Vó,
eu me casei com o homem que, num baile, quando alguém lhe perguntou
se podia dançar comigo, respondeu: “Isso você tem que perguntar a
ela”.
Quando
conheci o pai da minha filha, Donald, meus pais já haviam falecido,
eu trabalhava na Casa de Cultura da Mulher Negra e cursava
Jornalismo. Eu tinha vinte e dois anos, ele vinte e oito. Fiquei
perdidamente apaixonada, apesar das dificuldades do início do
namoro. Sua ex-namorada não aceitava o término. Enquanto ela estava
somente atrás dele, não me importei, era do jogo, cabia a ele
resolver a situação. Porém, ela passou a me perseguir: passava
trotes na minha casa e no trabalho, me seguia na rua. A situação
ficou insustentável quando, ao final de uma reunião do Movimento
Negro Jovem, grupo de ativismo que nós dois fazíamos parte, ela
tentou me agredir.
Desde
as baladas do Bar do 3, eu achava desprezível mulheres brigarem por
causa de homem. Naquele momento, apesar de toda a baixaria da
situação e do ódio que senti, não a agredi fisicamente. Ela,
porém, não se controlava, e chegou a ponto de cuspir na minha cara.
Fiquei transtornada e, se algumas amigas não tivessem separado,
provavelmente eu teria dado uns bons tapas nela.
Como
não fui criada para colocar um homem acima de tudo, sobretudo da
minha dignidade, terminei o breve namoro. Chamei Donald até minha
casa e disse que não ficaríamos mais juntos enquanto ele não
resolvesse aquela situação; que os últimos anos haviam sido
difíceis pra mim por conta da perda dos meus pais e que eu não
merecia viver um transtorno daquele. Lembro exatamente das palavras,
da música que tocava baixinho no rádio, da surpresa dele ao me ver
tomando aquela decisão. “Ela é sua ex-namorada, não quero ficar
no meio de uma situação como essa. Se você se resolver, me
procure”, eu disse.
Passado
um tempo, eu estava no Rio de Janeiro a trabalho e liguei para casa.
Soube por Dara que Donald telefonava sem parar, perguntando de mim.
Ela havia lhe dito que eu estava viajando, mas não adiantou, ele
continuava tentando. Autorizei, então, que ela passasse meu número,
e logo ele me ligou. Sua voz estava diferente, terna. Queria saber
quando eu voltaria, disse que estava com saudades.
No
dia que cheguei de viagem, Donald passou em casa para me ver. Quando
abri o portão do prédio e o vi encostado do lado de fora no carro,
segurando um embrulho na mão, meu coração disparou. Geralmente ele
não saía do carro quando ia me buscar, só destrancava a porta por
dentro. Quando o vi ali, em pé, percebi que as coisas estavam
diferentes. Ele me abraçou com carinho e me entregou o presente, um
perfume francês que se tornou meu favorito durante muitos anos.
Foi
um período de namoro tranquilo. Logo eu estava jantando na casa dos
pais dele, conhecendo toda a família. Pela primeira vez eu
considerava que tinha um namorado de verdade — de andar de mãos
dadas, usar aliança, frequentar a casa da família, fazer planos
juntos. Eu nos via como um casal bonito, dois jovens negros com
consciência racial, com ideias de mudar o mundo. Por mais que tempos
depois ele tenha confessado que os momentos de fúria da ex-namorada
tinham sido potencializados porque ele ainda ficava com ela mesmo
tendo começado a sair comigo, eu já estava apaixonada demais para
voltar atrás — o máximo que fiz foi ficar alguns dias sem falar
com ele, vó. Ele prometeu que seria sincero dali em diante e assim
foi. Eu praticamente não tinha experiência sexual, sentia vergonha
do meu corpo magérrimo.
