Me
falaram de um monge no Itaim. Eu sei que “monge” e “Itaim” na
mesma frase deveria ter disparado um alerta, “perigo, você será
deslavadamente enganada”, mas no desespero a gente tenta de tudo. A
casa antiga estava abarrotada de bonsais, e o monge era gente boa e
servia comida vegetariana orgânica depois das aulas.
A
galera levava sacos de dormir, almofadas, travesseiros, mantas. A
meditação durava duas horas, mas em dez minutos a sala inteira já
estava roncando alto. Senti carinho por aquelas pessoas. Elas não
precisavam de paz interior, elas precisavam de paz exterior. Um cara
estava fugindo para não voltar para casa e encontrar seu bebê
berrando em decibéis que ultrapassavam os limites do amor. Uma
adolescente estava fugindo para não voltar para casa e encontrar uma
mãe que havia transformado suas múltiplas frustrações em
múltiplos motivos para mudar a personalidade da filha. Uma senhora
estava fugindo para não voltar para casa e ouvir o barulho infernal
dos vizinhos adolescentes que tinham montado uma pista de skate no
quarto. Era gente que pagava para dormir por duas horas longe de
casa.
Em
meu terceiro dia na escola Utopia, eu ainda tentando entender o lance
de prender o ar da narina direita com o indicador esquerdo e soltar o
ar da narina esquerda prendendo o ar da narina direita com o
indicador direito (ou nada disso, na verdade), o monge disse que
aumentaria o valor da aula. Ele tinha uma Pajero novinha na garagem,
mas estava tenso com o preço de uma cirurgia que faria. “Coisa
grave?”, alguém perguntou. “Não, eu só não aguento mais ser
prognata e vou reconstruir meu rosto.” Aquilo era muito esquisito.
Ele
tinha cinquenta anos e a namorada, de dezenove, era uma das suas
discípulas. Uma vez ele teve uma iluminação: outra garota, de
vinte e dois anos, que acabara de entrar na escola, era sua alma
gêmea! Mas, como a de dezenove também era sua alma gêmea, ele
entendeu que o cosmos dividiu em duas metades a sua cara-metade. E
que ele só estaria completo com as duas, e elas toparam.
O
monge queria nos convencer a comprar terrenos em Alto Paraíso de
Goiás, único lugar que permaneceria intacto após o fim do mundo.
Queria nos convencer de que uma das alunas, uma menina aparentemente
gente boa e muito tímida, furtava o dinheiro das nossas carteiras
enquanto meditávamos na sala. Ele havia “sentido” que era ela. E
todos passaram a tratar a garota muito mal. Até que ela parou de
frequentar a escola e o dinheiro continuou desaparecendo das
carteiras. Mas estava mesmo desaparecendo? Ninguém sabia direito,
alguém falou que sim. Mas esse alguém falou só porque outro alguém
tinha falado. E a comida não era orgânica, eu descobri ao ver as
embalagens no lixo.
A
sócia do monge era uma professora de ioga extremamente antipática,
bombada e agressiva. Eu tinha medo de ficar de ponta-cabeça (me
sentia insegura e não tinha força suficiente para me manter nessa
posição, já que eram minhas primeiras aulas) e ela simplesmente
desistiu de mim. Não me olhava na cara. Eu já havia sofrido
bullying aos cinco anos, por ter medo de virar cambalhota. Ela estava
trazendo toda aquela angústia à tona de novo, e, por Deus, era só
para ser uma revigorante aula de ioga! Um dia insistiu tanto para que
eu completasse “a invertida”, que dei um coice na cara dela. Sem
querer. O nariz sangrou. Foi o sem querer mais maravilhoso e
assertivo da minha vida.
Me
falaram de uma especialista em constelação familiar que morava em
Cotia. Acho que foi a Renata. Sim, foi ela mesma. Lembrei agora do
meu “penne com aspargos e presunto cru” chegando à mesa
(estávamos no Ritz dos Jardins) quando a Renata bebeu decidida uma
imensa quantidade de suco de abacaxi com hortelã e disse, baixinho,
com medo de o superego dela ouvir e não suportar tanta ingenuidade:
“essa mulher é uma bruxa e mudou a minha vida!”.
