Alvas
ou sujas arrumavam-se ainda na várzea as barracas, campadas na
relva; diante de onde ia e vinha a curtos passos o cigano Prebixim,
mão na ilharga. Devia de afinar-se por algum dom, adivinhador.
Viu-nos, olhos embaraçados, um átimo. Sorria já, unindo as botas;
sorriso de muita iluminação.
Seu
cumprimento aveludou-se: — “Saúdes, paz, meu gajão
delegado...” E pôs os olhos à escuta. Tio Dô retribuiu, sem
ares de autoridade. Moço não feioso, ao grau do gasto, dava-se esse
Prebixim de imediata simpatia. Além de calças azuis de gorgorão,
imensa a cabeleira, colete verde — o verde do pimentão, o verde do
papagaio.
Não
impingia trocas de animais, que nem o cigano Lhafôfo e o cigano
Busquê: os que sempre expondo a basbaques a cavalhada, acolá, entre
o poço do corguinho e o campo de futebol. Tampouco forjicava
chaleiras e tachos, qual o cigano Rulú, que em canto abrigado
martelava no metalurgir. E era o que me atraía em Prebixim, sem
modelo nem cópia, entre indolências e contudo com manhas sinceras,
arranjadinho de vantagens.
Dissera-me:
— “Faço nada, não, gajão meu amigo. Tenho que tenho só o
outro ofício...” — berliquesloques. E que outro ofício
seria então esse? — “É o que não se vê, bah, o de que a
gente nem sabe.” Prebixim falara completo e vago. Estúrdio. O
obscuro das ideias, atrás da ingenuidade dos fatos. — “Nem a
pessoa pega aviso ou sinal, de como e quando o está cumprindo...”
O contrário do contrário, apenas.
Tio
Dô vinha a sabendas, porém, sob dever de lei, não a especular
ofícios desossados. Dizia-os: — “Mariolas. Mais inventam que
entendem.” Instruía-me do malconceito deles, povo à toa e
matroca, sem acato a quaisquer meus, seus e nossos, impuros de mãos.
Do
Ão, por exemplo, chegara mensageiro secreto, recém-quando. Caso de
furto. E tendo eles arranchado lá — por malino acréscimo de
informação. Estes mesmos, no visível espaço: as calins que
cozinhavam ou ralhavam na gíria gritada, o cigano Roupalimpa
passando montado numa mula rosilha, as em álacre vermelho raparigas
buena-dicheiras. Loucos, a ponto de quererem juntas a liberdade e a
felicidade.
Tio
Dô ia agir, com prazo e improrrogo. Ele pesava tristonho, na
ocasião; não pela diligência de rotina, mas por fundos motivos
pessoais. Eu também. Fitávamos as barracas, sua frouxa e postiça
arquitetura. A gente oscila, sempre, só ao sabor de oscilar. Ainda
mal que, no lugar, a melancolia grassava.
Tio
Dô disse-lhe: — “Amigo, vamos abrir o A?”
Prebixim
elevou e baixou os braços — o colete de pessoa rica. — “Meu
gajão delegado... Sou não o capitão-chefe. Coisa de borra que
sou... Que é que eu tenho comigo?” — questão contristada,
estampido de borboleta em hora de trovão.
— “Você
é o calão nosso amigo.”
Prebixim
contramoveu-se, relançou-me um olhar. Aprumara seu eixo vertebral,
sorria por todos os distritos do açúcar.
— “Você
hoje está honesto?” — Tio Dô aumentou.
— “Hi,
gajão meu delegado... Mesmo ontem, se Deus quiser... Deus e o meu
São Sebastião!...” Assentia fácil e automático, como os
ursos; dele emanava porém uma boa-vontade muito sutil, serenizante.
— “Pois,
olhe, estão faltando coisas...”
Nenhum
oh, nem um ah. — “Quand’onde?” — fez. Sério. Dera
um espirro para trás? As barracas eram quase todas cônicas, como
wigwams, uma apenas trapezoidal, maior, em feitio de barracão, e
outra pavilhãozinho redondo, miniatura de circo. — “Lilalilá!”
— um chamado alto de mulher, com três sílabas de oboé e uma de
rouxinol.
— “No
Ão” — Tio Dô quebrou a pausa, homem de bom entendimento.
— “Esta,
agora!” — e o outro balançou, sabiamente sucumbido; já era
a virtude em ato, virtude caída do cavalo. Mas simples sem cessar,
na calma e paz, que irradiava, felicidade na voz.
— “Essas
ideias enchendo as cabeças...” — falou, a si, sem sentir-se
da sobrevença no que lhe dizia desrespeito. Tio Dô o encarava,
compacto complacente. Prebixim desenhou no ar um gesto de príncipe.
— “Ô tamanho de diabo!” — falara a ponto, de suspiro
a solução. Pedia espera, meio momento. Fazia vista.
E
já lá: — “Ú, ú, ú!” — convocava os outros,
cataduras, o cigano Beijú, capitão, o cigano Chalaque, de bigodes à
turca ou búlgara. Debatiam, em romenho, dando-se que ásperos, de se
temer um destranque. Calavam ora em acordo, entravam a uma das
barracas.
Tio
Dô olhara aquilo e contemplara. — “Podia ser tocador de
sanfona...” — comentou, piscou amistoso.
— “Tenho
em mercê...” — Prebixim, bizarro, cavalheiro, entregava a
Tio Dô o relógio de prata, como se fosse um presente. — “É
fifrilim, coisa de nada...” — calava o que dava, com modéstia
e rubor. Outros objetos ainda restituía; oferecia-os, novo e honesto
feito alface fresca.
Entressorriram-se
ele e Tio Dô, um a par do outro, ou o que um sábio entendendo de
outro. — “Eta! eta! eta!” — coro: as mulheres
aplaudiam a desfatura, com mais frases em patoá. Ele era delas o
predileto. Meninos pulavam por todos os lados. Passou-me um elefante
pelo pensamento. Tio Dô tossiu, para abreviar o instante.
— “Saúdes,
estar...” — e Prebixim curvava-se, cruzadas rápidas as
pernas, no se despedir, demais, por ter cabeça leve, a fina arte da
liberdade.
Mais
paz, mais alma, de longe ainda olhávamos, aquelas barracas no capim
da vargem. — “O ofício, então, era esse?” — falei,
tendo-me por tolo.
Ave,
que não. Devia de haver mesmo um outro, o oculto, para o não-simples
fato, no mundo serpenteante. Tinha-o, bom, o cigano Prebixim,
ocupação peralta. Ele, lá, em pé, captando e emitindo, fagulhoso,
o quê — da providência ou da natureza — e com o colete verde de
inseto e folha.
Dizia
nada, o meu tio Diógenes, de rir mais rir. Somente: — “O que
este mundo é, é um rosário de bolas...” Fechando a sentença.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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