sexta-feira, 28 de abril de 2023
O pintinho
Foi
talvez de um filme de Walt Disney que nasceu a moda de enfeitar com
pintinhos vivos as mesas de aniversário infantil. Era uma excelente
ideia, no mundo ideal do desenho animado; conduzida para o mundo
concreto dos apartamentos, também alcançou êxito absoluto. Muitos
garotos e garotas jamais tinham visto um pinto de verdade, e queriam
comê-lo, assim como estava, imaginando ser uma espécie de doce
mecânico, mais saboroso. Houve que contê-los e ensinar-lhes noções
urgentes de biologia. As senhoras e moças deliciaram-se com a
surpresa e gula dos meninos, e foram unânimes em achar os pintos uns
amorecos. Mas estes, encurralados num centro de mesa, entre flores
que não lhes diziam nada ao paladar, e atarantados por aquele rumor
festivo e suspeito, deviam sentir-se absolutamente desgraçados.
Como
a celebração do aniversário terminasse, e ninguém sabia o que
fazer com os pintos, pareceu à dona da casa que seria gentil e
cômodo oferecer um a cada criança, transferindo assim às mães o
problema do destino a dar-lhes. O único inconveniente da solução
era que havia mais guris do que pintos, e não foi simples convencer
aos não contemplados que aquilo era brincadeira para guris ainda
bobinhos, e que mocinhas e rapazinhos de nível mental superior não
se preocupam com essas frioleiras.
Os
pintos, em consequência, espalharam-se pela cidade, cada qual com
seu infortúnio e seu proprietário exultante. O interesse das
primeiras horas continuava a revestir-se de feição ameaçadora para
a integridade física dos recém-nascidos (se é que pinto produzido
em incubadora realmente nasce). Um deles foi parar num apartamento
refrigerado, e posto a um canto da copa, sobre uma caixinha de
papelão forrada de flanela. Semeou-se em redor o farelinho
malcheiroso que o gerente do armazém recomendara como alimento
insubstituível para pintos tenros, e que (o pai leu na enciclopédia)
devia ser, teoricamente, farinha de baleia. A ideia da baleia
alimentando o pinto encheu o garotinho de assombro, e pela primeira
vez o mundo lhe apareceu como um sistema.
O
pinto sentia um frio horroroso, mas desprezava a flanela, e a todo
instante se descobria, tentando fugir. Procurava algo que ele mesmo
não sabia se era calor da galinha ou da criadeira. À falta de
experiência, dirigiu seus passinhos na direção das saias que
circulavam pela copa. As saias nada podiam fazer por ele, senão
recolocá-lo em seu ninho, mas o pinto procurava sempre, e piava.
O
garoto queria carregá-lo, inventava comidas que talvez interessassem
àquele paladar em formação. Não, senhor — explicou-lhe a mãe:
— Não
se pode pegar, não se pode brincar, não se pode dar nada, a não
ser farelo e água.
— Nem
carinho?
— Meu
amor, carinho de gente é perigoso para bicho pequeno.
Mas
o pinto, mesmo sem saber, estava querendo era um palmo sujo de terra,
com insetos e plantas comestíveis, o raio de sol batendo na poça
d’água caída do céu, e companhia à sua altura e feição, e,
numa casa assim tão bonita e confortável, esses bens não existiam.
E piava.
A
situação começou a preocupar a dona da casa, que telefonou à
amiga doadora do pinto: que fazer com ele?
— Querida,
procure criá-lo com paciência, e no fim de três meses bote na
panela, antes que vire galo. É o jeito.
Não
virou galo, nem caiu na panela. No fim de três dias, piando sempre e
sentindo frio, o pinto morreu. Foi sua primeira e única manifestação
de vida, propriamente dita.
O
menino queria guardá-lo consigo, supondo que, inanimado, o pinto se
transformara em brinquedo, manuseável. Foi chamado para dentro, e
quando voltou o corpinho havia desaparecido na lixeira.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
O sonho de uma vida
O
diálogo, ocorreu em Androgué. Meu sobrinho Miguel, que tinha cinco
ou seis anos, estava sentado no chão, brincando com a gata. Como
faço todas as manhãs, lhe perguntei: — Que sonhaste esta noite?
Respondeu-me:
— Sonhei que me havia perdido numa floresta e finalmente encontrei
uma casinha. Abriu-se a porta e você saiu.
E
com súbita curiosidade me perguntou: — Diz pra mim. O que é que
você estava fazendo nessa casinha?
Francisco Acevedo, in Memórias de um bibliotecário
Encontro
Encontro,
num sonho,
um
amigo morto. Ele se foi,
eu
sei, há tempos, para longe,
mas
ainda é o mesmo,
pois
os mortos não mudam.
Não
envelhecem.
Fui
eu quem mudei, me
tornando
um estranho diante de quem fui.
Ainda
assim, eu, o que mudou,
pergunto:
“Como você tem passado?”
Ele
sorri e olha para mim.
“Eu
tenho comido pêssegos
de
algumas belas e fortes árvores.”
Wendell Berry
Em Roma, durante a guerra
“Se
algum dia eu partir para a guerra..” Pois aconteceu, meus netinhos,
que um dia eu parti para a guerra. Não, não farei como esses
veteranos de cinema que, sentados em suas cadeiras de rodas, contam
lances terríveis e arrasam o inimigo a bengaladas. Também não vou
afirmar que foi minha presença no teatro de operações que motivou
a ruína de Hitler e Mussolini; deixo isso ao julgamento da
Posteridade, ou, como dizia o nosso finado imperador, à Justiça de
Deus na Voz da História. O zíper da modéstia me fecha a boca.
Contarei
hoje apenas uma aventura minha de retaguarda. Um dia, num bar de
Roma, havia uma elegante senhora loura que tinha cigarro mas não
tinhas fósforos. Um galante correspondente de guerra que estava na
mesa ao lado sacou de seu isqueiro e pediu-lhe licença para acender
seu cigarro. Depois, com muita delicadeza e timidez, disse que havia
chegado aquele dia em Roma, e não conhecia ninguém; queria saber se
ela não levaria a mal sua ousadia de convidá-la para sua mesa.
Assim eu (que outro não era, como já adivinhastes, o galante
correspondente) travei relações com uma espiã, pois é evidente
que mulher loura com cigarro e sem fósforo só pode ser espiã. Ela
falava um italiano perfeito, o que também faz parte de seu ofício;
mas apesar disso perguntei-lhe se era italiana. Disse que era e não
era. Bonita resposta, pensei eu, reparando em seus olhos de um azul
cinzento, e brinquei: “não vai me dizer que é da Abissínia!”
Ela riu; era de Trieste; confessei-lhe que eu era de Cachoeiro de
Itapemirim, ela repetiu o nome de minha cidade com tanta graça que
me apaixonei.
