Nunca
te falei disso, vó, mas talvez minha mãe tenha contado. Quando eu
tinha seis anos, um afilhado dela, de onze, foi passar um tempo lá
em casa. A gente brincava muito juntos, pulando corda e correndo pelo
prédio. Um dia, minha mãe precisou dar uma saída rápida para o
mercado e pediu para uma vizinha ficar de olho na gente, já que
estávamos no corredor. Quando se viu sozinho comigo, ele começou a
me puxar para dentro do apartamento. Eu briguei dizendo que não
queria ir, lutei, mas ele era maior e mais forte do que eu.
A
vizinha não ouviu quando fui arrastada para dentro do meu quarto,
nem quando eu gritei enquanto ele abaixava meus shorts e passava o
pênis em mim. Aos berros que ninguém parecia ouvir, ordenando que
ele parasse, consegui fugir.
Não
disse nada pra minha mãe quando ela voltou. No dia seguinte, contei
a Dara o que havia acontecido. Estávamos brincando de jogo da
memória. Assim que a partida terminou, fui tomar banho, e ela foi
contar pra minha mãe, que apareceu no banheiro de repente,
escancarando a cortina do box e perguntando se era verdade. Eu
somente sinalizei com a cabeça que sim.
Percebi
umas movimentações estranhas, meu pai falava bravo com alguém ao
telefone. A partir daquele momento, o afilhado da minha mãe, que
ainda estava em casa, não se aproximou mais de mim. Quando a mãe
dele veio buscá-lo, eu o ouvia gritar: “É mentira, madrinha, é
mentira”. Meus pais foram taxativos e não o vi por muitos anos. Eu
não entendia direito o que havia acontecido, mas lembro que, daquele
dia em diante, minha mãe regularmente me perguntava se alguém havia
tocado em mim. Ela também insistia que não era pra eu aceitar
carona de ninguém ou falar com homens na rua. Meu pai reforçava, de
forma contundente: “Nem se for amigo meu, escutou?”. E tudo era
seguido religiosamente.
Quando
eu tinha nove anos, minha mãe e meu pai, com problemas financeiros,
precisaram cancelar a van escolar, vó. Meus irmãos e eu, então,
passamos a ir a pé para a escola, um trajeto de vinte minutos. Denis
tinha treze anos na época e, por ser o mais velho de nós quatro,
ficou responsável por olhar a gente — ele e as outras crianças
mais velhas que nos acompanhavam. Tudo correu bem por um bom tempo.
Um dia, porém, passando em frente ao posto de gasolina que ficava no
caminho de volta para casa, um frentista me chamou, dizendo que
queria me dar uma boneca. Eu não respondi e fui logo contar pro
Denis, como minha mãe exigia. Ele, claro, ficou ao meu lado e xingou
o homem. O frentista correu atrás da gente e nós tivemos que fugir,
atravessando uma grande avenida às pressas e quase sendo
atropelados.
Em
casa, contamos tudo pra nossa mãe, que ficou furiosa. Ela esperou
meu pai chegar e exigiu que ele fosse até o posto tirar satisfação,
mas ele não podia, porque tinha mais um turno no trabalho.
Aborrecida, dona Erani reuniu os pais das outras crianças que iam à
escola com a gente e foi ao posto de gasolina brigar com o frentista,
que negou tudo, alegando que correu atrás da gente porque estávamos
vandalizando o posto. Ela ficou furiosa e armou o maior escândalo.
Por um tempo, ela tentou nos acompanhar no caminho pra escola, mas
depois voltamos a ir sozinhos novamente. Vimos o homem mais algumas
vezes, mas ele sempre abaixava a cabeça quando passávamos.
Quando
eu tinha onze anos, duas situações semelhantes aconteceram. Uma vez
foi num ônibus intermunicipal, quando estava indo a São Vicente com
minha mãe. O ônibus estava cheio, nós estávamos em pé e um homem
se aproximou de mim. Eu era pequena ainda, mas brincava de tentar
segurar na parte alta do suporte. Meus seios estavam crescendo, eu
usava uma blusa um pouco cavada e não entendia por que o homem, toda
vez que eu erguia os braços e ficava na ponta dos pés, inclinava a
cabeça em direção ao meu corpo. Eu me lembro dessa cena como se
fosse hoje. Na minha inocência de criança, não entendia. Ao ver
tudo, minha mãe se colocou entre nós dois e o homem se afastou.
A
outra foi quando comecei a andar de ônibus sozinha. Minha mãe me
colocou numa escola de inglês um pouco distante de casa, e ela não
tinha como me levar e buscar sempre, então me ensinou a ir por conta
própria. Não era muito difícil, o ponto ficava quase em frente ao
prédio onde morávamos. Um dia, enquanto eu esperava o ônibus, um
homem passou de bicicleta me olhando. Um pouco mais adiante, ele
parou e me ofereceu carona. Ele acenava com a cabeça e apontava para
o cano da bicicleta, dizendo para eu subir ali. Eu neguei, mas ele
ficou insistindo, dizendo: “Vem cá, eu te levo”. Eu lembrava da
voz contundente do meu pai e negava. Como estava muito perto de casa,
não senti medo, então quando o ameacei dizendo que chamaria meu
pai, ele foi embora.
Tempos
depois, na saída da escola, enquanto eu esperava meus irmãos, um
daqueles homens que são tidos como “os loucos da rua”
simplesmente apareceu e me deu um chute. Todo mundo que estava no
pátio viu. O homem, claro, fugiu, mas contamos à coordenadora da
escola. A ronda escolar veio, e eu, meus irmãos e outras crianças e
adolescentes relatamos o que aconteceu, mas não havia nenhum adulto
por perto. O policial, então, disse que era pra eu entrar no carro
com ele e começou a dar voltas sozinho comigo pelo bairro para ver
se eu reconhecia o homem pelo caminho. Rodamos por algum tempo, mas
não achamos ninguém. Quando ele me levou de volta pra escola, meu
irmão ficou aliviado — sabia da punição caso chegasse sem mim em
casa.
