O pintinho

Foi talvez de um filme de Walt Disney que nasceu a moda de enfeitar com pintinhos vivos as mesas de aniversário infantil. Era uma excelente ideia, no mundo ideal do desenho animado; conduzida para o mundo concreto dos apartamentos, também alcançou êxito absoluto. Muitos garotos e garotas jamais tinham visto um pinto de verdade, e queriam comê-lo, assim como estava, imaginando ser uma espécie de doce mecânico, mais saboroso. Houve que contê-los e ensinar-lhes noções urgentes de biologia. As senhoras e moças deliciaram-se com a surpresa e gula dos meninos, e foram unânimes em achar os pintos uns amorecos. Mas estes, encurralados num centro de mesa, entre flores que não lhes diziam nada ao paladar, e atarantados por aquele rumor festivo e suspeito, deviam sentir-se absolutamente desgraçados.
Como a celebração do aniversário terminasse, e ninguém sabia o que fazer com os pintos, pareceu à dona da casa que seria gentil e cômodo oferecer um a cada criança, transferindo assim às mães o problema do destino a dar-lhes. O único inconveniente da solução era que havia mais guris do que pintos, e não foi simples convencer aos não contemplados que aquilo era brincadeira para guris ainda bobinhos, e que mocinhas e rapazinhos de nível mental superior não se preocupam com essas frioleiras.
Os pintos, em consequência, espalharam-se pela cidade, cada qual com seu infortúnio e seu proprietário exultante. O interesse das primeiras horas continuava a revestir-se de feição ameaçadora para a integridade física dos recém-nascidos (se é que pinto produzido em incubadora realmente nasce). Um deles foi parar num apartamento refrigerado, e posto a um canto da copa, sobre uma caixinha de papelão forrada de flanela. Semeou-se em redor o farelinho malcheiroso que o gerente do armazém recomendara como alimento insubstituível para pintos tenros, e que (o pai leu na enciclopédia) devia ser, teoricamente, farinha de baleia. A ideia da baleia alimentando o pinto encheu o garotinho de assombro, e pela primeira vez o mundo lhe apareceu como um sistema.
O pinto sentia um frio horroroso, mas desprezava a flanela, e a todo instante se descobria, tentando fugir. Procurava algo que ele mesmo não sabia se era calor da galinha ou da criadeira. À falta de experiência, dirigiu seus passinhos na direção das saias que circulavam pela copa. As saias nada podiam fazer por ele, senão recolocá-lo em seu ninho, mas o pinto procurava sempre, e piava.
O garoto queria carregá-lo, inventava comidas que talvez interessassem àquele paladar em formação. Não, senhor — explicou-lhe a mãe:
Não se pode pegar, não se pode brincar, não se pode dar nada, a não ser farelo e água.
Nem carinho?
Meu amor, carinho de gente é perigoso para bicho pequeno.
Mas o pinto, mesmo sem saber, estava querendo era um palmo sujo de terra, com insetos e plantas comestíveis, o raio de sol batendo na poça d’água caída do céu, e companhia à sua altura e feição, e, numa casa assim tão bonita e confortável, esses bens não existiam. E piava.
A situação começou a preocupar a dona da casa, que telefonou à amiga doadora do pinto: que fazer com ele?
Querida, procure criá-lo com paciência, e no fim de três meses bote na panela, antes que vire galo. É o jeito.
Não virou galo, nem caiu na panela. No fim de três dias, piando sempre e sentindo frio, o pinto morreu. Foi sua primeira e única manifestação de vida, propriamente dita.
O menino queria guardá-lo consigo, supondo que, inanimado, o pinto se transformara em brinquedo, manuseável. Foi chamado para dentro, e quando voltou o corpinho havia desaparecido na lixeira.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

O sonho de uma vida

O diálogo, ocorreu em Androgué. Meu sobrinho Miguel, que tinha cinco ou seis anos, estava sentado no chão, brincando com a gata. Como faço todas as manhãs, lhe perguntei: — Que sonhaste esta noite?
Respondeu-me: — Sonhei que me havia perdido numa floresta e finalmente encontrei uma casinha. Abriu-se a porta e você saiu.
E com súbita curiosidade me perguntou: — Diz pra mim. O que é que você estava fazendo nessa casinha?

Francisco Acevedo, in Memórias de um bibliotecário

Encontro

Encontro, num sonho,
um amigo morto. Ele se foi,
eu sei, há tempos, para longe,
mas ainda é o mesmo,
pois os mortos não mudam.
Não envelhecem.
Fui eu quem mudei, me
tornando um estranho diante de quem fui.
Ainda assim, eu, o que mudou,
pergunto: “Como você tem passado?”
Ele sorri e olha para mim.
Eu tenho comido pêssegos
de algumas belas e fortes árvores.”