Dois
ou três dias nos encontramos, até que certa noite eu a convidei a
jantar no hotel em que eu estava alojado, com os demais
correspondentes de guerra — um pequeno e simpático hotel de Via
Sistina, perto da Igreja de Trinita del Monti. Estávamos ainda no
aperitivo — se lembra, Squeff, daquele rum com limone? — quando
ela deixou a mesa um momento para ir ao toalete. Imediatamente
aproximou-se de mim um major inglês de grandes bigodes e muito
polidamente me pediu que o procurasse mais tarde em seu apartamento
no mesmo hotel. Adiantou que trabalhava na contra-espionagem, e que a
senhora que estava em minha companhia era suspeita; mas que eu não a
deixasse perceber que fora informado disso.
No
dia seguinte o major me esclareceu: a minha amiga era tcheca de raça
alemã, filha de um industrial ligado aos nazistas.
Prometi
ao major transmitir-lhe qualquer pergunta ou pedido suspeito que ela
me fizesse; mas eu devia voltar logo para a linha de frente e a minha
encantadora mata-harizinha não havia meio de me tentar extorquir o
segredo da futura bomba atômica nem o esquema da próxima ofensiva
aliada.
No
dia seguinte almoçamos num restaurante e tomamos três garrafas de
tinto; depois, num bar fiquei a alisar ternamente a sua mão fina, de
veias azuis. Mão de espiã — pensava eu —, e senti uma ternura
especial, uma fraqueza dentro de mim. Aquele dia mesmo eu ia voltar
para a frente, para aquele mundo desagradável de homens, lama e
explosões; senti que ia ter saudades dela, e lhe disse isso.
Mão
de espiã... Mas além, ou antes de ser uma espiã, ela era também
mulher; não tinha nascido espiã; teria tido algum prazer verdadeiro
em minha companhia? Foi então que ela me pediu um favor: que através
de minha correspondência eu mandasse um recado para um seu tio, que
morava em São Paulo, dizendo que ela estava em Roma e pedindo que
lhe enviasse, em meu nome, através de meu jornal e do Banco do
Brasil, uma determinada importância em dinheiro. Escreveu o nome do
tio em um papelzinho e me entregou.
Beijamo-nos
na Piazza di Spagna; subi a escadaria lentamente.
Se
eu entregasse aquele papelzinho ao major inglês, um homem seria
preso em São Paulo; pensei em nossa polícia, nos seus “hábeis
interrogatórios”; e se o homem fosse inocente?
Na
portaria do hotel liguei para o P. R. O. pedindo um jipe que me
levasse ao aeroporto; depois, num impulso, pedi à telefonista que me
desse o apartamento do major inglês. Não atendia; mas o porteiro me
informou que ele estava no hotel, provavelmente no salão de chá que
ficava no terceiro andar. Tomei o elevador, mas então resolvi ir até
o meu apartamento arrumar a rriala. Tirei o papelzinho do bolso e
fiquei um instante na janela a olhar a paisagem de Roma lá embaixo.
O vento ainda era frio, naquele começo de primavera. Fiz uma bolinha
com o papelucho e o joguei fora; acompanhei-o com os olhos até que o
vi cair num toldo, e depois na rua. E acabou-se a história.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
Hollywood | 9
Vin
Marbad vinha altamente recomendado por Michael Huntington, meu
fotógrafo oficial. Michael me fotografava constantemente, mas até
então não houvera muitos pedidos desses trabalhos.
Marbad
era consultor de impostos. Chegou uma noite com sua maleta, um
homenzinho moreno. Eu já bebia tranquilamente há algumas horas,
sentado com Sarah vendo um filme em minha velha TV preto e branco.
Ele
bateu com rápida dignidade e eu o deixei entrar, apresentei-o a
Sarah e servi-lhe vinho.
– Obrigado
– ele disse, tomando um gole. – Você sabe que, aqui na América,
se você não gasta dinheiro, eles tomam.
– Ééé?
Que quer que eu faça?
– Dê
uma entrada numa casa.
– Hum?
– Os
pagamentos das hipotecas são dedutíveis do imposto de renda.
– Ééé,
que mais?
– Compre
um carro. É dedutível.
– Todo?
– Não,
só um pouco. Deixa que eu cuido disso. O que a gente precisa é
criar pra você algumas proteções contra os impostos. Veja aqui...
Vin
Marbad abriu sua maleta e retirou muitas folhas de papel. Levantou-se
e aproximou-se de mim com elas.
– Bens
imóveis. Aqui, olhe, eu comprei um pouco de terra no Oregon. Isto é
um cancelamento de imposto. Ainda tem alguns hectares à venda. Você
pode entrar agora. Esperamos uma valorização de 25% cada ano. Em
outras palavras, dentro de quatro anos seu dinheiro dobra...
– Não,
não, por favor volte a sentar.
– Que
é que há?
– Não
quero comprar nada que eu não possa ver, não quero comprar nada que
não possa alcançar e tocar.
– Está
dizendo que não confia em mim?
– Eu
acabo de conhecer você.
– Eu
tenho recomendações em todo o mundo!
– Eu
sempre confio em meu instinto.
Vin
Marbad girou de volta ao sofá onde deixara seu casaco; enfiou-o e
lançou-se para a porta com sua maleta, abriu-a, saiu e fechou-a.
– Você
ofendeu ele – disse Sarah. – Ele só queria te mostrar algumas
maneiras de economizar dinheiro.
– Eu
tenho duas regras. Uma delas é: jamais confie num cara que fuma
cachimbo. A outra: jamais confie num cara de sapato lustroso.
– Ele
não fumava cachimbo.
– Bem,
parece um fumador de cachimbo.
– Você
ofendeu ele.
– Não
se preocupe, ele vai voltar...
A
porta escancarou-se, e lá estava Vin Marbad. Cruzou a sala apressado
até seu lugar original no sofá, tornou a tirar o casaco, pôs a
maleta a seus pés. Olhou-me.
– Michael
me disse que você joga nos cavalinhos.
– Bem,
ééé...
– Meu
primeiro emprego, quando cheguei aqui, da Índia, foi no Hollywood
Park. Era faxineiro lá. Sabe as vassouras que eles usam para varrer
os bilhetes usados?
– Sei.
– Já
notou como são largas?
– Já.
– Bem,
isso foi ideia minha. As vassouras eram do tamanho normal. Eu
desenhei a nova. Fui ao setor de Operações com ela e eles
aproveitaram. Fui promovido pra Operações e venho subindo desde
então.
Servi-lhe
outra bebida. Ele tomou um gole.
– Escuta,
você bebe quando escreve?
– Sim,
um bocado.
– Isso
é parte da sua inspiração. Vou fazer com que seja deduzido.
– Pode
fazer isso?
– Claro.
Sabe, fui eu que comecei a tornar dedutível a gasolina usada no
automóvel. Foi ideia minha.
– Filho
da puta – eu disse.
– Muito
interessante – disse Sarah.
– Dou
um jeito de você não pagar imposto nenhum e de modo legal.
– Parece
ótimo.
– Michael
Huntington não paga impostos. Pergunte pra ele.
– Acredito
em você. Abaixo os impostos.
– Tudo
bem, mas você tem de fazer o que eu digo. Primeiro, dê entrada numa
casa, depois num carro. Dê a largada. Arranje um carro bom. Um novo
BMW.
– Tudo
bem.
– Em
que máquina datilografa? Uma manual?
– É.
– Arranje
uma elétrica. É dedutível.