Quando
passamos a ter uma vida sexual ativa, fui ao ginecologista conversar
sobre métodos anticoncepcionais. Ele me receitou a pílula, mas não
deu certo, meu organismo não se adaptou. Eu vomitava, ficava de
cama. Então o ginecologista receitou um adesivo, que não adiantou
muito, me fez passar mal também. Nesse intervalo entre encontrar um
anticoncepcional e me ajustar a ele, engravidei. Demorei a perceber
do que se tratava, achava que os vômitos tinham relação com os
remédios. Mas os enjoos não passavam, a menstruação atrasou.
Donald
e eu fomos até a Santa Casa fazer o teste. Tirei sangue e aguardei.
Lembro do meu medo, da sensação de angústia, do desespero em
sentir que o resultado seria positivo. Quando o médico me chamou, eu
disse a Donald que queria ir sozinha. Ao entrar na sala, ouvi um
entusiasmado “Parabéns, mamãe!”. Eu não senti o chão, quase
desfaleci em cima da cadeira e desabei a chorar. Um choro de medo e
desespero. O médico levantou para me acalmar, dizia que este era o
sonho de muitas mulheres, que eu daria conta. Nesse momento, Donald
entrou na sala e também tentou me acalmar.
Eu
tinha vinte e três anos, queria namorar, sonhava e fantasiava com o
amor. Mas também queria ver o mundo, ir para outros lugares,
conhecer outras culturas. Queria visitar novas cidades, viajar mais
de avião, me aventurar.
Sempre
tive como meta estudar e trabalhar, como meu pai havia exigido, e as
coisas não haviam saído como eu planejara. O que eu faria grávida,
sem diploma, endividada e sem condições de me sustentar? O que
minha mãe diria, se estivesse viva? Ai, vó, como eu senti falta do
colo de vocês, como eu queria que estivessem comigo naquele momento,
mesmo que fosse para me dar bronca.
Enquanto
caminhávamos de volta para o carro, o silêncio foi absoluto. Ao
andar por aqueles corredores tão conhecidos pra mim, eu chorava e
lamentava mentalmente. Minha mãe e meu pai haviam morrido naquele
mesmo hospital e foi ali, naquelas mesmas estruturas, que eu
receberia a notícia que mudaria minha vida para sempre. Ao entrar no
carro, eu quebrei o silêncio ao dizer que não gostaria de ter
aquele filho. Donald disse que apoiaria a minha decisão, mas me
orientou a pensar.
Ele
já completara trinta anos, estava formado em educação física e
estabelecido na vida como professor de inglês. Seu pai fez carreira
internacional como jogador de futebol e por isso ele havia morado na
Europa e no Oriente Médio, conhecera dezenas de países, falava dois
idiomas. Eu tinha vinte e três, passado as férias da infância em
Piracicaba e morado a minha vida inteira na praça Coronel Fernando
Prestes, em Santos. Eu não me sentia pronta para gerar outro ser
humano. Como eu estava muito nervosa, falei que pensaria e o proibi
de contar para sua família, uma vez que eu estava passando um tempo
lá. Quando chegamos, fomos direto para o quarto dele e lá ficamos
acordados por horas, conversando baixo e só sendo interrompidos
quando eu corria para o banheiro para vomitar.
Passados
alguns dias, Donald contou para a mãe dele, Vera. Ela disse que
apoiaria a minha decisão, mas que aconselhava que eu tivesse a
criança, ela e a família ajudariam. Na mesma noite, Donald falou
que queria ser pai e acreditava que aquele era um bom momento. Eu fui
me sentindo acolhida, mas ainda não havia me decidido. Com o tempo,
eu fui invadida por um amor inexplicável. Acordei uma noite e senti
que teria aquela criança. Até hoje não consigo descrever essa
sensação, só sei que senti uma paz sem tamanho. Tinha certeza de
que era menina e se chamaria Thulane, “a pacífica” em swahili,
nome que descobri no mesmo jornal da militância negra em que meu pai
encontrou o meu, o Jornegro.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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