Wendell Berry

Em Roma, durante a guerra

Se algum dia eu partir para a guerra..” Pois aconteceu, meus netinhos, que um dia eu parti para a guerra. Não, não farei como esses veteranos de cinema que, sentados em suas cadeiras de rodas, contam lances terríveis e arrasam o inimigo a bengaladas. Também não vou afirmar que foi minha presença no teatro de operações que motivou a ruína de Hitler e Mussolini; deixo isso ao julgamento da Posteridade, ou, como dizia o nosso finado imperador, à Justiça de Deus na Voz da História. O zíper da modéstia me fecha a boca.
Contarei hoje apenas uma aventura minha de retaguarda. Um dia, num bar de Roma, havia uma elegante senhora loura que tinha cigarro mas não tinhas fósforos. Um galante correspondente de guerra que estava na mesa ao lado sacou de seu isqueiro e pediu-lhe licença para acender seu cigarro. Depois, com muita delicadeza e timidez, disse que havia chegado aquele dia em Roma, e não conhecia ninguém; queria saber se ela não levaria a mal sua ousadia de convidá-la para sua mesa. Assim eu (que outro não era, como já adivinhastes, o galante correspondente) travei relações com uma espiã, pois é evidente que mulher loura com cigarro e sem fósforo só pode ser espiã. Ela falava um italiano perfeito, o que também faz parte de seu ofício; mas apesar disso perguntei-lhe se era italiana. Disse que era e não era. Bonita resposta, pensei eu, reparando em seus olhos de um azul cinzento, e brinquei: “não vai me dizer que é da Abissínia!” Ela riu; era de Trieste; confessei-lhe que eu era de Cachoeiro de Itapemirim, ela repetiu o nome de minha cidade com tanta graça que me apaixonei.
Dois ou três dias nos encontramos, até que certa noite eu a convidei a jantar no hotel em que eu estava alojado, com os demais correspondentes de guerra — um pequeno e simpático hotel de Via Sistina, perto da Igreja de Trinita del Monti. Estávamos ainda no aperitivo — se lembra, Squeff, daquele rum com limone? — quando ela deixou a mesa um momento para ir ao toalete. Imediatamente aproximou-se de mim um major inglês de grandes bigodes e muito polidamente me pediu que o procurasse mais tarde em seu apartamento no mesmo hotel. Adiantou que trabalhava na contra-espionagem, e que a senhora que estava em minha companhia era suspeita; mas que eu não a deixasse perceber que fora informado disso.
No dia seguinte o major me esclareceu: a minha amiga era tcheca de raça alemã, filha de um industrial ligado aos nazistas.
Prometi ao major transmitir-lhe qualquer pergunta ou pedido suspeito que ela me fizesse; mas eu devia voltar logo para a linha de frente e a minha encantadora mata-harizinha não havia meio de me tentar extorquir o segredo da futura bomba atômica nem o esquema da próxima ofensiva aliada.
No dia seguinte almoçamos num restaurante e tomamos três garrafas de tinto; depois, num bar fiquei a alisar ternamente a sua mão fina, de veias azuis. Mão de espiã — pensava eu —, e senti uma ternura especial, uma fraqueza dentro de mim. Aquele dia mesmo eu ia voltar para a frente, para aquele mundo desagradável de homens, lama e explosões; senti que ia ter saudades dela, e lhe disse isso.
Mão de espiã... Mas além, ou antes de ser uma espiã, ela era também mulher; não tinha nascido espiã; teria tido algum prazer verdadeiro em minha companhia? Foi então que ela me pediu um favor: que através de minha correspondência eu mandasse um recado para um seu tio, que morava em São Paulo, dizendo que ela estava em Roma e pedindo que lhe enviasse, em meu nome, através de meu jornal e do Banco do Brasil, uma determinada importância em dinheiro. Escreveu o nome do tio em um papelzinho e me entregou.
Beijamo-nos na Piazza di Spagna; subi a escadaria lentamente.
Se eu entregasse aquele papelzinho ao major inglês, um homem seria preso em São Paulo; pensei em nossa polícia, nos seus “hábeis interrogatórios”; e se o homem fosse inocente?
Na portaria do hotel liguei para o P. R. O. pedindo um jipe que me levasse ao aeroporto; depois, num impulso, pedi à telefonista que me desse o apartamento do major inglês. Não atendia; mas o porteiro me informou que ele estava no hotel, provavelmente no salão de chá que ficava no terceiro andar. Tomei o elevador, mas então resolvi ir até o meu apartamento arrumar a rriala. Tirei o papelzinho do bolso e fiquei um instante na janela a olhar a paisagem de Roma lá embaixo. O vento ainda era frio, naquele começo de primavera. Fiz uma bolinha com o papelucho e o joguei fora; acompanhei-o com os olhos até que o vi cair num toldo, e depois na rua. E acabou-se a história.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

Hollywood | 9


Vin Marbad vinha altamente recomendado por Michael Huntington, meu fotógrafo oficial. Michael me fotografava constantemente, mas até então não houvera muitos pedidos desses trabalhos.
Marbad era consultor de impostos. Chegou uma noite com sua maleta, um homenzinho moreno. Eu já bebia tranquilamente há algumas horas, sentado com Sarah vendo um filme em minha velha TV preto e branco.
Ele bateu com rápida dignidade e eu o deixei entrar, apresentei-o a Sarah e servi-lhe vinho.
Obrigado – ele disse, tomando um gole. – Você sabe que, aqui na América, se você não gasta dinheiro, eles tomam.
Ééé? Que quer que eu faça?
Dê uma entrada numa casa.
Hum?
Os pagamentos das hipotecas são dedutíveis do imposto de renda.
Ééé, que mais?
Compre um carro. É dedutível.
Todo?
Não, só um pouco. Deixa que eu cuido disso. O que a gente precisa é criar pra você algumas proteções contra os impostos. Veja aqui...
Vin Marbad abriu sua maleta e retirou muitas folhas de papel. Levantou-se e aproximou-se de mim com elas.
Bens imóveis. Aqui, olhe, eu comprei um pouco de terra no Oregon. Isto é um cancelamento de imposto. Ainda tem alguns hectares à venda. Você pode entrar agora. Esperamos uma valorização de 25% cada ano. Em outras palavras, dentro de quatro anos seu dinheiro dobra...
Não, não, por favor volte a sentar.
Que é que há?
Não quero comprar nada que eu não possa ver, não quero comprar nada que não possa alcançar e tocar.
Está dizendo que não confia em mim?
Eu acabo de conhecer você.
Eu tenho recomendações em todo o mundo!
Eu sempre confio em meu instinto.
Vin Marbad girou de volta ao sofá onde deixara seu casaco; enfiou-o e lançou-se para a porta com sua maleta, abriu-a, saiu e fechou-a.
Você ofendeu ele – disse Sarah. – Ele só queria te mostrar algumas maneiras de economizar dinheiro.
Eu tenho duas regras. Uma delas é: jamais confie num cara que fuma cachimbo. A outra: jamais confie num cara de sapato lustroso.
Ele não fumava cachimbo.
Bem, parece um fumador de cachimbo.
Você ofendeu ele.
Não se preocupe, ele vai voltar...
A porta escancarou-se, e lá estava Vin Marbad. Cruzou a sala apressado até seu lugar original no sofá, tornou a tirar o casaco, pôs a maleta a seus pés. Olhou-me.
Michael me disse que você joga nos cavalinhos.
Bem, ééé...
Meu primeiro emprego, quando cheguei aqui, da Índia, foi no Hollywood Park. Era faxineiro lá. Sabe as vassouras que eles usam para varrer os bilhetes usados?
Sei.
Já notou como são largas?
Já.
Bem, isso foi ideia minha. As vassouras eram do tamanho normal. Eu desenhei a nova. Fui ao setor de Operações com ela e eles aproveitaram. Fui promovido pra Operações e venho subindo desde então.
Servi-lhe outra bebida. Ele tomou um gole.
Escuta, você bebe quando escreve?
Sim, um bocado.
Isso é parte da sua inspiração. Vou fazer com que seja deduzido.
Pode fazer isso?
Claro. Sabe, fui eu que comecei a tornar dedutível a gasolina usada no automóvel. Foi ideia minha.
Filho da puta – eu disse.
Muito interessante – disse Sarah.
Dou um jeito de você não pagar imposto nenhum e de modo legal.
Parece ótimo.
Michael Huntington não paga impostos. Pergunte pra ele.
Acredito em você. Abaixo os impostos.
Tudo bem, mas você tem de fazer o que eu digo. Primeiro, dê entrada numa casa, depois num carro. Dê a largada. Arranje um carro bom. Um novo BMW.
Tudo bem.
Em que máquina datilografa? Uma manual?
É.
Arranje uma elétrica. É dedutível.
Eu não sei se consigo escrever numa elétrica.
Você se acostuma em poucos dias.
Quer dizer, não sei se consigo criar numa elétrica.
Quer dizer que tem medo de mudar?
É, ele tem – disse Sarah. – Veja os escritores do século passado, eles usavam penas de aves. Naquele tempo, ele teria se apegado a essas penas, teria lutado contra qualquer mudança.
Penso muito em minha maldita alma.
Você muda suas marcas de bebida, não muda? – perguntou Vin.
Ééé...
Tudo bem, então...
Vin ergueu sua taça, esvaziou-a.
Eu servi mais vinho a todos.
O que a gente precisa é fazer de você uma Corporação, pra conseguir todas as vantagens dos impostos.
Isso soa terrível.
Eu disse a você, se não quer pagar imposto tem de fazer como eu digo.
Eu só quero bater à máquina, não quero andar por aí carregando um fardo enorme.
Você só tem de nomear um Conselho de Diretores, um Secretário, um Tesoureiro, e por aí além... É fácil.
Soa horrível. Escuta, tudo isso soa como um monte de merda. Talvez eu me dê melhor simplesmente pagando os impostos. Não quero ninguém me enchendo o saco. Não quero o cara do imposto de renda batendo em minha porta à meia-noite. Pago até mais pra garantir que me deixem em paz.
Isso é idiotice – disse Vin. – Ninguém deve jamais pagar impostos.
Por que não dá uma chance a Vin? Ele só está querendo te ajudar – disse Sarah.
Veja, eu mando pra você pelo correio os documentos da Corporação. É só ler e assinar. Vai ver que não tem nada a temer.
Essa coisa toda, sabe, atrapalha. Estou trabalhando num argumento e preciso ter as ideias claras.
Um argumento, hum? Sobre o que é?
Um bêbado.
Ah, você, hum?
Bem, tem outros.
Consegui fazer ele beber vinho agora – disse Sarah. – Estava quase morto quando conheci ele. Uísque, cerveja, vodca, gim, ale...
Já sou consultor de Darby Evans há alguns anos. Você sabe, ele é argumentista.
Eu não vou ao cinema.
Ele escreveu O Coelho que Saltou no Céu; Waffles com Lulu; Terror no Zoo. Está fácil na casa dos seis dígitos. E é uma Corporação.
Não respondi.
Não tem pago um vintém de imposto. E é tudo legal...
Dê uma chance a Vin – disse Sarah.
Ergui minha taça.
Tudo bem. Merda. A isso!
Bom garoto – disse Vin.
Esvaziei meu copo e encontrei outra garrafa. Tirei a rolha e servi a todos.
Deixei minha mente ir na coisa; você é um operador esperto. É astuto. Por que pagar bombas que despedaçam crianças indefesas? Dirija um BMW. Tenha uma vista do porto. Vote nos republicanos.
Então me ocorreu outra ideia.
Não estará você se tornando o que sempre odiou?
E veio a resposta:
Merda, você não tem dinheiro de verdade mesmo. Por que não brincar com essa coisa de farra?
Continuamos bebendo, comemorando alguma coisa.