– Eu
não sei se consigo escrever numa elétrica.
– Você
se acostuma em poucos dias.
– Quer
dizer, não sei se consigo criar numa elétrica.
– Quer
dizer que tem medo de mudar?
– É,
ele tem – disse Sarah. – Veja os escritores do século passado,
eles usavam penas de aves. Naquele tempo, ele teria se apegado a
essas penas, teria lutado contra qualquer mudança.
– Penso
muito em minha maldita alma.
– Você
muda suas marcas de bebida, não muda? – perguntou Vin.
– Ééé...
– Tudo
bem, então...
Vin
ergueu sua taça, esvaziou-a.
Eu
servi mais vinho a todos.
– O
que a gente precisa é fazer de você uma Corporação, pra conseguir
todas as vantagens dos impostos.
– Isso
soa terrível.
– Eu
disse a você, se não quer pagar imposto tem de fazer como eu digo.
– Eu
só quero bater à máquina, não quero andar por aí carregando um
fardo enorme.
– Você
só tem de nomear um Conselho de Diretores, um Secretário, um
Tesoureiro, e por aí além... É fácil.
– Soa
horrível. Escuta, tudo isso soa como um monte de merda. Talvez eu me
dê melhor simplesmente pagando os impostos. Não quero ninguém me
enchendo o saco. Não quero o cara do imposto de renda batendo em
minha porta à meia-noite. Pago até mais pra garantir que me deixem
em paz.
– Isso
é idiotice – disse Vin. – Ninguém deve jamais pagar impostos.
– Por
que não dá uma chance a Vin? Ele só está querendo te ajudar –
disse Sarah.
– Veja,
eu mando pra você pelo correio os documentos da Corporação. É só
ler e assinar. Vai ver que não tem nada a temer.
– Essa
coisa toda, sabe, atrapalha. Estou trabalhando num argumento e
preciso ter as ideias claras.
– Um
argumento, hum? Sobre o que é?
– Um
bêbado.
– Ah,
você, hum?
– Bem,
tem outros.
– Consegui
fazer ele beber vinho agora – disse Sarah. – Estava quase morto
quando conheci ele. Uísque, cerveja, vodca, gim, ale...
– Já
sou consultor de Darby Evans há alguns anos. Você sabe, ele é
argumentista.
– Eu
não vou ao cinema.
– Ele
escreveu O Coelho que Saltou no Céu; Waffles com Lulu;
Terror no Zoo. Está fácil na casa dos seis dígitos. E é
uma Corporação.
Não
respondi.
– Não
tem pago um vintém de imposto. E é tudo legal...
– Dê
uma chance a Vin – disse Sarah.
Ergui
minha taça.
– Tudo
bem. Merda. A isso!
– Bom
garoto – disse Vin.
Esvaziei
meu copo e encontrei outra garrafa. Tirei a rolha e servi a todos.
Deixei
minha mente ir na coisa; você é um operador esperto. É astuto. Por
que pagar bombas que despedaçam crianças indefesas? Dirija um BMW.
Tenha uma vista do porto. Vote nos republicanos.
Então
me ocorreu outra ideia.
Não
estará você se tornando o que sempre odiou?
E
veio a resposta:
Merda,
você não tem dinheiro de verdade mesmo. Por que não brincar com
essa coisa de farra?
Continuamos
bebendo, comemorando alguma coisa.
Charles Bukowski, in Hollywood
quinta-feira, 27 de abril de 2023
Das crenças
Numa
de nossas ocasionais conversas fiadas, ontem de noite disse-me o
porteiro: “rato depois de velho vira morcego”. Olhei-o
atentamente. Era um velho porteiro. Não estava brincando. Devia ser
teimoso como todos os velhos. Seria pedante da minha parte tentar
convencê-lo de que a sua História Natural não o era muito...
Deixá-lo! Afinal, por que os ratos velhos não haveriam de virar
morcegos, da mesmíssima forma que as velhas solteironas viram postes
de fim de linha? Da mesma forma que os meus leitores desatentos viram
fumaça inconsistente e os leitores incrédulos não viram nada... (E
daí, você viu ou não viu?!) Pois é uma grande coisa escutar sem
contradizer.
Me
lembro que, quando menino, nada retruquei quando uma velha cozinheira
preta me assegurou que seria muito, muito rica no Céu... Seria
loira, também? Já não me lembro.
E,
em criaturas de outro estágio cultural, também existem crenças de
que não me seria lícito duvidar. Imaginem se, por acaso, com os
meus argumentos, eu conseguisse destruí-las! Que teria para lhes dar
em troca?
Nunca
se deve tirar o brinquedo de uma criança…
Mário Quintana, in Caderno H
Capítulo 60 | O Abraço
Cuidei
que o pobre-diabo estivesse doido, e ia afastar-me, quando ele me
pegou no pulso, e olhou alguns instantes para o brilhante que eu
trazia no dedo. Senti-lhe na mão uns estremeções de cobiça, uns
pruridos de posse.
– Magnífico!
disse ele.
Depois
começou a andar à roda de mim e a examinar-me muito.
– O
senhor trata-se, disse ele. Joias, roupa fina, elegante e... Compare
esses sapatos aos meus; que diferença! Pudera não! Digo-lhe que se
trata. E moças? Como vão elas? Está casado?
– Não.
– Nem
eu.
– Moro
na rua...
– Não
quero saber onde mora, atalhou Quincas Borba. Se alguma vez nos
virmos, dê-me outra nota de cinco mil-réis; mas permita-me que não
a vá buscar à sua casa. E uma espécie de orgulho... Agora,
adeus; vejo que está impaciente.
– Adeus!
– E
obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?
E
dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto que eu não pude evitá-lo.
Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do
abraço, enfadado e triste. Já não dominava em mim a parte
simpática da sensação, mas a outra.
Quisera
ver-lhe a miséria digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra
vez o homem de agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o
abismo que separa as esperanças de um tempo da realidade de outro
tempo...
– Ora
adeus! Vamos jantar, disse comigo.
Meto
a mão no colete e não acho o relógio. Ultima desilusão! o Borba
furtara-mo no abraço.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
O homem que escutava as abelhas | Capítulo 2
[...]
Pela
manhã, o muezim clamou para casas vazias, para que fossem rezar. Saí
para tentar achar um pouco de farinha e ovos, antes que o pão
acabasse. Arrastei os pés na poeira. Estava muito grossa, era como
caminhar na neve. Havia carros incendiados, varais de roupas sujas
penduradas em terraços abandonados, fios elétricos balançando
baixo nas ruas, lojas bombardeadas, prédios de apartamentos com os
telhados explodidos, pilhas de lixo nas ruas. Tudo fedia a morte e
borracha queimada. Ao longe, subia uma fumaça, espiralando para o
céu. Senti a boca seca, as mãos cerradas e trêmulas, encurralado
por aquelas ruas distorcidas. Na terra além, as aldeias estavam
queimadas, pessoas jorrando como um rio para ir embora, as mulheres
apavoradas porque os paramilitares estavam à solta, e elas temiam
ser estupradas. Mas ali, ao meu lado, havia uma roseira damascena
totalmente florida. Quando fechei os olhos e senti o perfume, pude
fingir, por um instante, não ter visto as coisas que tinha visto.