Eu
reprimi essas experiências por muito tempo. Somente quando adulta
fui perceber quão graves essas situações foram. Quando criança,
eu entendia que era diferente dos meus irmãos por ser menina. Era só
eles ameaçarem bater em quem os xingava que as ofensas terminavam.
Já Dara e eu, por mais que respondêssemos, não podíamos fazer as
mesmas coisas que os meninos, nossos pais não deixavam. Me enfurecia
ter que ajudar minha mãe a fazer a faxina de fim de ano enquanto
ouvia os gritos felizes dos meus irmãos brincado na rua. Eu achava
injusto ter que ajudar minha mãe a cozinhar e limpar a casa enquanto
a função de um dos meus irmãos era só colocar o lixo na rua.
Desde criança, eu percebia que existiam diferenças de tratamento e,
como sempre fui questionadora, me rebelava.
Na
época, porém, eu ainda não entendia que eram essas mesmas
diferenças, presentes não só na minha casa mas em todo o lugar que
eu ia, que causavam os episódios horríveis de assédio que eu tinha
sofrido. Somente depois de muito tempo eu entendi que o que o
afilhado da minha mãe havia feito comigo só não foi mais grave
porque ele também era uma criança e não sabia como “fazer”
sexo. Claro que isso não deixa de ser violência, mas foi o que ele
disse anos depois para minha mãe: “Foi coisa de criança”.
Aquele
caso, porém, só não foi mais grave porque meus pais tomaram as
providências necessárias e me protegeram, acreditaram em mim e
tiraram o afilhado da minha mãe de dentro de casa. Somente adulta eu
fui entender que o homem no ônibus tentava olhar por dentro da minha
blusa para ver os seios de uma criança em crescimento. Que eu
poderia não estar aqui ou carregar um trauma se tivesse ido para
trás do posto com o frentista na promessa de ganhar uma boneca ou se
tivesse aceitado a carona do homem da bicicleta.
Recentemente,
quando estava numa balsa a caminho do Guarujá, me dei conta que o
policial da ronda escolar não poderia ter me colocado na viatura,
uma vez que eu era menor de idade. Esse episódio me veio à memória
enquanto eu olhava o mar, e tenho certeza de que, naquele dia, fui
protegida por Iemanjá. Eu vi o policial dirigindo o carro enquanto
eu estava sentada no banco do passageiro, mas eu também vi que no
banco de trás havia uma presença, minha proteção.
Vó,
te contando disso me lembrei das vezes em que minha mãe me levou ao
terreiro. Fui iniciada aos oito anos como filha de Iemanjá, apesar
de ser filha de Oxóssi. O pai de santo, preso às ideias do
colonialismo, justificou dizendo que menina que tem orixá homem
precisa colocar um orixá feminino na frente para “não virar
lésbica”. Foi apenas muitos anos depois, ao encontrar um lugar
mais sério, que descobri ser, na verdade, filha de Oxóssi com
Iansã, mas que pelo fato de ter cultuado Iemanjá por muito tempo,
ela era uma mãe que haviam escolhido para mim e que eu deveria
seguir cultuando-a — até porque ela é considerada a mãe de todas
as cabeças. E foi justamente enquanto eu atravessava o mar de
Iemanjá que aquela memória me veio. Há um itan que conta que
Iemanjá foi violentada. Imediatamente lembrei de você, vó. Das
vezes em que me benzeu, me ajudou a cultuar Iemanjá, enterrou seus
feitiços de proteção no quintal de sua casa, invocou as Grandes
Mães para que me protegessem.
Naquela
balsa, já adulta, eu senti que se não fosse por você e minha mãe,
eu poderia não estar aqui. Assim como há mulheres que dizem que
Ogum são os maridos delas, vocês invocaram as mães que eu
precisava quando vocês não estavam por perto. A força de minha
mãe, que ela aprendeu com você, me protegeu: afugentou tarados em
ônibus, pôs pra correr abusadores que ficavam à espreita em postos
de gasolina, não sentiu pena de afilhados. E eu nem precisei
explicar, bastou um aceno de cabeça para ela acreditar em mim. Não
houve “tem certeza, filha?”. Foi um aceno de cabeça enquanto eu
tomava banho e esfregava minhas costas para ela afastar pra longe o
perigo. A força dos olhares cúmplices.
Essa
diferença criou um mundo no qual eu sabia que juntas as mulheres
poderiam se fortalecer, um mundo no qual eu aprendi a admirar e amar
mulheres, um mundo que me abriu os caminhos para ser feminista. Minha
mãe jamais permitiu que homem algum tocasse suas filhas. E, na sua
ausência, enviou as Grandes Mães para espantarem qualquer um que
estivesse mal-intencionado. Você, que nunca soube o que era
feminismo, minha mãe, que nunca soube o que era feminismo, me
ensinaram a importância de me defender.
Vó,
hoje eu entendo que, na sua casa, poder dormir somente com você
também era uma forma de me proteger. Os conselhos insistentes para
não sentar no colo de homem algum, mesmo sendo da família, também.
Eu não entendia por que não podia demonstrar muito afeto pelos meus
tios, primos, qualquer homem que fosse, mas hoje eu entendo. Você
tinha medo, e acreditava que me tirar de perto era a única forma de
proteção. Isso também era ensinar o que era a vida para uma menina
negra.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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