Sei
onde, em maio, em Minas, o céu se vê azul. Feio é, todo modo,
passar-se do sertão uma boiada, estorvos e perigos dos dois lados,
por espaço de setenta léguas. Doriano, de gibão e jaleco, havendo
de repartido olhar, comandava dependuradamente aquilo. Destino às
porteiras do patrão e dono, Seo Siqueira-assú, Fazenda Capiabas,
movia para o sul o trem de vaqueiros lorpas patifes e semi-selvagens
bois.
Marinheiro
de primeira nem de última viagem, moço maltratado e honrado pela
vida, não confiava nas passadas experiências. Só esmava
três-metades os azares, em mente a noção geralista: Tudo, o que
acontece, é contra a gente. Mas não queria errar de próprio
querer.
E
estava-se na marcha do quinto dia, tomado o vento da banda da mão
esquerda. Tem o gado de ir demais moroso, respeitado, por não
achacar, não afracar, não sentir. Vêm de propósito pelos espigões
as estradas boiadeiras.
Doriano
exigia de si, de redobramento, rédeas endurecidas. Fiava nem-menos
no comum dos vaqueiros, rabujos; só, o tanto, no amistoso
cozinheiro, Duque, e no esteira Seistavado, dos tristonhos.
Desordeiro sarnava por exemplo um Rulimão, de pôr-lhe abrolhos;
tão-tudo, diligente destro. Esses, quais, descareciam de apurar
ramos de cruz, nem preferir real ou ceitil. Dá é na cabeça, a dor
das coisas.
E
havida segunda boiada, que também de Seo Siqueira-assú, à vara dum
Drujo, porfiador, três vezes rival, desamigo; não se tendo ora
estima de por onde andasse, de rebuço, senão que vinda navegando
igual passo — atrás, adiante, a par — resvés.
Doriano
pegara defluxo. O vento rebulia, frio, apesar do destempo de calor. O
gado estranhava. Dali ainda a longe, etapas, rumo-a-rumo, ao vice e
versa da estrada, viviam aquelas em que Doriano cuidava, as duas,
amores contrários, que a esperarem seu resolver. A Aquina e a Bici.
Antes,
aqui os tropeços se antojavam, um a um, o mau diário bastante.
Forçoso sendo guiar-se frentemente a boiada, o possível, inteira e
sã, até às Capiabas, currais de bem, casa edifícia. Doriano
protelava o pensar, não devendo encurtar ânimo nem abusar com a
sorte. Tudo consigo não falava. Sofria só a dificuldade: a de
escolher.
Foi
no noveno dia, faltava água. Em o Laranjado, o Buriti-de-Dentro, o
Se-Mexido, as esperadas grotas se acharam secadas. Rixavam os
vaqueiros, queixosos, grossa parda de poeira cada cara, só fora os
vermelhos beiços. O gado berrava. Doriano, chefe, perrengue trotava,
a de-cá a de-lá e da guia à culatra, nessa confusão e labirinto,
sem certeza do melhor e pior.
Entupia-o
o constipado, apertada a testa, de nulo espírito do que fazer. Se em
esvio do direito roteiro se botava, desladeado, desta ou da outra
parte — água aí sobejasse, avonde, no campo baixo. Mas, por
porém: iria tortear caminhos, sem a certa conhecença, mais uma
boiada pesada de vagarosa, desdobradamente, ao retraso transtornoso.
À Capiabas com ela chegar, não depois da do Drujo, competente,
virava o que valia, nem um boi perdido, adoecido ou estramalhado. O
nenhum encalacro.
Trepou
a um outeiro alto, constante a cavalo. Espiou o poente: nem nada.
Erguido firmado nos estrivos, espiou o nascente. Por cima de
cerradão, se enxergava bolo de poeira, suspendida, que o vento
rebate e desairada se esfaz. Delatava boiada costumada, que orçasse,
já a-de-longe. Fosse o Drujo, estando de fortuna? Doriano disse: —
“Deus te e me leve!” Por enfrouxecido.
Temeu
que também os vaqueiros vissem a poeireira, nem nuvem conforme
abelhas enxames, lhe dando dúvida. Tão então, se isso dos outros
receava, não era sinal de que devia somente continuar a seguir, por
diante, aquela própria serra diretiva, como pelas apagadas linhas de
um documento? Obedecendo a segredas coisas assim o espiritado da
boiada — o balanceio.
Seus
vaqueiros lhe vinham às costas, de enrufo, a xingos, reardendo.
Malsinavam-se. Reinava o Rulimão, ladino no provocar o Seistavado,
costaneiro-espontador. A quanto e quando moderar esses rebelamentos?
