela cabeça dos outros por meio dos mesmos sinais. A natureza de seu talento evidencia-se cada vez mais à medida que as memórias progridem, e a atriz amadurece e se fixa nesse ponto de vista. E quando a arte alheia das palavras é usada para expressar um gênio dramático altamente desenvolvido, como aqui é o caso, algumas das impressões que ela causa são estranhas e brilhantes, enquanto outras se tornam, passando desse limite, grotescas e até penosas. Ao voltar do exame no Conservatoire, no qual havia sido aprovada, ela ensaiou uma cena para sua mãe. Ia entrar de cara triste e aí, quando a mãe exclamasse: “Bem que eu te disse”, ela gritaria: “Passei!”. Mas a fiel Mme Guérard, ao contar no pátio a verdade, estragou a encenação. “Devo dizer que aquela boa mulher continuou enquanto vivia… a estragar meus planos… de modo que antes de começar uma história ou uma brincadeira eu costumava pedir que ela saísse da sala.” Não é raro nos encontrarmos na mesma situação de Mme Guérard, se bem que dar uma desculpa talvez nos seja possível. Há duas histórias, em meio a uma variedade estonteante, que servirão para mostrar como é que Sarah Bernhardt às vezes cruza a fronteira, tornando-se penosa ou risível – ou será que nós, como Mme Guérard, deveríamos sair da sala também?
Após a ajuda que prestou, para nosso espanto, na guerra franco-prussiana, ela sentiu necessidade de mudança e por conseguinte foi para a Inglaterra.[3] “Adoro o mar e as planícies… mas não ligo para montanhas nem florestas… elas me esmagam, me sufocam.” Na Inglaterra, encontrou horrendos precipícios abertos para o “barulho infernal do mar”, com pedras que se arrastavam por baixo e lá tinham caído “em eras ignotas, só se mantendo em equilíbrio por alguma inexplicável causa”. Houve também uma grande fenda, o Enfer du Plogoff, pela qual ela resolveu descer, apesar das misteriosas advertências do guia. Tomada a decisão, baixaram-na por uma corda presa num cinturão, no qual foi preciso fazer mais furos, pois sua cintura “não passava na época de 43 centímetros”. Já estava escuro e o mar bramia e havia um rumor confuso e contínuo, como se de canhões e de açoites e de gemidos dos réprobos. Por fim ela tocou o chão com os pés, na ponta de uma pequena pedra num turbilhão de água, e, amedrontada, olhou ao redor. Viu de súbito que era observada por dois olhos enormes; um pouco adiante, viu outro par de olhos. “Não via o corpo desses seres… e cheguei a pensar que já perdia a razão.” Deu então um puxão com força na corda, sendo içada lentamente; “os olhos também subiam… e, enquanto eu me levantava no ar, por toda parte não via senão olhos – olhos que esticavam longos sensores para me alcançar… ‘São os olhos dos afogados’”, disse-lhe o guia, benzendo-se. “Que não eram olhos de afogados eu bem sabia… mas foi só quando cheguei ao hotel que ouvi falar sobre o polvo.” Um cronista escrupuloso teria de quebrar a cabeça para especificar nesse drama os papéis originais do polvo, do pescador e de Sarah Bernhardt; para os outros isso não interessa.
Depois, na mesma linha, sua “querida governanta, Mlle de Brabender”, estava morrendo, e Sarah foi visitá-la.

Ela havia sofrido tanto que parecia outra pessoa. Estava esticada na caminha branca, com uma touquinha branca que lhe cobria o cabelo e o narigão repuxado pela dor; a cor parecia ter sumido de seus olhos sem expressão. Somente o bigodinho, pavoroso, agitava-se em constantes espasmos. Além do mais, estava tão estranhamente alterada que eu me perguntava o que teria causado essa mudança. Cheguei mais perto e, inclinando-me, beijei-a com delicadeza. Olhei-a então de um modo tão indagador que ela entendeu por instinto. Fez-me um sinal com os olhos para eu reparar na mesa ao lado, sobre a qual avistei, dentro de um copo, todos os dentes da minha velha e querida amiga.