Eu
não ia entrar naquela. “Não, não, por favor, nem comece.”
Mesmo quando somos mais cerebrais e cínicos, o místico tem um
apelo. Quando a gente tem trinta e poucos anos e está solteira e sem
grana e tendo vários ataques de pânico por semana, o místico é
como uma boia gigante em formato fálico num mar enegrecido e gelado
(sim, eu repito as frases). “Então não fale nada. Não, por
favor. Cadê o endereço dessa santa?”
Primeiro,
constelei com almofadas. Eu sei, essa frase não faz nenhum sentido
para você. Bem, fiquei numa sala, com várias almofadas na minha
frente. Cada uma era um parente meu. E eu tinha que dizer àquelas
almofadas-parentes que eu era eu, e elas-eles eram elas-eles. E que
eu não merecia carregar, em minha vida de terríveis dores nas
costas, as mochilas de frustrações e paranoias delas-deles.
A
bruxa-terapeuta espalhou as diferentes almofadas (pequenas,
coloridas, fofas, gordas, com pelos, velhas, mofadas, de veludo,
feitas à mão, compradas em promoções da MMartan, importadas) por
todos os cantos da sala e eu tinha que, numa espécie de transe
guiado por ela, me posicionar em cima de cada uma e narrar o que eu
sentia. Fiquei tentando adivinhar o parente pela “cara” da
almofada (a amarela, certeza, era Cidinha, minha tia-avó que teve
hepatite e nunca mais voltou à coloração original), mas a
terapeuta olhou para mim e, muito sincera e fria, disse: “com
cinismo meu trabalho não funciona”.
O
intuito era proclamar minha independência, qual um Pedro I que toma
coragem para se tornar rei de si mesmo, perante almofadas que
representavam meus parentes, os vivos e os mortos. Eu seria então,
por fim, um ser liberto da ziquizira energética e interestelar de
todos eles.
Quando
cheguei a uma almofada rosa e gordinha, comecei a chorar e agarrei a
almofadinha azul que estava ao lado. Eu chorava e abraçava a
almofadinha e falava sem parar: “meu filho, meu filho, meu filho”.
A terapeuta me disse que aquelas eram, respectivamente, “minha avó
e o filho que ela havia perdido ainda bebê”. Por uns dias fiquei
estranha, deprimida.
Na
sessão seguinte, durante ao menos uma hora repeti exaustivamente à
almofada-minha-mãe que eu já era adulta. Até que minha voz começou
a soar como a de uma criança e foi assustador. Expliquei à
minha-mãe-almofada que éramos pessoas distintas. Depois, eu deitada
no chão com a almofada-minha-mãe em cima, a bruxa-terapeuta fez uma
espécie de “corte atrasado de cordão umbilical”. Senti alívio
quando ela tirou a almofada-minha-mãe de cima de mim, não posso
negar, mas talvez o fato de a almofada estar cheia de pó e eu sofrer
de rinite tenha contado alguns pontos.
Foi
tudo muito simbólico e interessante (assim como foi em alguns
momentos, preciso ser honesta, com o monge queixudo), mas continuei
roendo o peito com o cérebro (unhas e dentes são para iniciantes).
Me
falaram então do “papa da acupuntura para ansiedade”. Um
tiozinho metido a galã, que me atendia ouvindo Soundtrack Music
from Woody Allen’s Movies. Ele contava como sua casa na Granja
Viana era enorme, como ele ficara impressionado com a China, que era
enorme, e dizia que a minha sensibilidade era uma coisa enorme e
bonita. Eu tinha certeza, mesmo não tendo formação em psicanálise,
que ele estava tentando me falar do tamanho do seu pau.