Charles Bukowski, in Hollywood

Paradoxo

Um paradoxo tem valor só quando o não é.

Fernando Pessoa, in Aforismos e afins

Das crenças

Numa de nossas ocasionais conversas fiadas, ontem de noite disse-me o porteiro: “rato depois de velho vira morcego”. Olhei-o atentamente. Era um velho porteiro. Não estava brincando. Devia ser teimoso como todos os velhos. Seria pedante da minha parte tentar convencê-lo de que a sua História Natural não o era muito... Deixá-lo! Afinal, por que os ratos velhos não haveriam de virar morcegos, da mesmíssima forma que as velhas solteironas viram postes de fim de linha? Da mesma forma que os meus leitores desatentos viram fumaça inconsistente e os leitores incrédulos não viram nada... (E daí, você viu ou não viu?!) Pois é uma grande coisa escutar sem contradizer.
Me lembro que, quando menino, nada retruquei quando uma velha cozinheira preta me assegurou que seria muito, muito rica no Céu... Seria loira, também? Já não me lembro.
E, em criaturas de outro estágio cultural, também existem crenças de que não me seria lícito duvidar. Imaginem se, por acaso, com os meus argumentos, eu conseguisse destruí-las! Que teria para lhes dar em troca?
Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança…

Mário Quintana, in Caderno H

Capítulo 60 | O Abraço

Cuidei que o pobre-diabo estivesse doido, e ia afastar-me, quando ele me pegou no pulso, e olhou alguns instantes para o brilhante que eu trazia no dedo. Senti-lhe na mão uns estremeções de cobiça, uns pruridos de posse.
Magnífico! disse ele.
Depois começou a andar à roda de mim e a examinar-me muito.
O senhor trata-se, disse ele. Joias, roupa fina, elegante e... Compare esses sapatos aos meus; que diferença! Pudera não! Digo-lhe que se trata. E moças? Como vão elas? Está casado?
Não.
Nem eu.
Moro na rua...
Não quero saber onde mora, atalhou Quincas Borba. Se alguma vez nos virmos, dê-me outra nota de cinco mil-réis; mas permita-me que não a vá buscar à sua casa. E uma espécie de orgulho... Agora, adeus; vejo que está impaciente.
Adeus!
E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?
E dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto que eu não pude evitá-lo. Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do abraço, enfadado e triste. Já não dominava em mim a parte simpática da sensação, mas a outra.
Quisera ver-lhe a miséria digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra vez o homem de agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo que separa as esperanças de um tempo da realidade de outro tempo...
Ora adeus! Vamos jantar, disse comigo.
Meto a mão no colete e não acho o relógio. Ultima desilusão! o Borba furtara-mo no abraço.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

O homem que escutava as abelhas | Capítulo 2

 