Mas,
só até — de estupefa! — já à dôida melhoria. As grotas se
topavam com água, no Buriti-Formoso, no Buriti-da-Cacimba. Os
vaqueiros abriam a natureza, cantavam letrilhas. Doriano quis
esquecer o Drujo, e se lembrar daquelas, demais, a Bici, a Aquina; no
mastigar da carne-seca, que o Duque assava gordurenta.
Tinha
de travar plano; e o coração não concordava. Aquina, ociosa
meretriz, na Caçapa, banda da mão direita. A Bici, moça para ser
nôiva, à beira da lagoa Itãs, do lado do outro lado. Ele
espontâneo se gemeu, mediante pragalhão, que meio puxava pelo
nariz. Decidir logo formava danada ação; as verdades da vida são
sem prazos. E o Drujo, invejador, que essas, uma e outra, por garapa
e mel, também cobiçava!
Doriano
caçasse do fino do ar a resolução; na sela, no calor do dia. Só o
vento zazaz e as tripas lhe doendo na barriga. A iazinha Bici, flor
de rososo jardim, de brancura, palhacinho de lindeza, água em
moringa. A feitiçosa Aquina, no sombreado, relembrada, xodó e
chamego, uso vezo. E a gente sem folga sujeito ao que puxa, ombro e
ombro, homem nunca tem a mente vazia.
Devia
tomar sentido no do Drujo, tramoias. Ter mão no Rulimão. Buscar os
duvidados pastos, para se estanciar, o pernoite. Estimava os bois,
juntos, o mexente formato, que ajuda a não razoar. A boiada cruzava
um aniquilo de paragens, sem o que quase comer, em nhenhenhenha
cafundura.
Pois
vieram, ao Buritis-Cortados, senão onde, de um fazendeiro Pantoja.
Aquele
estava à porteira, muito alto magro, de colete sem paletó e chapéu
aboso. Se tinha um pasto, não alugava: por promisso com outro, de
pronto chegar. Dava de ser o Drujo! Doriano não se coçou. Tomou bom
fôlego. Lhe disse: — “O sr. no seu se praz...” — e
tem-te se arredou, para se ver acontecer. Fez o gesto de cansado;
pensaram que era o de forte decisão. Saía, espirrando e cuspindo,
como todo boiadeiro tem medo de gostar dos bois.
Porém
o fazendeiro Pantoja se adiantou, segredado compondo: que possuía
outro pasto, o reservo melhor, a quarto-de-légua, seja se a três
tiros de espingarda. Falou: — “Se vê, o sr. não precisa de
ninguém. Por isso, merece e convém ter ajuda!” — assim ele
desempatava.
Toque.
Vezes
outras jornadas, o rumo no chão, gado e gente, nem tanto à várzea
nem tanto à serra. Doriano o mole pensava. Aí embora até ao não
delongável; da véspera para o dia. Iam pousar onde, de onde, as
duas diversas moravam, banda a banda. Socapo, leleixento, não havia
o Drujo de, de tresnoitação, tretear e caçar de se tremeter com a
alguma delas, a qual? — em brio ele temeu. E viu, tangendo o
cargueiro, o Duque, amigo. Disse-se: — “Tudo tem
capacidade...”
Tranqueou
o cavalo. Mandou. Ir o Rulimão fosse, mão direita, à Aquina, à
Caçapa, com dinheiro, o alforrio; quisesse, lá ficasse, os três
tempos, por espalhar o bofe, dias e mais — e desmoderado brabo
renhir qualquer vindiço... Sorriu, com boa maldade.
Mas,
empunhando arma contra quem intruso ali aparecesse, ir o Seistavado à
Itãs, mão canhota, com a sua palavra de homem: de que, breve, ele
Doriano, nas praxes, visitava a Bici moça e a Mãe e Pai, pelo
pedido, finitivo. Tudo desvirava do incerto, remoído bem, depois das
núncias e arras.
Tão
o primeiro, quite, trouxe a boiada conduzida, ao Seo Siqueira-assú,
afinal, em Capiabas, sem arribada, sem dano. Tossisse, a barba grada,
no empoeiramento, condenado nisso, mais uns vaqueiros esfalfados. E
já de noite: enchida a lua. Então, apalpou de repente no coração
a Bici, que notou que amava; que o amor menos é um gosto para se
morder que um perfume, de respirar. Tinha o nome dela, levantado
sozinho, feito prendida no tope do chapéu branquinha flor.
Desapeava
e olhando para trás em frente olhava, Doriano e tal, somenos
espantado — do vão do sertão donde viera, a rota nada ou pouco
entendida — nem sabendo o que a acontecer. Tendo a perfeita
certeza.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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