Demorei
três sessões para entender que não se cura ansiedade espetando
virilhas. Quando ele me disse que, “se eu tirasse o sutiã,
facilitava o seu trabalho”, comecei a achar estranho, mas fiquei
com medo de que se tratasse de meu eterno pé-atrás com as pessoas.
Minha última sessão foi quando esse homem, depois de encher meu
corpo inteiro com agulhas, dos pés até a testa, resolveu massagear
minha nuca e falar “ommm” rouco e baixinho na minha orelha. Eu
disse que estava atrasada para uma reunião, que era para ele tirar
aquele monte de agulhas de mim, e ele respondeu, encenando a timidez
de um garoto trinta anos mais novo, que tinha pensando muito em mim
no sábado anterior: “o que será que aquela menina magrinha tá
fazendo?”.
Me
falaram de um curso cujo nome era Dançando com as Árvores. Um
encontro de gente deprimida e ansiosa numa casa em Atibaia. Devíamos
ir com roupas bem confortáveis, e o tratamento consistia em nove
passos: 1) mentalizar a coisa; 2) abraçar a coisa; 3) abraçar o
coleguinha e a coisa dele; 4) dançar para a coisa; 5) dançar para a
coisa do coleguinha; 6) nos transformar no animal que estivéssemos a
fim; 7) deixar o animal ser selvagem pelo meio do mato; 8) gritar e
nos chacoalhar para nos livrar da coisa; 9) ficar deitados, também
no meio do mato, pensando sobre tudo isso.
Parei
de frequentar o curso por cinco motivos: 1) as pessoas fediam; 2) as
pessoas eram completamente deprimidas e ansiosas; 3) eu não fedia
nem era tão deprimida e ansiosa; 4) fazer parte de uma espécie de
seita é coisa para esquisito sem amigo; 5) onde eu estava com a
cabeça?
Me
falaram de um troço chamado Fisioterapia GDS Aplicada na Dança
Indígena. Depois de me masturbar quatro vezes em menos de dois dias
pensando no professor (um negro de olhos verdes cuja mão era
exatamente do tamanho da minha articulação coxofemoral — sei
porque ele sempre tocava nela), parei de ir. Fui correr no
Ibirapuera, naquelas equipes de corrida do Ibirapuera, mas tenho
horror a playboy e a publicitário e horror bem específico a playboy
publicitário, então desencanei. Tentei kickboxing, mas chutaram meu
rim e disseram: “vai mijar e, se não sair sangue, volta pra mais,
patricete”, e não terminei a primeira aula.
Me
falaram de um “psiquiatra espírita”, famoso na região da Vila
Mariana. O cara é da USP e tudo mais. Depois de eu narrar por uma
hora manias, crises de pânico, fobias e angústias extremas, ele
chamou a equipe de “passistas” (sim, também pensei que entrariam
sambistas extremamente gostosas, mas era a galera que dava passe) e
deu o diagnóstico: fui estuprada na outra encarnação.
Estou
há três meses tomando gotas de ouro, gotas de Avena sativa, gotas
de Passiflora alata, gotas de Valeriana radix, gotas de
Curcuma xantho. Ainda não senti nada. Tentei maconha na época
da faculdade, mas não senti nada. Tentei maconha de novo, só que
mais, e eu já mais velha, e não senti nada. Tentei de novo, muito
mais, e não senti nada. Quem estava comigo disse que fiquei
paranoica demais por não sentir nada, então vai ver senti alguma
coisa. Mas, como era paranoia, nunca mais tentei. Nunca tive coragem
de tomar nenhuma outra droga, porque tenho muito medo de drogas “sem
um laboratório com SAC pra poder reclamar”. (Sim, aqui estou me
repetindo.) Se a Bayer produzir heroína, me chamem. Se a injeção
da endoscopia começar a ser vendida no Pão de Açúcar, também
estou dentro. Se a Onofre entregar ayahuasca, me avisem.
Segundo
todas as cartomantes e tarólogas e astrólogas que consultei: com o
tempo essa ansiedade passa. Sim, todo mundo morre um dia.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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