[...]
Pela manhã, o muezim clamou para casas vazias, para que fossem rezar. Saí para tentar achar um pouco de farinha e ovos, antes que o pão acabasse. Arrastei os pés na poeira. Estava muito grossa, era como caminhar na neve. Havia carros incendiados, varais de roupas sujas penduradas em terraços abandonados, fios elétricos balançando baixo nas ruas, lojas bombardeadas, prédios de apartamentos com os telhados explodidos, pilhas de lixo nas ruas. Tudo fedia a morte e borracha queimada. Ao longe, subia uma fumaça, espiralando para o céu. Senti a boca seca, as mãos cerradas e trêmulas, encurralado por aquelas ruas distorcidas. Na terra além, as aldeias estavam queimadas, pessoas jorrando como um rio para ir embora, as mulheres apavoradas porque os paramilitares estavam à solta, e elas temiam ser estupradas. Mas ali, ao meu lado, havia uma roseira damascena totalmente florida. Quando fechei os olhos e senti o perfume, pude fingir, por um instante, não ter visto as coisas que tinha visto.
Ao erguer os olhos do chão, vi que tinha chegado a um posto de controle. Dois soldados achavam-se no meu caminho. Os dois portavam metralhadoras. Um deles usava um keffiyeh xadrez. O outro pegou uma arma na traseira de um caminhão e empurrou-a contra o meu peito.
Pegue – o homem disse.
Tentei imitar o rosto da minha mulher. Não queria demonstrar qualquer emoção. Eles me devorariam por isto. O homem empurrou a arma com mais força contra o meu peito, e eu tropecei, caindo de encontro ao cascalho.
Ele jogou a arma no chão, e olhei para cima, vendo os dois homens em pé sobre mim, e agora o homem com o keffiyeh apontava a arma para o meu peito. Não consegui manter a calma, e pude me ouvir implorando pela minha vida, humilhando-me com os joelhos na terra.
Por favor – eu dizia –, não é que eu não queira. Sentiria orgulho, seria o homem mais orgulhoso do mundo em pegar aquela arma em seu nome, mas minha esposa está doente, gravemente doente, e precisa de mim para cuidar dela. – Mesmo enquanto eu dizia isto, não achava que eles se incomodariam. Por que deveriam? Crianças morriam a cada minuto. Por que eles se preocupariam com minha esposa doente?
Sou forte – eu disse – e inteligente. Trabalharei duro para vocês. Só preciso de alguns dias. É só o que peço.
O outro homem tocou no ombro do homem com o keffiyeh, e ele abaixou a arma.
Da próxima vez em que a gente te vir – disse o outro homem – ou você pega uma arma e fica do nosso lado, ou procure alguém para levar o seu corpo.
Decidi ir direto para casa. Enquanto andava, percebia uma sombra atrás de mim, e não tinha certeza se estava sendo seguido, ou se era a minha mente me pregando peças. Ficava imaginando uma figura encapotada, do tipo que aparece nos pesadelos infantis, pairando sobre a poeira atrás de mim. Mas quando eu me virava, não havia ninguém.
Cheguei em casa e Afra estava sentada na cama de armar, com as costas contra a parede, de frente para a janela, segurando a romã, girando-a, sentindo sua carne. Aguçou os ouvidos quando entrei, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, andei pela casa procurando uma mala, enchendo-a de coisas.
O que está acontecendo? – Seus olhos perscrutando a escuridão.
Vamos embora.
Não.
Se eu ficar, eles me matam.
Eu estava na cozinha, enchendo garrafas de plástico com água da torneira. Embalei uma muda extra de roupas para cada um de nós. Depois, busquei debaixo da cama os passaportes e o dinheiro guardado. Afra não tinha conhecimento dele. Era o dinheiro que Mustafá e eu tínhamos conseguido separar, antes de o negócio fracassar, e eu também tinha um pouco numa conta particular, que eu esperava ainda poder acessar depois que partíssemos. Ela dizia alguma coisa do outro cômodo. Palavras de protesto. Também embalei o passaporte de Sami; não conseguiria deixá-lo aqui. Depois, voltei para a sala com nossas malas.
Fui parado pelo exército. Eles puseram uma arma no meu peito – eu disse.
Você está mentindo. Por que isto nunca aconteceu antes?
Vai ver que antes ainda havia homens mais jovens por aqui. Eles não me notavam. Não tinham motivo para isso. Nós somos os únicos idiotas que sobraram.
Eu não vou.
Eles vão me matar.
Que seja.
Eu disse a eles que precisava de alguns dias para cuidar de você. Eles concordaram em me dar só alguns dias. Se me virem de novo e eu não me juntar a eles, vão me matar. Disseram que eu deveria arrumar alguém para levar o meu corpo.
Quando eu disse isto, seus olhos arregalaram-se e houve um medo súbito em seu rosto, um medo real. Perante a ideia de me perder, talvez pensando no meu cadáver, ela criou vida e levantou-se. Apalpou o caminho pelo corredor e eu fui atrás, sem fôlego, e então ela se deitou na cama e fechou os olhos. Tentei argumentar com ela, mas ela ficou ali deitada como um gato morto, com seu abaya preto e o hijab preto, e aquele rosto pétreo que eu agora desprezava.
Sentei-me na cama de Sami e olhei pela janela; vi o céu cinzento, um cinza metálico, e não havia passarinhos. Fiquei ali o dia todo, a noite toda, até ser engolido pela escuridão. Lembrei-me de como as abelhas operárias viajavam para encontrar novas flores e néctar, e depois voltavam para contar às outras abelhas. A abelha sacudia o corpo, o ângulo da sua dança em relação ao favo contava às outras abelhas a direção das flores em relação ao sol. Desejei que houvesse alguém para me guiar, para me dizer o que fazer e que caminho seguir, mas me senti completamente só.
Pouco antes da meia-noite, deitei-me ao lado de Afra. Ela não tinha se movido um centímetro. Eu tinha a fotografia e a carta debaixo do meu travesseiro. E dessa vez, quando acordei no meio da noite, vi que ela estava de frente para mim, sussurrando meu nome.
O quê? – perguntei.
Escute.
Na frente da casa, passos e vozes masculinas, depois uma risada, uma risada do fundo da garganta.
O que eles estão fazendo? – ela perguntou.
Saí da cama e fui em silêncio até o lado dela, peguei na sua mão ajudando-a a se levantar, levando-a até e porta dos fundos e para o jardim. Ela seguiu sem fazer perguntas, sem hesitação. Bati o pé no chão para encontrar o telhado de metal, depois o deslizei para o lado e ajudei-a a se sentar ao lado da abertura, com as pernas sobre a beirada, de modo a eu poder entrar primeiro e descê-la. Em seguida, puxei o telhado sobre nós.