Há uma característica comum à maioria das histórias contadas: todas são claramente produções de um raciocínio muito literal. Por mais que ela acumule fatos sobre fatos e multiplique indefinidamente seus polvos para causar os efeitos que pretende, nunca irá invocar nenhuma influência mística. Como alguém haveria de lidar com a alma dos afogados? Ela amolga todas as vastas forças inconscientes do mundo, a amplitude do céu, a imensidade do mar, para obter algum cenário propício à sua solitária figura. Eis aí a razão desse olhar tão penetrante e minucioso que tem. Muito embora suas convicções de artista quase não entrem nessas páginas, é lícito supor que algo de sua inigualada intensidade no palco venha da capacidade de uma visão aguda e cética, que ela demonstra, no que se refere aos papéis; Sarah não se submete a ilusões. “Minha atuação foi ruim, eu estava de mau humor e feia.” Parece-nos, quando a isso se dispõe, a mais prática das mulheres, como uma vendedora de aves que tem o que há de melhor e só suportará ser enganada pelo mesmo cinismo com o qual, sem dúvida, haveria de enganar a si mesma se o quisesse. Pois um discernimento tão claro não parece ser compatível, pelo menos em seu caso, com uma visão muito exaltada de sua espécie; se por natureza ela a tivesse, poderia constatar que essa visão não se adaptaria facilmente aos recursos de sua arte, que os resultados a obter por meio dela eram incertos e que sua glória é fazer qualquer sacrifício que a própria arte lhe peça. Em seu modo de ver, sem dúvida o leitor percebe, quando já avançou bastante no livro, que há certa limitação e dureza, o que talvez se possa atribuir ao fato de todas as cenas violentas resultarem de certas explosões bem tramadas que apenas servem para iluminar o rosto raro, tão diferente de qualquer outro, da atriz. Num mundo que brilha assim para nós, em jatos berrantes de luz vermelha e roxa, a figura central, em todas as suas poses, sempre está muito nítida, porém às outras, que vão cair fora do círculo, estranhamente faltam cores. Assim, quando a bordo de um navio ela salvou uma senhora que ia caindo na escada, a mulher murmurou, “numa voz que mal dava para ouvir: ‘Sou a viúva do presidente Lincoln’… Senti pontadas de agonia… o marido dela tinha sido assassinado por um ator, e era uma atriz que a impedia de ir juntar-se ao amado marido. Fui para minha cabine e lá fiquei por dois dias”. Enquanto isso, o que estaria sentindo a senhora Lincoln?
Tal multiplicação de toscos objetos visíveis sobre os nossos sentidos fatiga-os consideravelmente quando se acaba o livro, mas o que padecemos – o triunfo final da “personalidade”– é exaustão e não tédio. Até mesmo as estrelas brilham, quando ela abre sua cortina à noite, não sobre a terra e o mar, mas sobre “a nova era” que o segundo volume nos revelará.[4]
Com nosso olhar ofuscado por esse modo inflexível de ver, somos instados a dizer alguma coisa sobre a revelação – e sem dúvida em vão. Pois quanto mais nos domina a obsessão por um livro, menos linguagem articulada precisamos usar a seu respeito. Após choques assim, você se move aos arrepios como um animal às tontas cuja cabeça, atingida por uma pedra que cai, lampeja em todas as formas de raios fortes. É possível, enquanto você lê o volume, sentir como sua carne se afunda, por baixo, em ondulantes vapores carmesins, de um perfume raro, que sobem sem demora para envolvê-lo por completo. Depois, separando-se os vapores, entre eles se abrem claros, ainda com traços carmesins, nos quais algum vívido conflito entre pigmeus brilhantes se prolonga; nas nuvens ressoam altas vozes francesas; a pronúncia é perfeita, mas elas são tão estranhamente afetadas e tão monótonas no tom que é difícil você reconhecê-las como vozes humanas. Há uma constante reverberação de aplausos, que incita à ação todos os nervos. Mas onde afinal o sonho acaba e onde a vida começa? No fim do capítulo, quando a poltrona flutuante aterrissa com uma batida leve que o desperta e as nuvens volteiam em torno de você e somem, o quarto sólido que bruscamente se apresenta com seu mobiliário expectante não parece grande e triste demais para voltar a submergir na rasa corrente de interesse que é tudo o que resta após o pródigo dispêndio que você fez? Sim – é preciso jantar e dormir e registrar a própria vida pelo mostrador do relógio, à meia-luz, acompanhado apenas pelo irrelevante barulho de uma carroça ou coche e observado pelo olho universal de sol e lua que vela de modo imparcial, dizem, por todos nós. Mas isso não é uma monumental falsidade? Cada um de nós, na verdade, não é o centro de inumeráveis raios, que assim caem somente sobre uma figura, e o que nos cabe não é reacendê-los pronta e completamente, nunca deixando que uma simples fagulha se arrefeça no que há em nós de mais distante? Sarah Bernhardt pelo menos, em virtude de alguma concentração desse tipo, fará brilhar para muitas gerações uma mensagem sinistra e enigmática; mas mesmo assim ela haverá de brilhar, enquanto o resto de nós – será a profecia arrogante? – jaz dissipado nas inundações.

Publicado pela primeira vez no número de fev. 1908 da revista mensal Cornhill Magazine, como resenha do livro My Double Life: Memoirs of Sarah Bernhardt (1907), do qual provêm as citações entre aspas.

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[1] A atriz francesa, nascida em Paris em 1844, aí morreu em 1923. Revelou-se sobretudo na Comédie-Française, da qual se desligou em 1880 para iniciar longa série de turnês pelo mundo.
[2] Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse, escola de formação de artistas fundada em Paris em 1795.
[3] Sarah Bernhardt ajudou a cuidar dos feridos durante o cerco de Paris, na guerra franco-prussiana de 1870-71.
[4] Um segundo volume das memórias de Sarah Bernhardt não chegou a ser publicado.

Virginia Woolf, in O valor do riso e outros ensaios

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