Ao
erguer os olhos do chão, vi que tinha chegado a um posto de
controle. Dois soldados achavam-se no meu caminho. Os dois portavam
metralhadoras. Um deles usava um keffiyeh xadrez. O outro
pegou uma arma na traseira de um caminhão e empurrou-a contra o meu
peito.
– Pegue
– o homem disse.
Tentei
imitar o rosto da minha mulher. Não queria demonstrar qualquer
emoção. Eles me devorariam por isto. O homem empurrou a arma com
mais força contra o meu peito, e eu tropecei, caindo de encontro ao
cascalho.
Ele
jogou a arma no chão, e olhei para cima, vendo os dois homens em pé
sobre mim, e agora o homem com o keffiyeh apontava a arma para
o meu peito. Não consegui manter a calma, e pude me ouvir implorando
pela minha vida, humilhando-me com os joelhos na terra.
– Por
favor – eu dizia –, não é que eu não queira. Sentiria orgulho,
seria o homem mais orgulhoso do mundo em pegar aquela arma em seu
nome, mas minha esposa está doente, gravemente doente, e precisa de
mim para cuidar dela. – Mesmo enquanto eu dizia isto, não achava
que eles se incomodariam. Por que deveriam? Crianças morriam a cada
minuto. Por que eles se preocupariam com minha esposa doente?
– Sou
forte – eu disse – e inteligente. Trabalharei duro para vocês.
Só preciso de alguns dias. É só o que peço.
O
outro homem tocou no ombro do homem com o keffiyeh, e ele
abaixou a arma.
– Da
próxima vez em que a gente te vir – disse o outro homem – ou
você pega uma arma e fica do nosso lado, ou procure alguém para
levar o seu corpo.
Decidi
ir direto para casa. Enquanto andava, percebia uma sombra atrás de
mim, e não tinha certeza se estava sendo seguido, ou se era a minha
mente me pregando peças. Ficava imaginando uma figura encapotada, do
tipo que aparece nos pesadelos infantis, pairando sobre a poeira
atrás de mim. Mas quando eu me virava, não havia ninguém.
Cheguei
em casa e Afra estava sentada na cama de armar, com as costas contra
a parede, de frente para a janela, segurando a romã, girando-a,
sentindo sua carne. Aguçou os ouvidos quando entrei, mas antes que
ela pudesse dizer qualquer coisa, andei pela casa procurando uma
mala, enchendo-a de coisas.
– O
que está acontecendo? – Seus olhos perscrutando a escuridão.
– Vamos
embora.
– Não.
– Se
eu ficar, eles me matam.
Eu
estava na cozinha, enchendo garrafas de plástico com água da
torneira. Embalei uma muda extra de roupas para cada um de nós.
Depois, busquei debaixo da cama os passaportes e o dinheiro guardado.
Afra não tinha conhecimento dele. Era o dinheiro que Mustafá e eu
tínhamos conseguido separar, antes de o negócio fracassar, e eu
também tinha um pouco numa conta particular, que eu esperava ainda
poder acessar depois que partíssemos. Ela dizia alguma coisa do
outro cômodo. Palavras de protesto. Também embalei o passaporte de
Sami; não conseguiria deixá-lo aqui. Depois, voltei para a sala com
nossas malas.
– Fui
parado pelo exército. Eles puseram uma arma no meu peito – eu
disse.
– Você
está mentindo. Por que isto nunca aconteceu antes?
– Vai
ver que antes ainda havia homens mais jovens por aqui. Eles não me
notavam. Não tinham motivo para isso. Nós somos os únicos idiotas
que sobraram.
– Eu
não vou.
– Eles
vão me matar.
– Que
seja.
– Eu
disse a eles que precisava de alguns dias para cuidar de você. Eles
concordaram em me dar só alguns dias. Se me virem de novo e eu não
me juntar a eles, vão me matar. Disseram que eu deveria arrumar
alguém para levar o meu corpo.
Quando
eu disse isto, seus olhos arregalaram-se e houve um medo súbito em
seu rosto, um medo real. Perante a ideia de me perder, talvez
pensando no meu cadáver, ela criou vida e levantou-se. Apalpou o
caminho pelo corredor e eu fui atrás, sem fôlego, e então ela se
deitou na cama e fechou os olhos. Tentei argumentar com ela, mas ela
ficou ali deitada como um gato morto, com seu abaya preto e o hijab
preto, e aquele rosto pétreo que eu agora desprezava.
Sentei-me
na cama de Sami e olhei pela janela; vi o céu cinzento, um cinza
metálico, e não havia passarinhos. Fiquei ali o dia todo, a noite
toda, até ser engolido pela escuridão. Lembrei-me de como as
abelhas operárias viajavam para encontrar novas flores e néctar, e
depois voltavam para contar às outras abelhas. A abelha sacudia o
corpo, o ângulo da sua dança em relação ao favo contava às
outras abelhas a direção das flores em relação ao sol. Desejei
que houvesse alguém para me guiar, para me dizer o que fazer e que
caminho seguir, mas me senti completamente só.
Pouco
antes da meia-noite, deitei-me ao lado de Afra. Ela não tinha se
movido um centímetro. Eu tinha a fotografia e a carta debaixo do meu
travesseiro. E dessa vez, quando acordei no meio da noite, vi que ela
estava de frente para mim, sussurrando meu nome.
– O
quê? – perguntei.
– Escute.
Na
frente da casa, passos e vozes masculinas, depois uma risada, uma
risada do fundo da garganta.
– O
que eles estão fazendo? – ela perguntou.
Saí
da cama e fui em silêncio até o lado dela, peguei na sua mão
ajudando-a a se levantar, levando-a até e porta dos fundos e para o
jardim. Ela seguiu sem fazer perguntas, sem hesitação. Bati o pé
no chão para encontrar o telhado de metal, depois o deslizei para o
lado e ajudei-a a se sentar ao lado da abertura, com as pernas sobre
a beirada, de modo a eu poder entrar primeiro e descê-la. Em
seguida, puxei o telhado sobre nós.
Nossos
pés afundaram em centímetros de água, cheia de lagartos e insetos
que tinham feito do espaço sua casa. Eu tinha cavado aquele
esconderijo no ano anterior. Afra passou os braços à minha volta e
afundou o rosto na curva do meu pescoço. Ficamos assim no escuro, os
dois cegos então, naquela cova feita para dois. No silêncio
absoluto, o único som restante na terra era a sua respiração. E
talvez ela estivesse certa. Talvez devêssemos ter morrido assim, e
ninguém precisaria pegar os nossos corpos. Então uma criatura
mexeu-se por lá, junto à minha orelha esquerda, e acima de nós, e
do lado de fora coisas moveram-se, quebraram-se e estalaram. Agora,
os homens deviam ter entrado na casa. Eu podia senti-la tremendo
contra mim.
– Sabe
de uma coisa, Afra? – eu disse.
– O
quê?
– Preciso
peidar.