Nossos pés afundaram em centímetros de água, cheia de lagartos e insetos que tinham feito do espaço sua casa. Eu tinha cavado aquele esconderijo no ano anterior. Afra passou os braços à minha volta e afundou o rosto na curva do meu pescoço. Ficamos assim no escuro, os dois cegos então, naquela cova feita para dois. No silêncio absoluto, o único som restante na terra era a sua respiração. E talvez ela estivesse certa. Talvez devêssemos ter morrido assim, e ninguém precisaria pegar os nossos corpos. Então uma criatura mexeu-se por lá, junto à minha orelha esquerda, e acima de nós, e do lado de fora coisas moveram-se, quebraram-se e estalaram. Agora, os homens deviam ter entrado na casa. Eu podia senti-la tremendo contra mim.
Sabe de uma coisa, Afra? – eu disse.
O quê?
Preciso peidar.
Houve um segundo de silêncio, e então ela começou a rir. Riu e riu junto ao meu pescoço. Foi uma risada silenciosa, mas todo o seu corpo sacudiu-se com ela, e apertei-a mais contra mim, pensando que sua risada era a coisa mais linda que restava na terra. Mas por um instante não consegui dizer, de fato, se ela ainda estava rindo ou se tinha começado a chorar, até sentir meu pescoço molhado de lágrimas. E então sua respiração suavizou-se e ela adormeceu, como se aquele buraco negro fosse o único lugar onde se sentisse segura. Onde a escuridão interior encontrava a escuridão exterior.
Por um tempinho, eu soube o que significava estar cego. E então, as lembranças afloraram, como sonhos, muito ricas em cores. A vida antes da guerra. Afra num vestido verde, segurando Sami pela mão; ele tinha acabado de começar a andar e bamboleava ao lado dela, apontando para um avião que cruzava o frio céu azul. Estávamos indo para algum lugar. Era verão, e ela caminhava na frente, com suas irmãs. Ola usava amarelo. Zeinah, rosa. Zeinah agitava as mãos em volta, enquanto falava, como era seu costume. As outras duas disseram “Oh!”, em uníssono em reação a algo que ela dizia. Havia um homem ao meu lado, meu tio. Pude ver sua bengala, escutar seu tum-tum-tum no cimento. Ele me contava sobre seu trabalho; tinha um café na Velha Damasco, e queria se aposentar agora, mas o filho não queria assumir o negócio, rapaz preguiçoso e ingrato...
Naquele momento, Afra ergueu Sami até o quadril, depois se virou para trás e sorriu, e seus olhos captaram a luz e viraram água. E então, tudo desvaneceu. Onde estavam todas aquelas pessoas, agora?
Pisquei no escuro. Estava impenetrável. Afra suspirou em seu sono. Perguntei a mim mesmo se deveria quebrar seu pescoço, acabar com a sua desgraça, dar-lhe a paz que ela queria. O túmulo de Sami estava nesse jardim. Ela ficaria perto dele. Não precisaria deixá-lo. Ela deixaria de se torturar.
Nuri – ela disse.
Hã?
Eu te amo.
Não respondi, e suas palavras tornaram-se parte da escuridão, deixei que penetrassem no solo, na terra alagada.
Eles vão nos matar? – ela perguntou, com um leve tremor na voz.
Você está com medo.
Não. Estamos muito perto disso, agora.
Então, ouviram-se passos bem próximos, e as vozes ficaram mais altas.
Eu falei para você – um homem disse –, eu falei para não deixar ele ir.
Prendi a respiração e abracei-a com força para ela não se mexer. Pensei em cobrir sua boca com a mão. Não confiava que ela não falaria, não gritaria. Agora era sua escolha: viver ou morrer. Acima, houve movimento, confusão, resmungos, e então, finalmente, os passos afastaram-se. Só depois que Afra soltou a respiração foi que percebi que ela ainda tinha um instinto de vida.
Tinha amanhecido, quando decidi que os homens deviam ter ido embora, fazia algumas horas que não se ouvia um som, e a luz infiltrava-se pelas beiradas do teto de metal, iluminando paredes enlameadas. Abri o telhado e vi o céu, amplo e incólume, o azul de sonhos. Afra estava acordada mas em silêncio, perdida em seu mundo escuro.
Quando entramos em casa, desejei também ser cego. A sala de visitas estava destruída, e as paredes cobertas de grafites. Vencemos ou morremos.
Nuri?
Não respondi.
Nuri... O que eles fizeram?
Vi-a parada em meio às coisas quebradas, uma figura fantasmagórica e escura, ereta, imóvel e cega.
Mas permaneci em silêncio e ela deu um passo à frente, ajoelhou-se, tateando com as mãos. Do chão, pegou um enfeite quebrado: um pássaro de cristal com as palavras 99 nomes para Alá inscritas em ouro numa asa aberta. Presente de casamento da avó. Girou-o nas mãos, como tinha feito com a romã, sentindo suas linhas, suas curvas. Depois, baixinho, como se fosse a voz de uma criança ressuscitada de anos atrás, começou a recitar a lista gravada em sua mente:
O que estabelece a ordem, o conquistador, o que tudo sabe, o que tudo vê, o que tudo cura, o doador da vida, o tomador da vida…
Afra! – eu disse.
Ela pousou o enfeite e inclinou-se à frente, tateando o espaço adiante com os dedos. Então, pegou um carrinho de brinquedo. Eu tinha guardado todos em um armário, algumas semanas depois da morte de Sami. Agora, não tolerava olhar para eles, quebrados e espalhados pelo chão. Havia até um pote de chocolate ali espalhado, a guloseima preferida de Sami, rolando para longe de Afra, e parando ao pé da cadeira. A essa altura devia estar embolorado, mas eu o tinha guardado no armário, junto com todas as coisas que me lembravam ele. Ao perceber que tinha um carrinho de brinquedo na mão, Afra largou-o imediatamente, e virou a cabeça para mim, conseguindo, de algum modo, encarar meus olhos com os dela.
Vou-me embora – eu disse –, quer você venha ou não.
Deixei-a ali e fui buscar nossas malas. Achei-as no quarto, intocadas, pendurei-as nos ombros e voltei para a sala, encontrando-a em pé, no meio do cômodo. Em suas mãos abertas, ela tinha peças coloridas de Lego, remanescentes de uma casa construída por Sami, a casa em que viveríamos ao chegarmos à Inglaterra, ele havia dito, depois de concordar que seria bom ir.
Lá não vai ter bombas – ele havia dito –, e as casas não vão se quebrar, como acontece com estas.
Eu não tinha certeza se ele estava se referindo às casas de Lego ou às casas de verdade, e fiquei triste ao perceber que Sami tinha nascido num mundo onde tudo poderia se quebrar. Casas de verdade desmoronavam, desintegravam-se. Nada era sólido no mundo de Sami. E mesmo assim, de algum modo ele tentava imaginar um lugar onde as construções não caíam a sua volta. Eu tinha guardado a casa de Lego a salvo, no armário, com cuidado, para ter certeza de que estava exatamente como Sami a havia deixado. Até pensei em desmontá-la e remontá-la com cola, para podermos guardá-la para sempre.
Nuri – Afra disse, rompendo o silêncio. – Para mim basta. Por favor, leve-me embora daqui.
E ela ficou ali, com os olhos movendo-se pela sala, como se pudesse ver tudo.

