domingo, 15 de janeiro de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 28


Não é necessário tecer um relato extenso de tudo que sofremos no pequeno bote durante os vários dias em que fomos jogados e arrastados a esmo pelo oceano. O vento forte soprou do noroeste por vinte e quatro horas, acalmou-se e depois surgiu novamente do sudoeste. Era a direção contrária ao nosso rumo, mas recolhi a âncora improvisada e armei as velas, bolinando o bote em um curso que nos levou para su-sudeste. Era preciso escolher entre isso ou oés-noroeste, os dois cursos que o vento permitia, mas as brisas quentes do sul instigaram meu desejo por um mar mais convidativo e influenciaram minha decisão.
Três horas depois, e lembro bem que era meia-noite, no mar mais escuro que eu já tinha visto, o vento que ainda soprava do sudoeste cresceu furiosamente e me obrigou a lançar a âncora.
Quando o dia amanheceu, meus olhos baços encontraram o oceano fervilhando de espuma branca e o bote arfando quase na vertical sob a força das vagas. O risco de uma onda quebrar e nos inundar era iminente. E nem era preciso tanto, pois os espirros e a espuma invadiam o bote com tanta frequência que eu precisava baldear água o tempo todo. Os cobertores estavam encharcados. Tudo estava molhado, exceto Maud, que se mantinha seca trajando uma capa impermeável, sueste88 e botas de borracha, molhando apenas o rosto, as mãos e uma mecha solta de cabelo. De vez em quando ela revezava comigo no buraco de escoamento e baldeava corajosamente a água para fora do bote, enfrentando a tempestade. Tudo é relativo. Não era nada além de um vento forte, mas para nós, que lutávamos pela vida em nossa frágil embarcação, tratava-se mesmo de uma tempestade.
Desanimados, passando frio, com o vento fustigando nossos rostos e ondas espumantes quebrando à nossa volta, fomos vencendo o dia aos poucos. A noite chegou, mas não conseguimos dormir. O dia chegou e o vento continuou fustigando nossos rostos, as ondas espumantes quebrando à nossa volta. Na segunda noite, Maud caiu no sono de tanta exaustão. Eu a cobri com um impermeável e uma lona. Ela estava relativamente seca, mas dormente de frio. Tive muito medo de que morresse durante a noite. O dia amanheceu, sem ânimo e gelado, com o mesmo céu nublado, o vento inclemente e o mar revolto.
Eu não dormia havia quarenta e oito horas. Estava molhado e gelado até a medula, a ponto de me sentir mais morto que vivo. Meu corpo estava enrijecido por causa do frio e do esforço e meus músculos doloridos me torturavam cruelmente sempre que eu os usava, e eu precisava usá-los o tempo todo. Enquanto isso, éramos arrastados sem parar rumo ao nordeste, para longe do Japão, em direção ao desolado mar de Bering.
E ainda assim resistíamos, e o barco resistia, e o vento soprava sem cessar. Na verdade, ao cair da noite do terceiro dia ele aumentou mais um pouco, e depois ainda mais. A proa do bote mergulhou na crista de uma onda e chegamos do outro lado com um quarto da embarcação repleta de água. Baldeei como louco. A chance de sermos invadidos por outra onda como aquela aumentava enormemente agora que a água fazia o bote pesar e prejudicava sua flutuabilidade. Outra onda como aquela significaria o fim. Quando consegui esvaziar o bote novamente, fui obrigado a retirar a lona de cima de Maud para prendê-la sobre a proa. E nisso fiz bem, pois ela cobriu um terço da extensão do bote e nas horas seguintes, nas três ocasiões em que a proa foi coberta por uma onda, desviou a maior parte da água que despencou de cima.
O estado de Maud era lastimável. Estava agachada no fundo do bote, com os lábios azulados e o rosto cinza estampando toda a sua dor. Mas seus olhos sempre me encaravam com coragem e seus lábios só pronunciavam encorajamentos.
O pior da tempestade deve ter soprado naquela noite, embora eu mal tenha percebido. Sucumbi e dormi na posição em que me encontrava, sentado à popa. Na manhã do quarto dia encontramos o vento reduzido a um suave sussurro, o mar desfalecido e o sol brilhando acima de nós. Ah, bendito sol! Nos banhamos em seu delicioso calor, revivendo como insetos e criaturas rastejantes após uma tempestade. Voltamos a sorrir, dissemos coisas engraçadas e fomos ficando otimistas com nossa situação. Em verdade, porém, a situação estava pior que nunca. Estávamos mais distantes agora do Japão do que na noite em que abandonamos o Ghost. Eu era capaz de fazer somente uma estimativa muito grosseira de nossa latitude e longitude. Supondo uma deriva constante a três quilômetros por hora durante as setenta e tantas horas de tempestade, tínhamos sido levados pelo menos duzentos e quarenta quilômetros para nordeste. Mas será que esse cálculo da deriva estaria correto? A velocidade podia muito bem ter sido de seis quilômetros por hora em vez de três. Nesse caso, podíamos ter ido quase quinhentos quilômetros para o lado errado.