Houve
um segundo de silêncio, e então ela começou a rir. Riu e riu junto
ao meu pescoço. Foi uma risada silenciosa, mas todo o seu corpo
sacudiu-se com ela, e apertei-a mais contra mim, pensando que sua
risada era a coisa mais linda que restava na terra. Mas por um
instante não consegui dizer, de fato, se ela ainda estava rindo ou
se tinha começado a chorar, até sentir meu pescoço molhado de
lágrimas. E então sua respiração suavizou-se e ela adormeceu,
como se aquele buraco negro fosse o único lugar onde se sentisse
segura. Onde a escuridão interior encontrava a escuridão exterior.
Por
um tempinho, eu soube o que significava estar cego. E então, as
lembranças afloraram, como sonhos, muito ricas em cores. A vida
antes da guerra. Afra num vestido verde, segurando Sami pela mão;
ele tinha acabado de começar a andar e bamboleava ao lado dela,
apontando para um avião que cruzava o frio céu azul. Estávamos
indo para algum lugar. Era verão, e ela caminhava na frente, com
suas irmãs. Ola usava amarelo. Zeinah, rosa. Zeinah agitava as mãos
em volta, enquanto falava, como era seu costume. As outras duas
disseram “Oh!”, em uníssono em reação a algo que ela dizia.
Havia um homem ao meu lado, meu tio. Pude ver sua bengala, escutar
seu tum-tum-tum no cimento. Ele me contava sobre seu trabalho; tinha
um café na Velha Damasco, e queria se aposentar agora, mas o filho
não queria assumir o negócio, rapaz preguiçoso e ingrato...
Naquele
momento, Afra ergueu Sami até o quadril, depois se virou para trás
e sorriu, e seus olhos captaram a luz e viraram água. E então, tudo
desvaneceu. Onde estavam todas aquelas pessoas, agora?
Pisquei
no escuro. Estava impenetrável. Afra suspirou em seu sono. Perguntei
a mim mesmo se deveria quebrar seu pescoço, acabar com a sua
desgraça, dar-lhe a paz que ela queria. O túmulo de Sami estava
nesse jardim. Ela ficaria perto dele. Não precisaria deixá-lo. Ela
deixaria de se torturar.
– Nuri
– ela disse.
– Hã?
– Eu
te amo.
Não
respondi, e suas palavras tornaram-se parte da escuridão, deixei que
penetrassem no solo, na terra alagada.
– Eles
vão nos matar? – ela perguntou, com um leve tremor na voz.
– Você
está com medo.
– Não.
Estamos muito perto disso, agora.
Então,
ouviram-se passos bem próximos, e as vozes ficaram mais altas.
– Eu
falei para você – um homem disse –, eu falei para não deixar
ele ir.
Prendi
a respiração e abracei-a com força para ela não se mexer. Pensei
em cobrir sua boca com a mão. Não confiava que ela não falaria,
não gritaria. Agora era sua escolha: viver ou morrer. Acima, houve
movimento, confusão, resmungos, e então, finalmente, os passos
afastaram-se. Só depois que Afra soltou a respiração foi que
percebi que ela ainda tinha um instinto de vida.
Tinha
amanhecido, quando decidi que os homens deviam ter ido embora, fazia
algumas horas que não se ouvia um som, e a luz infiltrava-se pelas
beiradas do teto de metal, iluminando paredes enlameadas. Abri o
telhado e vi o céu, amplo e incólume, o azul de sonhos. Afra estava
acordada mas em silêncio, perdida em seu mundo escuro.
Quando
entramos em casa, desejei também ser cego. A sala de visitas estava
destruída, e as paredes cobertas de grafites. Vencemos ou morremos.
– Nuri?
Não
respondi.
– Nuri...
O que eles fizeram?
Vi-a
parada em meio às coisas quebradas, uma figura fantasmagórica e
escura, ereta, imóvel e cega.
Mas
permaneci em silêncio e ela deu um passo à frente, ajoelhou-se,
tateando com as mãos. Do chão, pegou um enfeite quebrado: um
pássaro de cristal com as palavras 99 nomes para Alá
inscritas em ouro numa asa aberta. Presente de casamento da avó.
Girou-o nas mãos, como tinha feito com a romã, sentindo suas
linhas, suas curvas. Depois, baixinho, como se fosse a voz de uma
criança ressuscitada de anos atrás, começou a recitar a lista
gravada em sua mente:
– O
que estabelece a ordem, o conquistador, o que tudo sabe, o que tudo
vê, o que tudo cura, o doador da vida, o tomador da vida…
– Afra!
– eu disse.
Ela
pousou o enfeite e inclinou-se à frente, tateando o espaço adiante
com os dedos. Então, pegou um carrinho de brinquedo. Eu tinha
guardado todos em um armário, algumas semanas depois da morte de
Sami. Agora, não tolerava olhar para eles, quebrados e espalhados
pelo chão. Havia até um pote de chocolate ali espalhado, a
guloseima preferida de Sami, rolando para longe de Afra, e parando ao
pé da cadeira. A essa altura devia estar embolorado, mas eu o tinha
guardado no armário, junto com todas as coisas que me lembravam ele.
Ao perceber que tinha um carrinho de brinquedo na mão, Afra largou-o
imediatamente, e virou a cabeça para mim, conseguindo, de algum
modo, encarar meus olhos com os dela.
– Vou-me
embora – eu disse –, quer você venha ou não.
Deixei-a
ali e fui buscar nossas malas. Achei-as no quarto, intocadas,
pendurei-as nos ombros e voltei para a sala, encontrando-a em pé, no
meio do cômodo. Em suas mãos abertas, ela tinha peças coloridas de
Lego, remanescentes de uma casa construída por Sami, a casa em que
viveríamos ao chegarmos à Inglaterra, ele havia dito, depois de
concordar que seria bom ir.
– Lá
não vai ter bombas – ele havia dito –, e as casas não vão se
quebrar, como acontece com estas.
Eu
não tinha certeza se ele estava se referindo às casas de Lego ou às
casas de verdade, e fiquei triste ao perceber que Sami tinha nascido
num mundo onde tudo poderia se quebrar. Casas de verdade
desmoronavam, desintegravam-se. Nada era sólido no mundo de Sami. E
mesmo assim, de algum modo ele tentava imaginar um lugar onde as
construções não caíam a sua volta. Eu tinha guardado a casa de
Lego a salvo, no armário, com cuidado, para ter certeza de que
estava exatamente como Sami a havia deixado. Até pensei em
desmontá-la e remontá-la com cola, para podermos guardá-la para
sempre.
– Nuri
– Afra disse, rompendo o silêncio. – Para mim basta. Por favor,
leve-me embora daqui.
E
ela ficou ali, com os olhos movendo-se pela sala, como se pudesse ver
tudo.
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
quarta-feira, 26 de abril de 2023
O óbvio ululante
Num
encontro social que tive com Nelson Rodrigues, disse-lhe que ia lhe
fazer algumas perguntas. Mas que, sendo ele homem de muitas facetas,
eu lhe pediria apenas uma: a da verdade. Ele aceitou
prontamente e cumpriu. Parecia aliás ansioso para dizer algumas
verdades. Eu também ando.