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

O óbvio ululante

Num encontro social que tive com Nelson Rodrigues, disse-lhe que ia lhe fazer algumas perguntas. Mas que, sendo ele homem de muitas facetas, eu lhe pediria apenas uma: a da verdade. Ele aceitou prontamente e cumpriu. Parecia aliás ansioso para dizer algumas verdades. Eu também ando.
Você se inclina mais para a esquerda ou para a direita?
Eu me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude diante de duas coisas: lendo dois volumes sobre a guerra civil na História. Verifiquei então o óbvio ululante: de parte a parte todos eram canalhas. Rigorosamente todos. Eu não quero ser nem canalha de esquerda nem canalha de direita.
Você se referiu à solidão. Você se sente um homem só?
Do ponto de vista amoroso eu encontrei Lúcia. E é preciso especificar: a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal. Mas, diante do resto do mundo sou um homem maravilhosamente só. Uma vez fiquei gravemente doente, doente para morrer. Recebi em três meses de agonia três visitas, uma por mês. Note-se que minha doença foi promovida em primeiras páginas de jornais. Aí eu sofri na carne e na alma esta verdade intolerável: o amigo não existe.
Existe sim, Nelson, foi falta de sorte sua. Eu passei quase três meses no hospital e recebia visitas até de estranhos, e eu não sou o que se chama de simpática. Pergunto-me até o que é que eu dei aos outros para que viessem me fazer companhia. Não, não acredito que não se tenha amigos. É que são raros.
Ou eu dou muito pouco ou os outros não aceitam o que eu tenho para dar.
Mas você tem sucesso real – e sucesso vem quando se dá alguma coisa aos outros. Você dá.
Eu tenho o que chamaria de amigos desconhecidos. São sujeitos que eu nunca vi, que cruzam comigo numa esquina, numa retreta, num velório. Certa vez fui a uma capelinha ver um colega morto. Eram duas horas da manhã. Uma mocinha saiu do velório com um caderninho na mão: quero ter a honra de apertar a mão do autor de A vida como ela é, e me pediu o autógrafo. Senti que estava vivendo um momento de pobre ternura humana. Eis o que eu queria dizer: o amigo possível e certo é o desconhecido com quem cruzamos por um instante e nunca mais. A esse podemos amar e por esses podemos ser amados. O trágico na amizade é o dilacerado abismo da convivência.
Mas Hélio Pellegrino é seu amigo, e Otto Lara Resende é seu amigo.
Não. Eu é que sou amigo de ambos. É possível que um de nós ame alguém. O difícil (não quero dizer impossível) é que esse alguém nos ame de volta. Hoje mesmo almocei com Hélio Pellegrino. Por causa de uma opinião minha, ele, com a sua cálida e bela voz de barítono de igreja, dizia para mim: é mentira, é mentira! Nunca me ocorrera nesta encarnação ou em vidas passadas, chamar Hélio Pellegrino de mentiroso. Naquele momento ele pôs entre nós a mais desesperada e radical solidão da terra. Tal agressividade não devia existir na história da amizade. E o Otto nunca me deu um telefonema! Estou dizendo isso com a maior, a mais honrada, a mais inconsolável amargura.
Isso não quer dizer nada: Otto é meu amigo, e já o provou várias vezes, no entanto é raríssimo um telefonema seu. Nelson, você fala em encarnação e em vidas passadas. Você é esotérico? Ou teosofista? Acredita na reencarnação?
Sou apenas cristão, se é que eu o sou. A única coisa que me mantém de pé é a certeza da alma imortal. Recuso-me a reduzir o ser humano à melancolia do cachorro atropelado. Que pulhas seríamos se morrêssemos com a morte.
Mas aonde vai nossa alma, depois de mortos?
Aí está o mistério e o mistério não impede evidentemente que a alma seja imortal. Você antes me perguntou em quantos empregos eu estava escrevendo. Tenho três colunas diárias, obrigatórias (escrevo muito mais para atender a pedidos insuportáveis): num faço duas crônicas e no outro também faço uma crônica de futebol. Quando vou escrever um romance ou uma peça de teatro estou em plena estafa e tenho que fazer um superesforço. Acho que minhas condições de trabalho são desumanas. Eu me considero um fracassado. Não me realizei nem acho que alguém se realize. Mas a coisa mais importante do mundo é o amor, e, para uma pessoa como indivíduo, é a solidão. Sou um romântico num sentido quase caricatural. Acho que todo amor é eterno e, se acaba, não era amor. Para mim, o amor continua além da vida e além da morte. Digo isso a você e sinto que se insinua nas minhas palavras um ridículo irresistível, mas vivo a confessar que o ridículo é uma das minhas dimensões mais válidas.
Nelson, você tem conversado, como todo mundo, com muitas pessoas. Todas as conversas se parecem com essa nossa?
Não, eu estou fazendo um esforço, um abnegado esforço, para não trapacear com você.
É preciso dizer que, durante os minutos que demorou nossa conversa, ele não sorriu nenhuma vez: com a verdade grave não se sorri, parecia dizer.
Você é um homem de sucesso. Até que ponto o sucesso interfere na sua vida pessoal?
Não interfere justamente porque eu e Lúcia fundamos a nossa solidão.
Você está gostando de conversar comigo?
Profundamente. O que conta na vida são os momentos confessionais.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Piloto de Guerra | I


Sem dúvida, estou sonhando. Estou no ginásio. Tenho quinze anos. Resolvo pacientemente meu problema de geometria. Apoiado na carteira escura, uso direitinho o compasso, a régua, o transferidor. Estou concentrado e tranquilo. Os camaradas, atrás de mim, falam baixinho. Um deles alinha as cifras num quadro negro. Alguns, menos sérios, jogam bridge. De quando em quando, mergulho mais longe no sonho e dou uma espiada pela janela. Um galho de árvore oscila docemente ao sol. Fico olhando muito tempo. Sou um aluno distraído… Sinto prazer em experimentar esse sol, como em saborear esse odor infantil da carteira, do giz, do quadro-negro. Encerro-me com tanta alegria nessa infância bem protegida. Bem sei: primeiro, há a infância, o ginásio, os camaradas, depois chega o dia em que fazemos os exames. Em que recebemos algum diploma. Em que atravessamos, com um aperto no coração, um certo limiar além do qual, subitamente, somos homens. Então o passo fica mais pesado, mais no chão. Já estamos traçando nosso caminho na vida. Testaremos enfim nossas armas em adversários de verdade. A régua, o esquadro, o compasso, nós os usaremos para construir o mundo ou para triunfar sobre os inimigos. Acabaram as brincadeiras!
Sei que, normalmente, um colegial não receia enfrentar a vida. Um colegial esperneia de impaciência. Os tormentos, os perigos, as amarguras de uma vida de homem não intimidam um colegial.
Mas eis que sou um colegial esquisito. Sou um colegial que conhece sua felicidade e que não tem tanta pressa de enfrentar a vida…
Dutertre passa. Eu o convido.
Senta aqui, vou te fazer um truque com o baralho…
E fico feliz em achar seu ás de espadas.
À minha frente, em sua carteira, escura como a minha, Dutertre está sentado com as pernas pendentes. Ele ri. Sorrio modestamente. Pénicot se junta a nós e põe o braço no meu ombro:
E então, meu velho?
Meu Deus, como tudo isso é terno!

