quinta-feira, 13 de abril de 2023

O Homem que Calculava | Capítulo 7


Alguns dias depois, encerrados os trabalhos que fazíamos no palácio do vizir, fomos dar um giro pelo suque(1) e pelos jardins de Bagdá.
A cidade apresentava, naquela tarde, um movimento intenso, febril, fora do comum. É que, pela manhã, haviam chegado duas ricas caravanas de Damasco.
No bazar dos sapateiros, por exemplo, mal se podia entrar; havia sacos e caixas, com mercadorias, amontoados nos pátios das estalagens. Forasteiros damascenos, com imensos turbantes coloridos, ostentando nas cinturas suas armas, caminhavam descuidados, olhando com indiferença para os mercadores. Sentia-se um cheiro forte de incenso, de quife(2) e de especiarias. Vendedores de favas discutiam, quase se agrediam, proferindo pragas tremendas em sírio.
Um jovem guitarrista mossulense, sentado sobre grandes sacos de melancia, cantava uma toada monótona e triste:

Que importa a vida da gente,
Se a gente, por mal ou bem,
Vai vivendo simplesmente
A vida que a gente tem?(3)

Vendedores, nas portas de suas tendas, apregoavam suas mercadorias, exaltando-as com elogios exagerados e fantasiosos, no que é fértil a imaginação dos árabes.
Este rico tecido é digno do nosso emir!
Amigos! Eis um delicioso perfume que lembra os carinhos de vossa esposa!
Reparai, ó xeque, nestas chinelas e neste lindo cafetã(4) que os djins(5) recomendam aos anjos!
Interessou-se Beremiz por um elegante e harmonioso turbante azul-claro que um sírio, meio corcunda, oferecia por 4 dinares. A tenda desse mercador era, aliás, muito original, pois tudo ali (turbantes, caixas, punhais, pulseiras etc.) era vendido por 4 dinares. Havia um letreiro, em letras vistosas, que dizia:
Os quatro quatros
Ao ver Beremiz interessado em adquirir o turbante azul, objetei:
Julgo loucura comprar esse luxo. Estamos com pouco dinheiro e ainda não pagamos a hospedaria.
Não é o turbante que me interessa — retorquiu Beremiz. — Repare que a tenda desse mercador é intitulada “Os quatro quatros”. Há nisso tudo espantosa coincidência digna de atenção.
Coincidência? Por quê?
Ora, bagdali — retornou Beremiz —, a legenda que figura nesse quadro recorda uma das maravilhas do Cálculo: podemos formar um número qualquer empregando quatro quatros!
E antes que eu o interrogasse sobre aquele enigma, Beremiz explicou, riscando na areia fina que cobria o chão:
Quer formar o zero? Nada mais simples. Basta escrever:

44 – 44

Estão aí quatro quatros formando uma expressão que é igual a zero.
Passemos ao número 1. Eis a forma mais cômoda:


Representa, essa fração, o quociente da divisão de 44 por 44. E esse quociente é 1.
Quer ver, agora, o número 2? Podem-se aproveitar, facilmente, os quatro quatros e escrever:


A soma das duas frações é, exatamente, igual a 2. O três é mais fácil. Basta escrever a expressão:




Repare que a soma 12, dividida por quatro, dá um quociente 3. Eis, portanto, o 3 formado por quatro quatros.
E como vai formar o próprio número 4? — perguntei.
Nada mais simples — explicou Beremiz —, o 4 pode ser formado de várias maneiras diferentes. Eis uma expressão equivalente a 4:



Observe que a segunda parcela


 é nula, e que a soma fica igual a quatro. A expressão escrita equivale a 4 + 0, ou 4.
Notei que o mercador sírio acompanhava atento, sem perder palavra, a explicação de Beremiz, como se muito lhe interessassem aquelas expressões aritméticas formadas por quatro quatros.(6)
Beremiz prosseguiu:
Quero formar, por exemplo, o número 5. Não há dificuldade. Escreveremos:


Exprime esse arranjo numérico a divisão de 20 por 4. E o quociente é 5. Temos, desse modo, o 5 escrito com quatro quatros.
A seguir passemos ao 6, que apresenta uma forma muito elegante:


Uma pequena alteração nesse interessante conjunto conduz ao resultado 7:


É muito simples a forma que pode ser adotada para o número 8, escrito com quatro quatros:

4 + 4 + 4 – 4

O número 9 não deixa de ser também interessante:


Eis agora uma expressão, muito elegante, igual a 10, formada com quatro quatros(7):



Nesse momento o corcunda, dono da tenda, que estivera a acompanhar a explicação do calculista em atitude de respeitoso silêncio e interesse, observou:
Pelo que acabo de ouvir, o senhor é exímio nas contas e nos cálculos. Dar-lhe-ei de presente o belo turbante azul se souber explicar certo mistério encontrado numa soma, que há dois anos me tortura o espírito.
E o mercador narrou o seguinte:
Emprestei, certa vez, a quantia de 100 dinares, sendo 50 a um xeque de Medina e outros 50 a um judeu do Cairo.
O medinense pagou a dívida em quatro parcelas, do seguinte modo: 20, 15, 10 e 5. Assim:


Repare, meu amigo, que tanto a soma das quantias pagas como a dos saldos devedores são iguais a 50.
O judeu cairota pagou, igualmente, os 50 dinares em quatro prestações, do seguinte modo:


Convém observar, agora, que a primeira soma é 50 (como no caso anterior), ao passo que a outra dá um total de 51.
Não sei explicar essa diferença de 1 que se observa na segunda forma de pagamento. Bem sei que não fui prejudicado (pois recebi o total da dívida), mas como justificar o fato de ser a segunda soma igual a 51 e não a 50?
Meu amigo — esclareceu Beremiz —, isto se explica com poucas palavras. Nas contas de pagamento, os saldos devedores não têm relação alguma com o total da dívida. Admitamos que uma dívida de 50 fosse paga em três prestações: a 1.ª de 10, a segunda de 5 e a terceira de 35. Eis a conta, com os saldos:


Neste exemplo, a primeira soma é ainda 50, ao passo que a soma dos saldos é, como se vê, 75; podia ser 80, 90, 100, 260, 800 ou um número qualquer. Só por acaso dará exatamente 50 (como no caso do xeque) ou 51 (como no caso do judeu).
O mercador alegrou-se por ter entendido a explicação dada por Beremiz e cumpriu a promessa feita, oferecendo ao calculista o turbante azul que valia quatro dinares.

NOTAS

(1) Suque ou suk — Rua ou praça em que se localizavam as tendas, os bazares e as lojas dos mercadores.
(2) Quife ou kif — Produto tirado do cânhamo, que os árabes usam como fumo.
(3) Trova de Anis Murad, poeta brasileiro (1904-1962).
(4) Túnica debruada. Entre os persas era o “roupão” ou a “camisola”, que usavam habitualmente.
(5) Gênios sobrenaturais benfazejos, em cuja existência os árabes acreditavam. Atualmente essa crendice só existe nas classes incultas. Havia, também, os efrites, que eram gênios maléficos.
(6) Dada a natureza e a finalidade deste livro, admitimos o emprego de sinais matemáticos modernos. É evidente que na época em que viveu Beremiz a notação matemática era bem diferente (Malba Tahan).
(7) Com quatro quatros podemos escrever um número qualquer, desde 1 até 100.

Malba Tahan, in O Homem que Calculava

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