– Você
se inclina mais para a esquerda ou para a direita?
– Eu
me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Sou um
sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude
diante de duas coisas: lendo dois volumes sobre a guerra civil na
História. Verifiquei então o óbvio ululante: de parte a parte
todos eram canalhas. Rigorosamente todos. Eu não quero ser nem
canalha de esquerda nem canalha de direita.
– Você
se referiu à solidão. Você se sente um homem só?
– Do
ponto de vista amoroso eu encontrei Lúcia. E é preciso especificar:
a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal. Mas, diante
do resto do mundo sou um homem maravilhosamente só. Uma vez fiquei
gravemente doente, doente para morrer. Recebi em três meses de
agonia três visitas, uma por mês. Note-se que minha doença foi
promovida em primeiras páginas de jornais. Aí eu sofri na carne e
na alma esta verdade intolerável: o amigo não existe.
– Existe
sim, Nelson, foi falta de sorte sua. Eu passei quase três meses no
hospital e recebia visitas até de estranhos, e eu não sou o que se
chama de simpática. Pergunto-me até o que é que eu dei aos outros
para que viessem me fazer companhia. Não, não acredito que não se
tenha amigos. É que são raros.
– Ou
eu dou muito pouco ou os outros não aceitam o que eu tenho para dar.
– Mas
você tem sucesso real – e sucesso vem quando se dá alguma coisa
aos outros. Você dá.
– Eu
tenho o que chamaria de amigos desconhecidos. São sujeitos que eu
nunca vi, que cruzam comigo numa esquina, numa retreta, num velório.
Certa vez fui a uma capelinha ver um colega morto. Eram duas horas da
manhã. Uma mocinha saiu do velório com um caderninho na mão: quero
ter a honra de apertar a mão do autor de A vida como ela é,
e me pediu o autógrafo. Senti que estava vivendo um momento de pobre
ternura humana. Eis o que eu queria dizer: o amigo possível e certo
é o desconhecido com quem cruzamos por um instante e nunca mais. A
esse podemos amar e por esses podemos ser amados. O trágico na
amizade é o dilacerado abismo da convivência.
– Mas
Hélio Pellegrino é seu amigo, e Otto Lara Resende é seu amigo.
– Não.
Eu é que sou amigo de ambos. É possível que um de nós ame alguém.
O difícil (não quero dizer impossível) é que esse alguém nos ame
de volta. Hoje mesmo almocei com Hélio Pellegrino. Por causa de uma
opinião minha, ele, com a sua cálida e bela voz de barítono de
igreja, dizia para mim: é mentira, é mentira! Nunca me ocorrera
nesta encarnação ou em vidas passadas, chamar Hélio Pellegrino de
mentiroso. Naquele momento ele pôs entre nós a mais desesperada e
radical solidão da terra. Tal agressividade não devia existir na
história da amizade. E o Otto nunca me deu um telefonema! Estou
dizendo isso com a maior, a mais honrada, a mais inconsolável
amargura.
– Isso
não quer dizer nada: Otto é meu amigo, e já o provou várias
vezes, no entanto é raríssimo um telefonema seu. Nelson, você fala
em encarnação e em vidas passadas. Você é esotérico? Ou
teosofista? Acredita na reencarnação?
– Sou
apenas cristão, se é que eu o sou. A única coisa que me mantém de
pé é a certeza da alma imortal. Recuso-me a reduzir o ser humano à
melancolia do cachorro atropelado. Que pulhas seríamos se
morrêssemos com a morte.
– Mas
aonde vai nossa alma, depois de mortos?
– Aí
está o mistério e o mistério não impede evidentemente que a alma
seja imortal. Você antes me perguntou em quantos empregos eu estava
escrevendo. Tenho três colunas diárias, obrigatórias
(escrevo muito mais para atender a pedidos insuportáveis): num faço
duas crônicas e no outro também faço uma crônica de futebol.
Quando vou escrever um romance ou uma peça de teatro estou em plena
estafa e tenho que fazer um superesforço. Acho que minhas condições
de trabalho são desumanas. Eu me considero um fracassado. Não me
realizei nem acho que alguém se realize. Mas a coisa mais importante
do mundo é o amor, e, para uma pessoa como indivíduo, é a solidão.
Sou um romântico num sentido quase caricatural. Acho que todo amor é
eterno e, se acaba, não era amor. Para mim, o amor continua além da
vida e além da morte. Digo isso a você e sinto que se insinua nas
minhas palavras um ridículo irresistível, mas vivo a confessar que
o ridículo é uma das minhas dimensões mais válidas.
– Nelson,
você tem conversado, como todo mundo, com muitas pessoas. Todas as
conversas se parecem com essa nossa?
– Não,
eu estou fazendo um esforço, um abnegado esforço, para não
trapacear com você.
É
preciso dizer que, durante os minutos que demorou nossa conversa, ele
não sorriu nenhuma vez: com a verdade grave não se sorri, parecia
dizer.
– Você
é um homem de sucesso. Até que ponto o sucesso interfere na sua
vida pessoal?
– Não
interfere justamente porque eu e Lúcia fundamos a nossa solidão.
– Você
está gostando de conversar comigo?
– Profundamente.
O que conta na vida são os momentos confessionais.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Piloto de Guerra | I
Sem
dúvida, estou sonhando. Estou no ginásio. Tenho quinze anos.
Resolvo pacientemente meu problema de geometria. Apoiado na carteira
escura, uso direitinho o compasso, a régua, o transferidor. Estou
concentrado e tranquilo. Os camaradas, atrás de mim, falam baixinho.
Um deles alinha as cifras num quadro negro. Alguns, menos sérios,
jogam bridge. De quando em quando, mergulho mais longe no sonho e dou
uma espiada pela janela. Um galho de árvore oscila docemente ao sol.
Fico olhando muito tempo. Sou um aluno distraído… Sinto prazer em
experimentar esse sol, como em saborear esse odor infantil da
carteira, do giz, do quadro-negro. Encerro-me com tanta alegria nessa
infância bem protegida. Bem sei: primeiro, há a infância, o
ginásio, os camaradas, depois chega o dia em que fazemos os exames.
Em que recebemos algum diploma. Em que atravessamos, com um aperto no
coração, um certo limiar além do qual, subitamente, somos homens.
Então o passo fica mais pesado, mais no chão. Já estamos traçando
nosso caminho na vida. Testaremos enfim nossas armas em adversários
de verdade. A régua, o esquadro, o compasso, nós os usaremos para
construir o mundo ou para triunfar sobre os inimigos. Acabaram as
brincadeiras!
Sei
que, normalmente, um colegial não receia enfrentar a vida. Um
colegial esperneia de impaciência. Os tormentos, os perigos, as
amarguras de uma vida de homem não intimidam um colegial.
Mas
eis que sou um colegial esquisito. Sou um colegial que conhece sua
felicidade e que não tem tanta pressa de enfrentar a vida…
Dutertre
passa. Eu o convido.
— Senta
aqui, vou te fazer um truque com o baralho…
E
fico feliz em achar seu ás de espadas.