Um bedel (é um bedel?) abre a porta para convocar dois camaradas. Eles largam suas réguas, compassos e saem. Nós os seguimos com o olhar. O colégio acabou para eles. Vão soltá-los na vida. Sua ciência será aplicada. Eles vão, como homens, testar em seus adversários os resultados de seus cálculos. Estranho colégio, de onde partimos um de cada vez. E sem grandes despedidas. Esses dois camaradas nem mesmo nos olharam. Porém, os acasos da vida talvez os levem — ou não — mais longe do que à China. Bem mais longe. Quando a vida, depois do colégio, dispersa os homens, eles podem jurar que irão se rever?
Curvamos a cabeça, nós que vivemos ainda na paz quente da incubadora…
Escuta, Dutertre, esta noite…
Mas a mesma porta se abre de novo. E ouço, como um veredicto:
O capitão de Saint-Exupéry e o tenente Dutertre, na sala do comandante.
Acabou o colégio. É a vida.
Você sabia que era a nossa vez?
Pénicot voou esta manhã.
Sem dúvida, partiremos em missão, pois estão nos convocando. Estamos no fim de maio, em plena retirada, em pleno desastre. Sacrificam-se tripulações como se jogassem copos d’água no incêndio de uma floresta. Como calcular os riscos quando tudo desmorona? Somos ainda, para toda a França, cinquenta tripulações de Grande Reconhecimento. Cinquenta tripulações de três homens, das quais vinte e três estão conosco, no Grupo 2/33. Em três semanas, perdemos dezessete tripulações dessas vinte e três. Derretemos como cera. Disse ontem ao tenente Gavoille:
A gente vai ver isso depois da guerra.
E o tenente Gavoille me respondeu:
Meu caro Capitão, você também não tem a pretensão de estar vivo depois da guerra?
Gavoille não estava brincando. Nós bem sabemos que nada podemos fazer além de nos atirar no braseiro, mesmo que num gesto inútil. Somos cinquenta, para toda a França. Sobre nossos ombros deposita-se toda a estratégia do Exército francês. Há uma imensa floresta queimando, e alguns copos d’água a sacrificar para apagá-la: vão sacrificá-los.
Está certo. Quem sonha em reclamar?
Por acaso já se ouviu responder outra coisa, no nosso país, senão: “Positivo, Comandante. Obrigado, Comandante”? Mas há uma impressão que domina todas as outras nesse fim de guerra. É a do absurdo. Tudo rui à nossa volta. Tudo desaba. E é tão total que a própria morte parece absurda. Falta seriedade à morte nessa bagunça…
Entramos na sala do comandante Alias. (Ele comanda ainda hoje, na Tunísia, o mesmo Grupo 2/33.)
Bom dia, Saint-Ex. Bom dia, Dutertre. Sentem-se.
Nós nos sentamos. O Comandante abre um mapa sobre sua mesa e volta-se ao guarda:
Vá buscar a previsão meteorológica.
Depois, ele fica batendo na mesa com seu lápis. Eu o observo. Seus traços estão tensos. Não dormiu. Ele fez a patrulha de carro, em busca de um Estado-Maior fantasma, o Estado-Maior da divisão, o Estado-Maior da subdivisão… Tentou lutar contra os postos de abastecimento que não mandavam as peças de reposição. Acabou preso na estrada em engarrafamentos inextricáveis. Também presidiu à última mudança, à última acomodação, pois mudamos de terreno como miseráveis perseguidos por um guardião inexorável. Alias conseguiu salvar, a cada vez, os aviões, os caminhões e dez toneladas de material. Mas nós vemos que ele está no limite de suas forças e de seus nervos.
Bem, é isso…
Ele continua batendo na mesa e não olha para nós.
É muito chato…
Depois, dá de ombros.
É uma missão chata. Mas eles fazem questão, no Estado-Maior. Discuti, mas fazem questão… É assim.
Dutertre e eu olhamos, através da janela, um céu calmo. Ouço cacarejarem as galinhas, pois a sala do comandante fica ao lado de uma fazenda, como a sala de informações fica numa escola. Não oporei o verão, as frutas amadurecendo, os pintinhos ganhando peso, os trigais se erguendo, à morte tão próxima. Não vejo em que a calma do verão contradiga a morte, nem em que a ternura das coisas seja irônica. Mas uma ideia vaga me ocorre: “É um verão que se estraga. Um verão em pane…”. Vi colheitadeiras abandonadas. Vi ceifadores abandonados. Nos buracos das estradas, carros quebrados abandonados. Vilas abandonadas. Uma fonte de uma vila vazia deixava correr sua água. A água pura se transformava em lodo, a mesma que custara tanto trabalho aos homens. De repente, uma imagem absurda me ocorre. A de relógios quebrados. De todos os relógios quebrados. Relógios das igrejas da vila. Relógios das estações de trem. Pêndulos de lareiras das casas vazias. E, nessa placa de relojoeiro fugido, esse ossuário de pêndulos mortos. A guerra… Não se montam mais os pêndulos. Já não se colhem beterrabas. Não se consertam mais os vagões. E a água, que era captada para a sede, ou para alvejar as belas rendas de domingo das camponesas, espalha-se em lama na frente da igreja. E morre-se no verão…
É como se eu tivesse uma doença. Esse médico acaba de me dizer: “É muito chato”. Seria então preciso pensar no tabelião, nos que ficariam. De fato, nós compreendemos, Dutertre e eu, que se trata de uma missão sacrificada:
Em vista das atuais circunstâncias — conclui o comandante — não podemos considerar demais os riscos…
Lógico. “Demais”, não. E ninguém está errado. Nem nós, de nos sentirmos melancólicos. Nem o comandante, de estar constrangido. Nem o Estado-Maior, de dar as ordens. O comandante reclama porque são ordens absurdas. Nós o sabemos, bem como o próprio Estado-Maior. Mas dá ordens porque é preciso dar ordens. Durante uma guerra, um Estado-Maior dá ordens. Ele as confia a belos cavaleiros ou, mais modernos, a motociclistas. Onde reinavam a bagunça e o desespero, cada um desses belos cavaleiros desce de um cavalo fumegante. Ele mostra o Porvir, como a estrela dos Reis Magos. Ele traz a Verdade. E as ordens reconstroem o mundo.
Este é o esquema da guerra. A imaginária na cor da guerra. E cada um se empenha o mais que pode para fazer com que a guerra pareça guerra. Piamente. Cada um se esforça para aplicar bem as regras. Talvez, então, essa guerra trate de parecer-se com uma guerra.
E a fim de fazer com que ela pareça uma guerra é que nós, tripulantes, nos sacrificamos, sem objetivos precisos. Ninguém admite que essa guerra não se parece com nada, que nada faz sentido, que nenhum esquema se adapta e puxam-se gravemente fios que não mais se comunicam com as marionetes. Os Estados-Maiores expedem com convicção ordens que não levarão a lugar algum. Exigem de nós informações que é impossível colher. A aviação não pode assumir a responsabilidade de explicar a guerra aos Estados-Maiores. A aviação, por suas observações, pode controlar hipóteses. Mas não há mais hipóteses. E solicita-se, de fato, a uns cinquenta tripulantes, que modelem um rosto para uma guerra que não o tem. Dirigem-se a nós como a uma tribo de cartomantes. Olho Dutertre, meu observador-cartomante. Ele retrucava, ontem, a um coronel da divisão: “E como eu vou fazer a dez metros do solo, e a quinhentos e trinta quilômetros por hora, para referenciar as posições? Olha, o senhor verá de onde atiram contra o senhor! Se atirarem no senhor, é porque as posições são alemãs”.
Ri muito — concluía Dutertre, depois da discussão.
Pois os soldados franceses nunca viram aviões franceses. Há uns mil destes, disseminados de Dunquerque à Alsácia. Mais certo dizer que estão diluídos no infinito. Assim, quando, no front, um aparelho passa como uma rajada, com certeza é alemão. É tratar de esforçar-se em abatê-lo antes que solte suas bombas. Só o seu ronco já desencadeia as metralhadoras e os canhões de tiro rápido.
Com esse método, acrescentava Dutertre — vão ser muito preciosas as informações deles…
E vamos levá-las em conta porque, num esquema de guerra, deve-se levar informações em conta.
Sim, mas a guerra também está degringolada.
Felizmente — bem sabemos que não vão dar a menor importância às nossas informações. Não conseguiremos transmiti-las. As estradas estarão congestionadas. Os telefones, quebrados. O Estado-Maior terá sido transferido com urgência. As informações importantes sobre a posição do inimigo será o próprio inimigo quem fornecerá. Nós conversávamos, há alguns dias, perto de Laon, sobre a eventual posição das linhas. Enviamos um tenente para fazer contato com o general. No meio do caminho, entre nossa base e a do general, o carro do tenente bateu num rolo compressor atravessado na estrada, atrás do qual estavam dois carros blindados. O tenente deu meia-volta. Mas uma rajada de metralhadora o matou na hora e feriu o chofer. Os blindados são alemães.

