quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Capítulo doze | Visita ao fazedor de covas


Se eu não creio em Deus? Lá crer, creio.
Mas acreditar, eu acredito é no Diabo.
 Avô Mariano 

Curozero Muando não me vê chegar. Encosto-me ao tronco da mafurreira enquanto o observo. O coveiro está sentado junto a uma fogueira, pernas abertas quase a roçar as chamas. Sobre o lume está uma lata de água fervendo. Curozero recebe os vapores em pleno rosto. Tais são os calores que atédos olhos parece transpirar. É assim que os coveiros fazem para se purificarem. Mexem em poeira dos mortos, por isso devem ser lavados por águas que não escorreram por cima de nenhuma terra.
O homem está nu e não parece incomodado com a minha presença. Depois de um tempo ele es tremece como se tivesse frio. Levanta-se e enxuga a cabeça com um pano enquanto fala sem me olhar: – É a mim que vem procurar?
Sim, há outro coveiro por aqui?
No outro lado do céu existem também os coveiros. Ou melhor, os descoveiros.
Despreza a minha ignorância. Que eu não sabia, mas a gente enterra aqui os mortos e eles, lá, nos aléns, os desenterram e os celestiam.
Sim, é o serviço deles. E o seu serviço qual é?
O meu serviço?
Sim, o que vem aqui fazer? Ou alguma vez você falaria comigo caso não houvesse uma dificuldade?
Ora, Curozero, eu vim aqui...
Não precisa arranjar desculpa. Não se conversa com o coveiro, é assim. Por isso, a minha irmãzinha, de tanto escutar ausências, acabou ficando sem as devidas falas.
Mas a profissão, diz ele, tem sua ciência. O coveiro repuxa brilhos de sua carreira. E explica quanto complexa é a engenharia de covar. Abrir o buraco, aquele buraco, não é coisa simples. A gente inclina-se da seguinte maneira, e ele exemplifica: perna traseiramente colocada, dorso entortado e o rosto inclinado, mas nunca olhando o chão, isso nunca. A pá movendo-se para baixo sem golpear o ar, não, que isso de forçar o golpe é ferir a terra sem necessidade. O pé é que assenta na borda da lâmina para que se cumpra o golpe como se de um carinho se tratasse.
Isto é arte. É como você quando deita um papel na secretária e lhe ajeita umas escritas.
Pois eu, caro Curozero, venho aqui para saber da sua ideia, você que mexe com falecimento: acha que meu Avô está realmente morto? – Na minha actual existência, eu já não tenho ideias. Só lembranças.
E lembrava muito, lembrava mais do que vivera. Como esses que guardam pouco e tiram muito. Recordava mais era os olhos das pessoas quando compareciam no cemitério para assistir ao enterro dos parentes, dos amigos. Sim, lembrava a assustada tristeza, o desamparo dessa solidão. Nesse momento tudo se torna repentino, um fio de aranha. Até esse respeitoso medo, porém, estava mudando, com o desregrar dos tempos.
Antes vinham aqui pôr flores. Agora, vêm roubar os mortos. Nem os deuses eles respeitam.
O que acha que aconteceu com meu Avô? O melhor seria eu nunca saber. Porque aquilo era coisa que não se explicava por palavras. O coveiro faz o possível para me dissuadir: – Você ficou muito tempo fora. Agora, é um mulungo. Sabe o que lhe digo? Um dedo só não apanha pulga.
O que quer dizer isso? – Falta sempre o outro dedo.
Falta sempre um outro dedo, repete. Esse dedo está para além de toda a mão. E mais, me aconselha: eu que não procurasse demasiado. Aprendesse a deixar os mistérios no seu devido estado. O homem sábio é o que sabe que há as coisas que nunca vai saber. Coisas maiores que o pensamento.
E depois, qual é o problema: se a terra é dura, enterra-se o homem bem vivo.
Mas eu não quero enterrar o Avô...
Outros querem.
Curozero olha o infinito, encolhe os ombros e faz estalar a língua antes de falar. Por fim, ele me acende o entendimento que eu tanto carecia: que aquela morte era sequente a uma vida mal vivida. Meu Avô cometera uma grande ofensa.
Que ofensa?
É segredo que está indo com ele.
Enterrá-lo, assim, nesse estado de morto aborta do constituiria sério atentado contra a Vida. Em vez de nos proteger, o defunto iria desarranjar o mundo. Até a chuva ficaria presa, encarcerada nas nuvens.
E a terra secaria, o rio se afundaria na areia. Ele era um morrido em deficiência, um relâmpago que ficara por abençoar.
Se me deixarem eu sei como proceder.
E como é? – Este não é assunto de terra mas de água. Os seus mais-velhos bem sabem. Pergunte-lhes.
É então que reparo na moça, a mesma que eu vira antes com Tio Ultímio. Usa a mesma capulana verde, o mesmo gesto tímido. Avança junto ao muro, vai roçando um ramo de flores na parede. As pétalas vão caindo, em desperdício, pelo chão.
Esta é Nyembeti, minha irmã. É bonita, não é? Curo zero dirige-me a pergunta e fica-me olhando inquisitivo. Algo me ordena que não reaja. Meu olhar percorre os céus, distraidamente. O coveiro insiste: – Até dói a beleza dela. Problema sabe qual é? É que essa moça não fala direito, a língua tropeça na boca, a boca tropeça-lhe na cabeça.
Ela não fala mesmo nada? – ainda pergunto, a medo.
Não, ela fala é o nada.
Não entendo, Curozero.
Minha irmã, Nyembeti, nunca usou nenhuma ideia.
Vai-se vestindo enquanto disserta sobre a irmã.
Que ela usava o pensamento como o crocodilo engole a pedra. Servindo só para lhe dar peso na existência, tocar o fundo sem esforço. Quando tinha precisão do ar ela regurgitava a pedra, e mais leve, vinha à superfície.
Pamba! – ordena ele a Nyembeti. – Queremos falar sozinhos.
A moça debruça-se sobre mim e oferece-me uma flor. Sacode-a antes de me a entregar. As pétalas chovem sobre o chão.
Mali! Ni kumbela mali.
A moça até se baba para desembrulhar a fala.
Aquelas as palavras, eu ainda me lembrava. Eram aquelas as exactas palavras que ela tinha malbuciado no encontro com Ultímio.
O que é que ela está dizendo? Traduza-me, por favor.
Ela está a pedir dinheiro. É a única coisa quesabe falar! O coveiro encolhe os ombros, com um sorriso meio divertido, e remata: – É o que ela fala, agora: os dialectos da miséria.
A irmã se afasta. Vai ajeitando a capulana na cintura, ora soltando-a, ora apertando. O corpo, cheio de formato, me desperta. Por baixo do pano ela está completamente nua? O coveiro surpreende o meu interesse: – Não deite devaneio nessa rapariga. É um aviso de amizade! – e depois de uma pausa, prossegue: – E agora lhe quero pedir uma coisa.
Pode pedir, Curozero.
Já viu que sou o único coveiro aqui. Agora, lhe pergunto: quando eu morrer quem me vai sepultar a mim? Engoli um deserto, adivinhando o pedido. Curozero me encomendava o serviço de o enterrar. E parecia falar sério, como se reclamasse promessa jurada.
O senhor me fará esse serviço?
Eu?
Gargalhou e me palmeou as costas. Eu que estivesse descansado, aqui era só um exame para me avaliar.
Eu não careço de ser enterrado.
Espreito a ver se ainda vislumbro a bela moça.
E ela lá está. Deve saber que eu a espreito pois deixa cair a capulana. Meu ofegante coração confirma que ela não usava nada por baixo. Curozero interrompe-me as visões: – E já agora, aproveitando que está aqui: venha, lhe quero mostrar uma obra minha, a minha maior.
Leva-me para os fundos do terreno, bem junto ao muro traseiro. Aponta uma campa. Ali jazia Juca Sabão. Curozero abrira a cova para seu próprio pai, o velho Sabão. Não chorou, foi até a vez que melhor escavou. Estava a Ilha inteira olhando para ele. Tinha que mostrar que ser coveiro era profissão de competência e honra. Não é um qualquer que executa tais serviços. E nem lágrima, nem suspiro. O funeral se completou, todos se retiraram, o cemitério ficou vazio. Nessa noite choveu, ele sabia que não era apenas chuva. Saiu de casa, dirigiu-se ao cemitério e sentou-se junto à campa. Enquanto a água escorria pelo corpo ele chorou, chorou e chorou. Chorou sem parar enquanto choveu. Até que já nada lhe doía mais. Tinha sido lavado, os céus lhe tinham retirado saudades e silêncios.
Terem disparado assim contra Juca Sabão, balas de queimar roupa sobre uma vida inocente, era coisa nunca testemunhada em Luar-do-Chão. Mas vingança haveria de chegar. A bala tem sempre duas pontas. Morre a vítima, de um lado. Do outro, sucumbe sempre o próprio matador. Muita coisa o coveiro já aprendera. A morte é o escuro: quem disse? Pois ele mesmo, Curo zero Muando, certa vez estivera no parapeito de um falecimento, no resvés de si mesmo. Enquanto dormia, fora atacado por hiena Le salvara-se pelo triz. Reunira toda a família e explicara: a morte, sim, era o intensíssimo clarão, o deflagrar de estrela. Um sol entrado na vista, ao ponto de tudo ser visível só por sombra. Dito e redito: a sombração, o acontecer do já havido futuro.
A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra, pulmões adentro. A pessoa morre é engasgada em nuvem.
Volto a espreitar a ver se ainda vislumbro a bela Nyembeti. Mas não. Só resta a capulana estendida a secar, movendo-se em balanço sensual. Toda a roupa recebe a alma de quem a usa.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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