Quase
não era canto, no sentido em que este é aproveitamento musical da
voz. Quase não era voz, no sentido em que esta tende a dizer
palavras. O canto flamenco é antes da voz ainda, é fôlego humano.
Uma palavra ou outra às vezes escapava, revelando de que era feita
aquela mudez cantada: de história de viver, amar, e morrer. Essas
três palavras não ditas eram interrompidas por lamentos e
modulações. Modulações de fôlego, primeiro estágio de voz que
capta o sofrimento no seu primeiro estágio de gemido, e capta a
alegria também no seu primeiro estágio de gemido. E de grito. E
mais outro grito, este de alegria por se ter gritado. Em torno, a
assistência aconchega-se escura e suja. Depois de uma das modulações
que de tão prolongada morre em suspiro, o grupo esgotado como o
cantor murmura um olé em amém, última brasa.
Mas
há também o canto impaciente que a voz apenas não exprime: então
um sapateado nervoso e firme o entrecorta, o olé que o interrompe a
cada instante não é mais amém, é incitamento, é touro negro. O
cantor, de dentes quase cerrados, dá à voz a cegueira da raça, mas
os outros exigem mais e mais, até conseguirem o instante de espasmo:
Espanha.
Ouvi
também o canto ausente. É feito de um silêncio cortado de gritos
da assistência. Dentro da clareira de silêncio, em semente ardente,
um homem pequeno, seco, escuro, de mãos nas ilhargas, cabeça
atirada para trás, marca com o duro taco dos sapatos o ritmo
incessante do canto ausente. Nenhuma música. E nem é uma dança. O
sapateado é antes da dança organizada – é o corpo
manifestando-se, pés transmitindo até à ira em linguagem que
Espanha entende. A assistência se concentra em fúria no próprio
silêncio. De quando em quando a provocação rouca de uma cigana,
toda de carvão e trapos vermelhos, em quem a fome se tornou ardor e
ameaça. Não era espetáculo, não se assistia: quem ouvia era tão
essencial como quem batia os pés em silêncio. Até à exaustão,
comunicam-se durante horas através dessa linguagem que, se algum dia
teve palavras, estas foram se perdendo pelos séculos – até que a
tradição oral passou a ser transmitida de pai para filho apenas
como ímpeto de sangue.
E
vi o par da dança flamenca. Não sei de outra em que a rivalidade
entre homem e mulher se pusesse tão a nu. Tão declarada é a guerra
que não importam os ardis: por momentos a mulher se torna quase
masculina, e o homem a olha admirado. Se o mouro em terra espanhola é
o mouro, a moura perdeu diante da aspereza basca a moleza fácil: a
moura espanhola é um galo até que o amor a transforme em Maja.
A
conquista difícil nessa dança. Enquanto o dançarino fala com os
pés teimosos, a dançarina percorrerá a aura do próprio corpo com
as mãos em ventarola: assim ela se imanta, assim ela se prepara para
tornar-se tocável e intocável. Mas, quando menos se espera, sua
botina de mulher avançará e marcará de súbito três pancadas. O
dançarino se arrepia diante dessa crua palavra, recua, imobiliza-se.
Há um silêncio de dança. Aos poucos o homem ergue de novo os
braços e, precavido – com temor e não pudor –, tenta com as
mãos espalmadas sombrear a cabeça orgulhosa da companheira.
Rodeia-a várias vezes e por momentos já se expõe quase de costas
para ela, arriscando-se quem sabe a que punhalada. E se não foi
apunhalado é que a dançarina de súbito reconheceu-lhe a coragem:
este então é o seu homem. Ela bate os pés, de cabeça erguida, em
primeiro grito de amor: finalmente encontrou seu companheiro e
inimigo. Os dois recuam eriçados. Reconheceram-se. Eles se amam.
A
dança propriamente dita se inicia. O homem é moreno, miúdo;
obstinado. Ela é severa e perigosa. Seus cabelos foram esticados,
essa vaidade da dureza. É tão essencial essa dança que mal se
compreende que a vida continue depois dela: este homem e esta mulher
morrerão. Outras danças são a nostalgia dessa coragem. Esta dança
é a coragem. Outras danças são alegres. A alegria desta é séria.
Ou a alegria é dispensada. É o triunfo mortal de viver o que
importa. Os dois não riem, não se perdoam. Compreendem-se? Nunca
pensaram em se compreender, cada um trouxe a si mesmo como único
estandarte. E quem for vencido – nessa dança os dois são vencidos
– não se adoçará na submissão, terá aqueles olhos espanhóis,
secos de amor e raiva. O esmagado – os dois serão esmagados –
servirá vinho ao outro como um escravo. Embora nesse vinho, quando
vier a paixão do ciúme, possa estar o veneno da morte. O que
sobreviver se sentirá vingado. Mas para sempre sozinho. Porque só
esta mulher era a sua inimiga, só este homem era o seu inimigo, e
eles se tinham escolhido para a dança.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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