No fundo, o Estado-Maior parece um jogador de bridge a quem perguntaríamos, no cômodo ao lado:
O que devo fazer com a minha dama de espadas?
O isolado daria de ombros. Nada tendo visto do jogo, o que responderia?
Mas um Estado-Maior não tem o direito de dar de ombros. Se ele ainda controla alguns elementos, deve fazê-los agir para mantê-los sob controle e para tentar todas as chances enquanto a guerra durar. Mesmo às cegas, ele deve agir e mandar agir.
Mas é difícil atribuir uma função, ao acaso, a uma dama de espadas. Nós já constatamos, primeiro com surpresa, depois como uma evidência que poderíamos ter previsto: quando começa o desabamento, falta trabalho. Consideramos o vencido submerso numa torrente de problemas, desgastando-se inteiramente para resolvê-los, sua infantaria, artilharia, seus tanques, aviões… Mas a derrota primeiro escamoteia os problemas. Nada mais se sabe do jogo. Não se sabe em que empregar os aviões, os tanques, a dama de espadas…
Nós descartamos casualmente a dama de espadas na mesa, depois de quebrar a cabeça para lhe atribuir um papel eficaz. Reina o mal-estar e não a febre. Somente a vitória se envolve na febre. A vitória organiza, a vitória constrói. E cada um se esfalfa para carregar suas pedras.
Mas a derrota mergulha os homens numa atmosfera de incoerência, de tédio e, acima de tudo, de futilidade.
Pois, primeiramente, essas missões exigidas de nós são fúteis… Cada dia mais fúteis. Mais sangrentas e mais fúteis. Os que dão ordens não têm outros recursos para resistir a um deslizamento de montanha, só lhes resta jogar seus últimos trunfos na mesa.
Dutertre e eu somos trunfos e escutamos o comandante. Ele nos expõe o programa da tarde. Manda-nos sobrevoar, a setecentos metros de altitude, os tanques estacionados na região de Arras, na volta de um longo percurso a dez mil metros, com a mesma voz com que nos diria:
Sigam então pela segunda rua à direita, até a esquina da primeira praça; tem lá uma tababaria; comprem-me fósforos…
Positivo, meu Comandante.
Nem mais nem menos útil, a missão. Nem mais nem menos lírica, a linguagem que a significa.
E digo: “Missão sacrificada”. Eu penso… Eu penso muitas coisas. Esperarei a noite, se estiver vivo, para refletir. Vivo… Quando uma missão está fácil, retorna uma a cada três. Quando é um pouco “chata”, fica mais difícil, evidentemente, voltar. E aqui, no gabinete do comandante, a morte não me parece nem augusta nem majestosa, nem heroica nem dilacerante. Ela é apenas um sinal de desordem. Um efeito da desordem. O Grupo vai nos perder, como se perdem bagagens numa confusão de conexões de estradas de ferro.
E não é que não pense sobre a guerra, sobre a morte, sobre o sacrifício, sobre a França, qualquer outra coisa, mas me falta um conceito diretor, uma linguagem clara. Penso por contradições. Minha verdade está em pedaços e só posso considerá-los um após o outro. Se estiver vivo, esperarei a noite para refletir. A noite bem-amada. À noite, a razão dorme, e simplesmente as coisas são. As que importam verdadeiramente retomam sua forma, sobrevivem às destruições das análises do dia. O homem reata seus pedaços e se torna árvore calma.
O dia é das cenas de briga, mas à noite, aquele que brigou reencontra o Amor. Pois o amor é maior do que o sopro das palavras. E o homem se debruça em sua janela, sob as estrelas, de novo responsável pelos filhos que dormem, pelo pão vindouro, pelo sono da esposa que repousa ali, tão frágil, delicada e passageira. O amor não se discute. Ele é. Que venha a noite e se mostre a mim alguma evidência que mereça o amor. Para que eu pense a civilização, o destino do homem, o gosto da amizade no meu país. Para que eu deseje servir a alguma verdade imperiosa, mesmo que, talvez, ainda inexprimível…
Por enquanto, pareço-me inteiramente com o cristão abandonado pela graça. Eu farei meu papel, com Dutertre, honestamente, isso é certo, mas como se salvam ritos que já não têm mais conteúdo, quando o deus se retirou deles. Esperarei a noite, se puder ainda viver, para andar um pouco a pé na grande estrada que atravessa nossa vila, envolvido em minha solidão bem-amada, a fim de nela reconhecer por que eu devo morrer.

Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra