segunda-feira, 19 de junho de 2023

Cartas para minha avó

Vó, eu me casei com o homem que, num baile, quando alguém lhe perguntou se podia dançar comigo, respondeu: “Isso você tem que perguntar a ela”.
Quando conheci o pai da minha filha, Donald, meus pais já haviam falecido, eu trabalhava na Casa de Cultura da Mulher Negra e cursava Jornalismo. Eu tinha vinte e dois anos, ele vinte e oito. Fiquei perdidamente apaixonada, apesar das dificuldades do início do namoro. Sua ex-namorada não aceitava o término. Enquanto ela estava somente atrás dele, não me importei, era do jogo, cabia a ele resolver a situação. Porém, ela passou a me perseguir: passava trotes na minha casa e no trabalho, me seguia na rua. A situação ficou insustentável quando, ao final de uma reunião do Movimento Negro Jovem, grupo de ativismo que nós dois fazíamos parte, ela tentou me agredir.
Desde as baladas do Bar do 3, eu achava desprezível mulheres brigarem por causa de homem. Naquele momento, apesar de toda a baixaria da situação e do ódio que senti, não a agredi fisicamente. Ela, porém, não se controlava, e chegou a ponto de cuspir na minha cara. Fiquei transtornada e, se algumas amigas não tivessem separado, provavelmente eu teria dado uns bons tapas nela.
Como não fui criada para colocar um homem acima de tudo, sobretudo da minha dignidade, terminei o breve namoro. Chamei Donald até minha casa e disse que não ficaríamos mais juntos enquanto ele não resolvesse aquela situação; que os últimos anos haviam sido difíceis pra mim por conta da perda dos meus pais e que eu não merecia viver um transtorno daquele. Lembro exatamente das palavras, da música que tocava baixinho no rádio, da surpresa dele ao me ver tomando aquela decisão. “Ela é sua ex-namorada, não quero ficar no meio de uma situação como essa. Se você se resolver, me procure”, eu disse.
Passado um tempo, eu estava no Rio de Janeiro a trabalho e liguei para casa. Soube por Dara que Donald telefonava sem parar, perguntando de mim. Ela havia lhe dito que eu estava viajando, mas não adiantou, ele continuava tentando. Autorizei, então, que ela passasse meu número, e logo ele me ligou. Sua voz estava diferente, terna. Queria saber quando eu voltaria, disse que estava com saudades.
No dia que cheguei de viagem, Donald passou em casa para me ver. Quando abri o portão do prédio e o vi encostado do lado de fora no carro, segurando um embrulho na mão, meu coração disparou. Geralmente ele não saía do carro quando ia me buscar, só destrancava a porta por dentro. Quando o vi ali, em pé, percebi que as coisas estavam diferentes. Ele me abraçou com carinho e me entregou o presente, um perfume francês que se tornou meu favorito durante muitos anos.
Foi um período de namoro tranquilo. Logo eu estava jantando na casa dos pais dele, conhecendo toda a família. Pela primeira vez eu considerava que tinha um namorado de verdade — de andar de mãos dadas, usar aliança, frequentar a casa da família, fazer planos juntos. Eu nos via como um casal bonito, dois jovens negros com consciência racial, com ideias de mudar o mundo. Por mais que tempos depois ele tenha confessado que os momentos de fúria da ex-namorada tinham sido potencializados porque ele ainda ficava com ela mesmo tendo começado a sair comigo, eu já estava apaixonada demais para voltar atrás — o máximo que fiz foi ficar alguns dias sem falar com ele, vó. Ele prometeu que seria sincero dali em diante e assim foi. Eu praticamente não tinha experiência sexual, sentia vergonha do meu corpo magérrimo.
Quando passamos a ter uma vida sexual ativa, fui ao ginecologista conversar sobre métodos anticoncepcionais. Ele me receitou a pílula, mas não deu certo, meu organismo não se adaptou. Eu vomitava, ficava de cama. Então o ginecologista receitou um adesivo, que não adiantou muito, me fez passar mal também. Nesse intervalo entre encontrar um anticoncepcional e me ajustar a ele, engravidei. Demorei a perceber do que se tratava, achava que os vômitos tinham relação com os remédios. Mas os enjoos não passavam, a menstruação atrasou.
Donald e eu fomos até a Santa Casa fazer o teste. Tirei sangue e aguardei. Lembro do meu medo, da sensação de angústia, do desespero em sentir que o resultado seria positivo. Quando o médico me chamou, eu disse a Donald que queria ir sozinha. Ao entrar na sala, ouvi um entusiasmado “Parabéns, mamãe!”. Eu não senti o chão, quase desfaleci em cima da cadeira e desabei a chorar. Um choro de medo e desespero. O médico levantou para me acalmar, dizia que este era o sonho de muitas mulheres, que eu daria conta. Nesse momento, Donald entrou na sala e também tentou me acalmar.
Eu tinha vinte e três anos, queria namorar, sonhava e fantasiava com o amor. Mas também queria ver o mundo, ir para outros lugares, conhecer outras culturas. Queria visitar novas cidades, viajar mais de avião, me aventurar.
Sempre tive como meta estudar e trabalhar, como meu pai havia exigido, e as coisas não haviam saído como eu planejara. O que eu faria grávida, sem diploma, endividada e sem condições de me sustentar? O que minha mãe diria, se estivesse viva? Ai, vó, como eu senti falta do colo de vocês, como eu queria que estivessem comigo naquele momento, mesmo que fosse para me dar bronca.
Enquanto caminhávamos de volta para o carro, o silêncio foi absoluto. Ao andar por aqueles corredores tão conhecidos pra mim, eu chorava e lamentava mentalmente. Minha mãe e meu pai haviam morrido naquele mesmo hospital e foi ali, naquelas mesmas estruturas, que eu receberia a notícia que mudaria minha vida para sempre. Ao entrar no carro, eu quebrei o silêncio ao dizer que não gostaria de ter aquele filho. Donald disse que apoiaria a minha decisão, mas me orientou a pensar.
Ele já completara trinta anos, estava formado em educação física e estabelecido na vida como professor de inglês. Seu pai fez carreira internacional como jogador de futebol e por isso ele havia morado na Europa e no Oriente Médio, conhecera dezenas de países, falava dois idiomas. Eu tinha vinte e três, passado as férias da infância em Piracicaba e morado a minha vida inteira na praça Coronel Fernando Prestes, em Santos. Eu não me sentia pronta para gerar outro ser humano. Como eu estava muito nervosa, falei que pensaria e o proibi de contar para sua família, uma vez que eu estava passando um tempo lá. Quando chegamos, fomos direto para o quarto dele e lá ficamos acordados por horas, conversando baixo e só sendo interrompidos quando eu corria para o banheiro para vomitar.
Passados alguns dias, Donald contou para a mãe dele, Vera. Ela disse que apoiaria a minha decisão, mas que aconselhava que eu tivesse a criança, ela e a família ajudariam. Na mesma noite, Donald falou que queria ser pai e acreditava que aquele era um bom momento. Eu fui me sentindo acolhida, mas ainda não havia me decidido. Com o tempo, eu fui invadida por um amor inexplicável. Acordei uma noite e senti que teria aquela criança. Até hoje não consigo descrever essa sensação, só sei que senti uma paz sem tamanho. Tinha certeza de que era menina e se chamaria Thulane, “a pacífica” em swahili, nome que descobri no mesmo jornal da militância negra em que meu pai encontrou o meu, o Jornegro.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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