Eu não sabia exatamente onde estávamos, mas era bem provável que estivéssemos próximos do Ghost. Havia focas nos arredores e me preparei para avistar uma escuna de caça a qualquer momento. De fato, avistamos uma à tarde, quando a brisa de noroeste começava a se intensificar novamente. Mas a escuna desconhecida se perdeu no horizonte e voltamos a ocupar sozinhos o círculo do oceano.
Vieram dias de nevoeiro, nos quais até mesmo o ânimo de Maud se abateu e as palavras alegres sumiram de sua boca; dias de calmaria em que flutuamos na imensidão solitária do mar, oprimidos por sua grandeza e ao mesmo tempo maravilhados com o milagre das vidas diminutas, pois seguíamos vivos e dispostos a viver; dias de granizo, vento e rajadas de neve em que nada era suficiente para nos aquecer; ou dias de garoa em que podíamos encher os barris com a água que pingava da vela molhada.
E o meu amor por Maud apenas crescia. Ela era tão multifacetada, dotada de um temperamento tão variado, que eu a chamava de “índole volúvel”. Mas eu a chamava assim, e de outros apelidos mais carinhosos, somente em pensamento. Embora a minha declaração de amor urgisse e vibrasse na língua milhares de vezes, eu sabia que o momento não era apropriado. Para citar apenas um motivo, não era correto pedir o amor de uma mulher no momento em que se estava tentando protegê-la e salvá-la. Por mais delicada que fosse a situação, por esse motivo e por vários outros, eu estava conseguindo lidar com ela de maneira igualmente delicada e me congratulava por isso. E me congratulava também por não aparentar nem emitir sinais que pudessem tornar explícito o amor que sentia por ela. Éramos como dois bons companheiros, e fomos ficando cada vez mais companheiros um do outro com o passar dos dias.
Uma coisa que me surpreendeu nela foi sua ausência de medo e vulnerabilidade. O mar terrível, o bote frágil, as tempestades, o sofrimento, a estranheza e o isolamento da situação, tudo isso que bastaria para assustar uma mulher forte parecia não ter efeito sobre ela, que tinha conhecido a vida somente em seus aspectos mais protegidos e consumadamente artificiais, e que era ela mesma feita de fogo, orvalho e neblina, de espírito sublimado, de tudo que era suave, macio e acolhedor em uma mulher. Contudo, estou errado. Ela estava assustada e intimidada, mas era valente. Era suscetível à carne e às aflições da carne, mas a carne só afetava com efeito a própria carne. E ela era espírito, primeiro e antes de tudo espírito, essência etérea da vida, calma como seus olhos calmos, certa de sua permanência na ordem inconstante do universo.
Vieram dias de tempestade, dias e noites de tempestade em que o oceano nos ameaçava com sua brancura e seu rugido e o vento fustigava nosso bote guerreiro com seus murros titânicos. E continuamos sendo empurrados cada vez mais longe para o nordeste. Foi durante essa tempestade, a pior que tínhamos enfrentado, que lancei um olhar fatigado para sotavento, não à procura de qualquer coisa, mas sim movido pelo cansaço do embate com os elementos, quase em apelo mudo para que as forças furiosas dessem trégua e nos deixassem em paz. O que vi foi, em um primeiro momento, inacreditável. Voltei meu olhar para Maud, tentando me posicionar, por assim dizer, no tempo e no espaço. A visão de suas faces molhadas, seus cabelos esvoaçantes e seus bravos olhos castanhos me convenceu de que meus olhos ainda estavam saudáveis. Virei o rosto outra vez para sotavento e vi novamente o promontório saliente, negro, alto e exposto, a espuma das ondas fortes que quebravam em sua base e espirravam para o alto em sua fronte, o litoral negro e proibido se estendendo para o sudeste e ornado com um majestoso véu branco.
Maud — eu disse. — Maud.
Ela virou a cabeça e viu.
Não pode ser o Alasca! — clamou.
Infelizmente, não — respondi, e então perguntei: — Sabe nadar?
Ela fez que não com a cabeça.
Nem eu. Então precisamos alcançar a margem sem nadar, por alguma passagem entre as pedras que nos permita aproximar o bote e escalar. Mas precisamos ser rápidos, muito rápidos. E decididos.
Falei com uma confiança que ela sabia que na realidade eu não sentia, pois me lançou um daqueles seus olhares resolutos e disse:
Ainda não lhe agradeci por tudo que fez por mim, mas…
Ela hesitou, como se não soubesse bem como expressar sua gratidão em palavras.
Sim? — indaguei com alguma brutalidade, pois não me agradava vê-la tentando me agradecer.
Você podia me ajudar — ela sorriu.
A reconhecer sua dívida comigo antes de morrer? De jeito nenhum. Não vamos morrer. Desceremos naquela ilha e estaremos confortáveis e abrigados antes do fim do dia.