À
minha frente, em sua carteira, escura como a minha, Dutertre está
sentado com as pernas pendentes. Ele ri. Sorrio modestamente. Pénicot
se junta a nós e põe o braço no meu ombro:
— E
então, meu velho?
Meu
Deus, como tudo isso é terno!
Um
bedel (é um bedel?) abre a porta para convocar dois camaradas. Eles
largam suas réguas, compassos e saem. Nós os seguimos com o olhar.
O colégio acabou para eles. Vão soltá-los na vida. Sua ciência
será aplicada. Eles vão, como homens, testar em seus adversários
os resultados de seus cálculos. Estranho colégio, de onde partimos
um de cada vez. E sem grandes despedidas. Esses dois camaradas nem
mesmo nos olharam. Porém, os acasos da vida talvez os levem — ou
não — mais longe do que à China. Bem mais longe. Quando a vida,
depois do colégio, dispersa os homens, eles podem jurar que irão se
rever?
Curvamos
a cabeça, nós que vivemos ainda na paz quente da incubadora…
— Escuta,
Dutertre, esta noite…
Mas
a mesma porta se abre de novo. E ouço, como um veredicto:
— O
capitão de Saint-Exupéry e o tenente Dutertre, na sala do
comandante.
Acabou
o colégio. É a vida.
— Você
sabia que era a nossa vez?
— Pénicot
voou esta manhã.
Sem
dúvida, partiremos em missão, pois estão nos convocando. Estamos
no fim de maio, em plena retirada, em pleno desastre. Sacrificam-se
tripulações como se jogassem copos d’água no incêndio de uma
floresta. Como calcular os riscos quando tudo desmorona? Somos ainda,
para toda a França, cinquenta tripulações de Grande
Reconhecimento. Cinquenta tripulações de três homens, das quais
vinte e três estão conosco, no Grupo 2/33. Em três semanas,
perdemos dezessete tripulações dessas vinte e três. Derretemos
como cera. Disse ontem ao tenente Gavoille:
— A
gente vai ver isso depois da guerra.
E
o tenente Gavoille me respondeu:
— Meu
caro Capitão, você também não tem a pretensão de estar vivo
depois da guerra?
Gavoille
não estava brincando. Nós bem sabemos que nada podemos fazer além
de nos atirar no braseiro, mesmo que num gesto inútil. Somos
cinquenta, para toda a França. Sobre nossos ombros deposita-se toda
a estratégia do Exército francês. Há uma imensa floresta
queimando, e alguns copos d’água a sacrificar para apagá-la: vão
sacrificá-los.
Está
certo. Quem sonha em reclamar?
Por
acaso já se ouviu responder outra coisa, no nosso país, senão:
“Positivo, Comandante. Obrigado, Comandante”? Mas há uma
impressão que domina todas as outras nesse fim de guerra. É a do
absurdo. Tudo rui à nossa volta. Tudo desaba. E é tão total que a
própria morte parece absurda. Falta seriedade à morte nessa
bagunça…
Entramos
na sala do comandante Alias. (Ele comanda ainda hoje, na Tunísia, o
mesmo Grupo 2/33.)
— Bom
dia, Saint-Ex. Bom dia, Dutertre. Sentem-se.
Nós
nos sentamos. O Comandante abre um mapa sobre sua mesa e volta-se ao
guarda:
— Vá
buscar a previsão meteorológica.
Depois,
ele fica batendo na mesa com seu lápis. Eu o observo. Seus traços
estão tensos. Não dormiu. Ele fez a patrulha de carro, em busca de
um Estado-Maior fantasma, o Estado-Maior da divisão, o Estado-Maior
da subdivisão… Tentou lutar contra os postos de abastecimento que
não mandavam as peças de reposição. Acabou preso na estrada em
engarrafamentos inextricáveis. Também presidiu à última mudança,
à última acomodação, pois mudamos de terreno como miseráveis
perseguidos por um guardião inexorável. Alias conseguiu salvar, a
cada vez, os aviões, os caminhões e dez toneladas de material. Mas
nós vemos que ele está no limite de suas forças e de seus nervos.
— Bem,
é isso…
Ele
continua batendo na mesa e não olha para nós.
— É
muito chato…
Depois,
dá de ombros.
— É
uma missão chata. Mas eles fazem questão, no Estado-Maior. Discuti,
mas fazem questão… É assim.
Dutertre
e eu olhamos, através da janela, um céu calmo. Ouço cacarejarem as
galinhas, pois a sala do comandante fica ao lado de uma fazenda, como
a sala de informações fica numa escola. Não oporei o verão, as
frutas amadurecendo, os pintinhos ganhando peso, os trigais se
erguendo, à morte tão próxima. Não vejo em que a calma do verão
contradiga a morte, nem em que a ternura das coisas seja irônica.
Mas uma ideia vaga me ocorre: “É um verão que se estraga. Um
verão em pane…”. Vi colheitadeiras abandonadas. Vi ceifadores
abandonados. Nos buracos das estradas, carros quebrados abandonados.
Vilas abandonadas. Uma fonte de uma vila vazia deixava correr sua
água. A água pura se transformava em lodo, a mesma que custara
tanto trabalho aos homens. De repente, uma imagem absurda me ocorre.
A de relógios quebrados. De todos os relógios quebrados. Relógios
das igrejas da vila. Relógios das estações de trem. Pêndulos de
lareiras das casas vazias. E, nessa placa de relojoeiro fugido, esse
ossuário de pêndulos mortos. A guerra… Não se montam mais os
pêndulos. Já não se colhem beterrabas. Não se consertam mais os
vagões. E a água, que era captada para a sede, ou para alvejar as
belas rendas de domingo das camponesas, espalha-se em lama na frente
da igreja. E morre-se no verão…
É
como se eu tivesse uma doença. Esse médico acaba de me dizer: “É
muito chato”. Seria então preciso pensar no tabelião, nos que
ficariam. De fato, nós compreendemos, Dutertre e eu, que se trata de
uma missão sacrificada:
— Em
vista das atuais circunstâncias — conclui o comandante — não
podemos considerar demais os riscos…
Lógico.
“Demais”, não. E ninguém está errado. Nem nós, de nos
sentirmos melancólicos. Nem o comandante, de estar constrangido. Nem
o Estado-Maior, de dar as ordens. O comandante reclama porque são
ordens absurdas. Nós o sabemos, bem como o próprio Estado-Maior.
Mas dá ordens porque é preciso dar ordens. Durante uma guerra, um
Estado-Maior dá ordens. Ele as confia a belos cavaleiros ou, mais
modernos, a motociclistas. Onde reinavam a bagunça e o desespero,
cada um desses belos cavaleiros desce de um cavalo fumegante. Ele
mostra o Porvir, como a estrela dos Reis Magos. Ele traz a Verdade. E
as ordens reconstroem o mundo.
Este
é o esquema da guerra. A imaginária na cor da guerra. E cada um se
empenha o mais que pode para fazer com que a guerra pareça guerra.
Piamente. Cada um se esforça para aplicar bem as regras. Talvez,
então, essa guerra trate de parecer-se com uma guerra.