Falei firme, mas não acreditava em nenhuma palavra. Também não foi o medo que me fez mentir. Eu não sentia medo, embora estivesse certo de que morreríamos naquele turbilhão borbulhante em meio aos rochedos cada vez mais próximos. Era impossível içar velas e se aproximar daquela costa. O vento viraria o bote num instante e seríamos engolidos pela primeira onda que passasse. Além disso, a vela amarrada aos remos de reserva boiava no mar à nossa frente.
Repito, eu não tinha medo de encarar a minha própria morte bem ali, algumas centenas de metros a sotavento, mas a ideia de que Maud precisava morrer junto me estarrecia. Minha imaginação maldita a via espatifada contra os rochedos, e era terrível demais. Fiz um esforço para me convencer de que podíamos aportar em segurança, portanto não verbalizei aquilo em que acreditava, mas sim aquilo em que preferia acreditar.
A contemplação daquela morte apavorante me fez vacilar, e por um momento considerei a ideia insana de prender Maud em meus braços e saltar fora do bote. Depois decidi esperar para, no último momento, quando adentrássemos o trecho final, abraçá-la, proclamar o meu amor e, mantendo-a em meus braços, fazer a tentativa desesperada e morrer.
Por instinto, nos aproximamos um do outro no chão do bote. Senti sua mão enluvada procurar a minha. Assim, sem dizer nada, ficamos à espera do fim. Não estávamos muito distantes da linha que o vento traçava com a margem oeste do promontório, e fiquei atento na esperança de que uma mudança na corrente ou o golpe de uma onda nos fizesse passar daquele ponto antes de alcançarmos a rebentação.
Nós vamos passar — falei com uma certeza que não convencia a nenhum dos dois.
Cinco minutos depois, gritei:
Por Deus, nós vamos passar!
A jura escapou de meus lábios em meio à excitação, e creio que foi a primeira em toda a minha vida, a menos que “Pombas!”, uma imprecação de minha juventude, conte como jura.
Me perdoe — falei.
Você me convenceu de sua sinceridade — ela disse com um leve sorriso. — Agora sim, sei que vamos passar.
Eu tinha avistado um cabo à distância, depois da extremidade do promontório, e à medida que prosseguíamos era possível divisar a praia do que era, sem dúvida, uma enseada. Ao mesmo tempo, nossos ouvidos foram atingidos por um rugido contínuo e poderoso. Tinha a magnitude e o volume de um trovão distante e vinha de um ponto diretamente a sotavento, sobrepondo-se ao ribombar da rebentação e viajando direto na contramão da tempestade. Quando passamos do promontório, toda a enseada se desvendou aos nossos olhos, uma meia-lua de areia branca açoitada por ondas enormes e coberta de incontáveis focas. O grande rugido vinha delas.
Uma colônia! — gritei. — Agora estamos realmente salvos. Deve haver homens e cruzadores para protegê-la dos caçadores de focas. Pode ser que haja uma estação na costa.
Estudei a rebentação da praia e falei:
Continua ruim, mas não tão ruim. Agora, se os deuses forem realmente bondosos, vamos ser arrastados ao longo daquele próximo cabo e chegaremos a uma praia perfeitamente protegida, na qual poderemos desembarcar sem molhar os pés.
E os deuses foram bondosos. O primeiro e o segundo cabo estavam exatamente alinhados com o vento sudoeste, mas quando demos a volta nesse segundo cabo, passando perigosamente perto dele, enxergamos o terceiro cabo, também alinhado ao vento e aos outros dois. Mas a enseada que apareceu penetrava fundo no continente, e a maré que estava levando em direção à praia nos carregou para a região protegida pela ponta do cabo. Ali o mar era calmo, exceto por uma ondulação pesada que não rebentava, portanto recolhi a âncora e comecei a remar. A partir da ponta a costa fazia uma curva para o sul e o oeste, até que por fim desembocava numa enseada dentro da enseada, um pequeno recôncavo fechado para o mar com uma superfície lisa como a de um laguinho, maculada apenas pelos sopros e resíduos da tempestade que eram desviados pelo paredão de rocha ameaçador a uns trinta metros da praia.
Aqui não havia nenhuma foca à vista. O fundo do navio raspou na pedra dura. Me ergui de um salto e estendi a mão para Maud. No instante seguinte ela estava a meu lado. Quando meus dedos soltaram os seus, ela segurou imediatamente no meu braço. Nesse momento balancei sobre os pés, como se fosse cair na areia. Era o efeito impressionante da interrupção do movimento. Havíamos passado tanto tempo no sobe e desce do mar que a terra firme era um choque para nós. Ficávamos na expectativa de que a praia também subisse e descesse e que as paredes rochosas oscilassem para os lados como os costados de um navio. Como nos preparávamos automaticamente para sentir todos esses movimentos esperados, a sua não ocorrência minava o nosso equilíbrio.
Preciso realmente me sentar — disse Maud com uma risada nervosa e um gesto tonto, e sentou-se na mesma hora sobre a areia.
Prendi o bote e me juntei a ela. E foi assim que desembarcamos em Endeavour Island, tontos em terra firme após um longo período no mar.

Jack London, in O Lobo do Mar

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