E
a fim de fazer com que ela pareça uma guerra é que nós,
tripulantes, nos sacrificamos, sem objetivos precisos. Ninguém
admite que essa guerra não se parece com nada, que nada faz sentido,
que nenhum esquema se adapta e puxam-se gravemente fios que não mais
se comunicam com as marionetes. Os Estados-Maiores expedem com
convicção ordens que não levarão a lugar algum. Exigem de nós
informações que é impossível colher. A aviação não pode
assumir a responsabilidade de explicar a guerra aos Estados-Maiores.
A aviação, por suas observações, pode controlar hipóteses. Mas
não há mais hipóteses. E solicita-se, de fato, a uns cinquenta
tripulantes, que modelem um rosto para uma guerra que não o tem.
Dirigem-se a nós como a uma tribo de cartomantes. Olho Dutertre, meu
observador-cartomante. Ele retrucava, ontem, a um coronel da divisão:
“E como eu vou fazer a dez metros do solo, e a quinhentos e trinta
quilômetros por hora, para referenciar as posições? Olha, o senhor
verá de onde atiram contra o senhor! Se atirarem no senhor, é
porque as posições são alemãs”.
— Ri
muito — concluía Dutertre, depois da discussão.
Pois
os soldados franceses nunca viram aviões franceses. Há uns mil
destes, disseminados de Dunquerque à Alsácia. Mais certo dizer que
estão diluídos no infinito. Assim, quando, no front, um aparelho
passa como uma rajada, com certeza é alemão. É tratar de
esforçar-se em abatê-lo antes que solte suas bombas. Só o seu
ronco já desencadeia as metralhadoras e os canhões de tiro rápido.
— Com
esse método, acrescentava Dutertre — vão ser muito preciosas as
informações deles…
E
vamos levá-las em conta porque, num esquema de guerra, deve-se levar
informações em conta.
Sim,
mas a guerra também está degringolada.
Felizmente
— bem sabemos que não vão dar a menor importância às nossas
informações. Não conseguiremos transmiti-las. As estradas estarão
congestionadas. Os telefones, quebrados. O Estado-Maior terá sido
transferido com urgência. As informações importantes sobre a
posição do inimigo será o próprio inimigo quem fornecerá. Nós
conversávamos, há alguns dias, perto de Laon, sobre a eventual
posição das linhas. Enviamos um tenente para fazer contato com o
general. No meio do caminho, entre nossa base e a do general, o carro
do tenente bateu num rolo compressor atravessado na estrada, atrás
do qual estavam dois carros blindados. O tenente deu meia-volta. Mas
uma rajada de metralhadora o matou na hora e feriu o chofer. Os
blindados são alemães.
No
fundo, o Estado-Maior parece um jogador de bridge a quem
perguntaríamos, no cômodo ao lado:
— O
que devo fazer com a minha dama de espadas?
O
isolado daria de ombros. Nada tendo visto do jogo, o que responderia?
Mas
um Estado-Maior não tem o direito de dar de ombros. Se ele ainda
controla alguns elementos, deve fazê-los agir para mantê-los sob
controle e para tentar todas as chances enquanto a guerra durar.
Mesmo às cegas, ele deve agir e mandar agir.
Mas
é difícil atribuir uma função, ao acaso, a uma dama de espadas.
Nós já constatamos, primeiro com surpresa, depois como uma
evidência que poderíamos ter previsto: quando começa o
desabamento, falta trabalho. Consideramos o vencido submerso numa
torrente de problemas, desgastando-se inteiramente para resolvê-los,
sua infantaria, artilharia, seus tanques, aviões… Mas a derrota
primeiro escamoteia os problemas. Nada mais se sabe do jogo. Não se
sabe em que empregar os aviões, os tanques, a dama de espadas…
Nós
descartamos casualmente a dama de espadas na mesa, depois de quebrar
a cabeça para lhe atribuir um papel eficaz. Reina o mal-estar e não
a febre. Somente a vitória se envolve na febre. A vitória organiza,
a vitória constrói. E cada um se esfalfa para carregar suas pedras.
Mas
a derrota mergulha os homens numa atmosfera de incoerência, de tédio
e, acima de tudo, de futilidade.
Pois,
primeiramente, essas missões exigidas de nós são fúteis… Cada
dia mais fúteis. Mais sangrentas e mais fúteis. Os que dão ordens
não têm outros recursos para resistir a um deslizamento de
montanha, só lhes resta jogar seus últimos trunfos na mesa.
Dutertre
e eu somos trunfos e escutamos o comandante. Ele nos expõe o
programa da tarde. Manda-nos sobrevoar, a setecentos metros de
altitude, os tanques estacionados na região de Arras, na volta de um
longo percurso a dez mil metros, com a mesma voz com que nos diria:
— Sigam
então pela segunda rua à direita, até a esquina da primeira praça;
tem lá uma tababaria; comprem-me fósforos…
— Positivo,
meu Comandante.
Nem
mais nem menos útil, a missão. Nem mais nem menos lírica, a
linguagem que a significa.
E
digo: “Missão sacrificada”. Eu penso… Eu penso muitas coisas.
Esperarei a noite, se estiver vivo, para refletir. Vivo… Quando uma
missão está fácil, retorna uma a cada três. Quando é um pouco
“chata”, fica mais difícil, evidentemente, voltar. E aqui, no
gabinete do comandante, a morte não me parece nem augusta nem
majestosa, nem heroica nem dilacerante. Ela é apenas um sinal de
desordem. Um efeito da desordem. O Grupo vai nos perder, como se
perdem bagagens numa confusão de conexões de estradas de ferro.
E
não é que não pense sobre a guerra, sobre a morte, sobre o
sacrifício, sobre a França, qualquer outra coisa, mas me falta um
conceito diretor, uma linguagem clara. Penso por contradições.
Minha verdade está em pedaços e só posso considerá-los um após o
outro. Se estiver vivo, esperarei a noite para refletir. A noite
bem-amada. À noite, a razão dorme, e simplesmente as coisas são.
As que importam verdadeiramente retomam sua forma, sobrevivem às
destruições das análises do dia. O homem reata seus pedaços e se
torna árvore calma.
O
dia é das cenas de briga, mas à noite, aquele que brigou reencontra
o Amor. Pois o amor é maior do que o sopro das palavras. E o homem
se debruça em sua janela, sob as estrelas, de novo responsável
pelos filhos que dormem, pelo pão vindouro, pelo sono da esposa que
repousa ali, tão frágil, delicada e passageira. O amor não se
discute. Ele é. Que venha a noite e se mostre a mim alguma evidência
que mereça o amor. Para que eu pense a civilização, o destino do
homem, o gosto da amizade no meu país. Para que eu deseje servir a
alguma verdade imperiosa, mesmo que, talvez, ainda inexprimível…
Por
enquanto, pareço-me inteiramente com o cristão abandonado pela
graça. Eu farei meu papel, com Dutertre, honestamente, isso é
certo, mas como se salvam ritos que já não têm mais conteúdo,
quando o deus se retirou deles. Esperarei a noite, se puder ainda
viver, para andar um pouco a pé na grande estrada que atravessa
nossa vila, envolvido em minha solidão bem-amada, a fim de nela
reconhecer por que eu devo morrer.
Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra