domingo, 18 de setembro de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 12


As últimas vinte e quatro horas foram um festival de brutalidade. Ela irrompeu como uma doença contagiosa da cabine até o castelo de proa. Nem sei por onde começar. Wolf Larsen foi a verdadeira causa. As relações entre os tripulantes, já tensas e desgastadas por causa de rixas, desavenças e ressentimentos, andavam em estado de desequilíbrio, e as paixões malignas se incendiaram como grama seca.
Thomas Mugridge é um delator, um espião, um informante. No esforço de bajular e reconquistar o capitão, vem espalhando histórias dos homens à proa. Foi ele, fiquei sabendo, que trouxe algumas declarações imprudentes de Johnson aos ouvidos de Wolf Larsen. Johnson, ao que parece, comprou uma capa de lona no bazar do barco, julgou-a de péssima qualidade e não tardou em expressar sua insatisfação. O bazar é uma espécie de miniloja de roupas que há em todas as escunas de caça à foca, com um estoque de artigos úteis para os marinheiros. As compras de cada marinheiro são descontadas posteriormente de seus ganhos na caça, pois, em vez de salários, os caçadores, remadores e pilotos ganham uma comissão em cima de cada pele capturada em seu bote.
Mas eu nada sabia dos resmungos de Johnson acerca do bazar, de modo que as cenas que testemunhei foram de uma surpresa chocante. Eu tinha acabado de varrer a cabine e fora persuadido por Wolf Larsen a me embrenhar numa discussão a respeito de Hamlet, seu personagem shakespeariano favorito,49 quando Johansen veio descendo pela escada da escotilha, seguido logo atrás por Johnson. Este último retirou o boné, como é costume no mar, e plantou-se em posição respeitosa no centro da cabine, de frente para o capitão, esforçando-se para equilibrar o corpo no ritmo dos balanços da escuna.
Feche as portas e baixe as persianas — Wolf Larsen me disse.
Enquanto obedecia, vi uma centelha de apreensão no olhar de Johnson, mas não podia nem sonhar com o que estava por trás daquilo. Só pude sonhar com o que aconteceu depois que aconteceu, mas ele sabia desde o início o que vinha pela frente e aguardou bravamente. Em sua atitude, encontrei a refutação mais completa do materialismo de Wolf Larsen. O marinheiro Johnson era animado por ideias, princípios, verdade e sinceridade. Ele estava certo, sabia que estava certo, e não tinha medo. Morreria pelo que era certo se fosse necessário, seria fiel a si mesmo, sincero diante da própria alma. Nisso se afigurava a vitória do espírito sobre a carne, a indomabilidade e o esplendor moral da alma que não conhece restrições e eleva-se acima do tempo, do espaço e da matéria com uma certeza invencível que só pode nascer da eternidade e da imortalidade.
Mas voltando ao assunto. Vi a centelha de apreensão no olhar de Johnson, mas a confundi com sua timidez e embaraço característicos. O imediato, Johansen, ficou parado a seu lado, a uma certa distância, enquanto Wolf Larsen estava sentado numa das cadeiras giratórias da cabine, uns três metros à sua frente. Depois que fechei as portas e persianas, sobreveio uma pausa considerável, que deve ter durado um minuto. Quem a rompeu foi Wolf Larsen.
Yonson — começou dizendo.
Meu nome é Johnson, senhor — o marinheiro corrigiu com firmeza.
Que seja Johnson, então, seu desgraçado! Sabe por que mandei chamá-lo?
Sim e não, senhor — ele respondeu devagar. — Meu trabalho é bem feito. Tanto o senhor quanto o imediato sabem disso. Portanto, não deve haver motivo para queixas.
E isso é tudo? — indagou Wolf Larsen com uma voz mansa e baixa, quase ronronando.
Sei que está aguardando faz tempo para me dar uma lição — Johnson prosseguiu com sua calma ponderada e inabalável. — O senhor não gosta de mim. O senhor… o senhor…
Continue — incentivou Wolf Larsen. — Não tenha medo de ferir meus sentimentos.
Não estou intimidado — retrucou o marinheiro, com um leve rubor de raiva subindo pelo rosto bronzeado. — Falo devagar porque não saí da minha velha nação há tanto tempo quanto o senhor. O senhor não gosta de mim porque sou homem demais. Esse é o motivo, senhor.
Você é homem demais para a disciplina deste barco, se é disso que está falando, e se sabe do que eu estou falando — foi a réplica de Wolf Larsen.
Compreendo o inglês e sei do que está falando, senhor — respondeu Johnson, com o rubor acentuado pela menção a seu conhecimento parco da língua.
Johnson — disse Wolf Larsen com ar de pouco caso, deixando de lado o que não passava de introdução ao assunto principal —, fiquei sabendo que você não está satisfeito com essa capa de lona.
É verdade, não estou. Elas são imprestáveis.
E você tem tagarelado sobre elas sem parar.
Digo o que penso, senhor — o marinheiro respondeu corajosamente, observando ao mesmo tempo a cortesia do navio, que exige que toda fala termine com “senhor”.
Naquele momento, meus olhos pousaram em Johansen. Seus punhos grandes se comprimiam e seus olhos encaravam Johnson com tamanha maldade que seu rosto tinha adquirido feições verdadeiramente diabólicas. Reparei numa mancha preta ainda visível debaixo do olho de Johansen, fruto da sova que tinha levado do marinheiro algumas noites antes. Pela primeira vez, passou pela minha cabeça que algo terrível estava prestes a ocorrer, mas eu ainda não podia imaginar o quê.
Você sabe o que acontece com homens que dizem esse tipo de coisa a respeito do meu bazar e da minha pessoa? — Wolf Larsen perguntou.
Sim, eu sei, senhor — foi a resposta.
O que você sabe? — Wolf Larsen perguntou com ira e firmeza.
O que o senhor e o imediato vão fazer comigo, senhor.
Olhe só para ele, Hump — Wolf Larsen disse a mim —, olhe para esse punhado de pó que fala, para esse amontoado de matéria que se move, respira e me desafia, acreditando piamente que é feito de algo bom, convicto de ficções humanas como a virtude e a honestidade, disposto a viver de acordo com elas apesar de toda a ameaça e desconforto pessoal que acarretam. O que pensa dele, Hump? O que pensa dele?
Penso que ele é um homem superior a você — respondi, impelido de alguma forma pelo desejo de atrair para mim uma parte da ira que estava prestes a ser despejada sobre a cabeça do marinheiro. — Essas ficções humanas, como o senhor as chama, convertem-se em nobreza e hombridade. O senhor não tem nenhuma ficção, sonho ou ideal. É um indigente.
Ele assentiu com a cabeça, tomado por uma satisfação selvagem.
Pura verdade, Hump, pura verdade. Não tenho ficções que se convertam em nobreza e hombridade. Um cão vivo vale mais que um leão morto, faço minhas as palavras do pregador. Minha única doutrina é a doutrina da conveniência, e ela converte-se em sobrevivência. Esse pedacinho de fermento que chamamos de “Johnson” será reduzido a pó e cinzas, e então não terá mais nobreza e hombridade que pó e cinzas, enquanto eu continuarei vivo, rugindo. Você sabe o que vou fazer?
Neguei com a cabeça.
Bem, vou exercer minha prerrogativa de rugir e mostrar do que é feita a nobreza. Observe.
Ele estava a três metros de Johnson, sentado. Três metros! Saltou direto da cadeira, sem precisar ficar em pé antes, com a mesma precisão com que havia sentado, pulando como um animal selvagem, um tigre, e como um tigre percorreu o espaço que havia entre eles. Era uma avalanche de fúria da qual Johnson tentou defender-se em vão. Baixou um dos braços para proteger o estômago e ergueu o outro para proteger a cabeça, mas Wolf Larsen começou golpeando-o bem no meio, no peito, com um impacto esmagador e ressonante. O fôlego de Johnson foi expulso em jato pela boca e cortado em seguida por uma respiração forçada e audível, como a de um homem brandindo um machado. Ele quase caiu para trás, e balançou para os lados, tentando retomar o equilíbrio.
Não consigo fornecer detalhes da cena horrorosa que veio em seguida. Foi revoltante demais. Passo mal só de lembrar. Johnson lutou com toda a sua valentia, mas não era páreo para Wolf Larsen e muito menos para Wolf Larsen e o imediato juntos. Foi horripilante. Eu não sabia que um ser humano podia aguentar aquilo tudo e seguir vivendo e lutando. E Johnson lutou. Ele não tinha a menor chance, e sabia disso tão bem quanto eu, mas sua hombridade o impedia de abandonar a luta em defesa dela.
Testemunhar aquilo estava além da minha capacidade. Tive a impressão de que iria perder a cabeça e saí correndo pela escada da escotilha para abrir a porta e fugir para o convés. Mas Wolf Larsen deixou a vítima de lado por um instante, me alcançou e me arremessou no canto oposto da cabine.
O fenômeno da vida, Hump! — ele me provocou. — Fique e assista. Poderá coletar dados sobre a imortalidade da alma. Além disso, você sabe, não somos capazes de ferir a alma de Johnson. Podemos demolir apenas sua encarnação passageira.
Embora o espancamento não deva ter durado mais que dez minutos, pareceu demorar séculos. Wolf Larsen e Johansen fizeram e aconteceram com o pobre coitado. Socaram-no, chutaram-no com as botas pesadas, derrubaram-no e o puseram em pé de novo somente para derrubá-lo outra vez. Ele já não podia ver nada com os olhos inchados, e o sangue que espirrava de seu nariz, boca e orelhas transformou a cabine num matadouro. Mesmo quando perdeu as forças para levantar, continuaram dando murros e chutes no homem deitado no chão.
Basta, Johansen, já basta — Wolf Larsen disse finalmente.
Mas a fera dentro do imediato estava livre e solta, e Wolf Larsen precisou afastá-lo com o dorso da mão, um gesto aparentemente delicado, mas que lançou Johansen para trás como uma rolha e fez sua cabeça colidir com estrondo contra a parede. Ele tombou e ficou atordoado por algum tempo, respirando ruidosamente e piscando como um idiota.
Recebi uma ordem:
Abra a porta, Hump.
Obedeci e os dois brutamontes ergueram o homem desacordado como um saco de lixo e carregaram-no pela escada da escotilha e pela porta estreita até o convés. O sangue que esguichava de seu nariz cobriu com um riacho escarlate os pés do timoneiro, que era ninguém menos que Louis, seu companheiro de bote. Mas Louis, imperturbável, apenas corrigiu um pouco o leme e manteve o olhar na bitácula.
Não se pode dizer o mesmo de George Leach, o antigo camaroteiro. Nada em todo aquele barco poderia ter nos surpreendido mais do que sua conduta subsequente. Foi ele que subiu à popa sem ter recebido ordens e arrastou Johnson em direção à proa, onde tratou de deixá-lo confortável e cobrir seus ferimentos com curativos da melhor maneira possível. Johnson, como tal, estava irreconhecível. Mais do que isso, as suas feições humanas estavam irreconhecíveis, de tão machucadas e inchadas que ficaram naqueles poucos minutos entre o início da surra e a chegada do corpo inerte ao convés.
Mas, voltando à conduta de Leach, quando terminei de limpar a cabine ele já havia se ocupado dos cuidados de Johnson. Eu tinha subido ao convés para respirar um pouco de ar puro e tentar acalmar os nervos agitados. Wolf Larsen estava fumando um charuto e examinando a barquilha que o Ghost normalmente rebocava à popa, mas que por algum motivo havia sido içada a bordo. De repente, a voz de Leach alcançou meus ouvidos. Estava tensa e rouca de raiva descontrolada. Virei-me e avistei-o parado bem em frente ao tombadilho, a bombordo da cozinha. Estava com o rosto branco e retorcido, os olhos chispando e os punhos cerrados e erguidos.
Que Deus mande a sua alma para o inferno, Wolf Larsen, só que o inferno é bom demais para você, seu covarde, assassino, porco imundo! — foi a sua saudação inicial.
Fiquei estupefato. Antecipei sua aniquilação instantânea. Mas Wolf Larsen não estava com ânimo para aniquilá-lo. Foi andando casualmente até a entrada do tombadilho, apoiou o cotovelo no canto da cabine e ficou olhando com interesse e curiosidade para o garoto exaltado.
E o garoto acusou Wolf Larsen como ninguém jamais tinha feito. Os marujos assustados se reuniram perto da escotilha do castelo de proa e ficaram olhando e escutando. Os caçadores foram saindo afoitos da baiuca, mas à medida que a reprimenda de Leach se alongava percebi que não havia leviandade alguma em seus semblantes. Até eles estavam assustados, não com as terríveis palavras do garoto, mas com sua terrível audácia. Não parecia possível que uma criatura viva pudesse desafiar Wolf Larsen dessa maneira, frente a frente. Eu mesmo admirei o garoto a ponto de ficar em estado de choque, e vi nele a invencibilidade esplêndida da alma imortal sobrepujando a carne e os temores da carne, como fizeram os antigos profetas, para condenar a iniquidade.
E que condenação! Ele arrancou à força a alma nua de Wolf Larsen e a expôs para o escárnio de seus homens. Despejou sobre ela maldições de Deus e do firmamento e intimidou-a com injúrias ferozes, dignas de uma excomunhão da Igreja Católica. Fez denúncias de todo tipo, atingindo um patamar de ira sublime e quase divino, para logo em seguida, exausto, descer aos insultos mais baixos e indecentes.
Aquela fúria toda era loucura. Seus lábios ficaram salpicados de espuma branca e às vezes ele se engasgava e gorgolejava a ponto de se tornar ininteligível. Durante esse tempo todo, calmo e impassível, apoiado no cotovelo e olhando para baixo, Wolf Larsen parecia absorto numa enorme curiosidade. Aquela agitação violenta do fermento vital, aquele alvoroço rebelde e prodigioso da matéria em movimento, causava-lhe interesse e perplexidade.
A cada instante eu esperava, e todos esperavam, que ele fosse saltar sobre o garoto para destroçá-lo. Mas seu ânimo não parecia propício. O charuto terminou e ele continuou observando, curioso, em silêncio.
Leach atingiu um êxtase de fúria impotente.
Porco! Porco! Porco! — reiterava com toda a força dos pulmões. — Por que não desce aqui e me mata, seu assassino? Você pode! Não tenho medo! Ninguém pode impedi-lo! Quem me dera estar morto e fora do seu alcance, ao invés de vivo e preso em suas garras! Vem, covarde! Me mata! Me mata! Me mata!
Foi nesse ponto que a alma errática de Thomas Mugridge entrou em cena. Ele estivera escutando tudo na porta da cozinha, mas então saiu, supostamente para jogar alguns restos de comida ao mar, mas deixando claro que estava mais interessado em testemunhar a carnificina iminente. Abriu um sorriso gorduroso na direção de Wolf Larsen, que não se deu conta da presença dele. Mas o cockney era tremendamente descarado, para não dizer louco, louco de pedra. Voltou-se para Leach e falou:
Isso é jeito de falar? Estou chocado!
A fúria de Leach já não era impotente. Agora havia algo a seu alcance. E pela primeira vez desde a facada, o cockney tinha saído da cozinha sem a faca. As palavras mal tinham deixado sua boca quando um soco de Leach o derrubou. Ele tentou levantar três vezes seguidas e correr para a cozinha, mas nas três foi novamente derrubado.
Ai, meu Deus! — gritou. — Me ajuda! Me ajuda! Alguém tira ele daqui! Tira ele daqui!
Os caçadores riram de puro alívio. A tragédia tinha se desfeito e dado lugar à farsa. Os marujos sorridentes e agitados tomaram coragem e se aglomeraram perto da popa para ver o odiado cockney levar umas bordoadas. Até eu me enchi de júbilo. Confesso que assistia com prazer à surra que Leach estava dando em Thomas Mugridge, embora ela fosse quase tão terrível quanto aquela outra que, por culpa de Mugridge, havia sido aplicada em Johnson. Mas a expressão no rosto de Wolf Larsen permaneceu imutável. Ele nem ao menos trocou de posição, apenas continuou observando tudo com grande curiosidade. Apesar de toda a sua certeza pragmática, era como se ele contemplasse o jogo e os movimentos da vida na esperança de elucidar algo mais a seu respeito, de distinguir, em suas convulsões mais dementes, qualquer coisa que tivesse lhe escapado até o momento e que pudesse ser a chave de seu mistério, por assim dizer, o que ainda faltava para que tudo ficasse claro e evidente.
Mas a surra! Não foi muito diferente da outra que eu havia presenciado na cabine. O cockney tentava em vão se proteger do garoto furioso e alcançar o abrigo da cabine. Rolava, rastejava e caía naquela direção quando era derrubado. Mas os golpes sucessivos o atingiam com uma velocidade desnorteante. Foi esmurrado de um lado a outro como uma peteca até que, por fim, como sucedera a Johnson, ficou inerte no chão, à mercê de socos e chutes. E ninguém interferiu. Leach poderia tê-lo matado, mas, após ter claramente saciado a contento seu desejo de vingança, afastou-se do oponente prostrado, que choramingava e gemia como um cachorrinho, e foi andando em direção à proa.
Mas estes dois episódios foram apenas os números de abertura do espetáculo daquele dia. À tarde, Smoke e Henderson se estranharam e um tiroteio irrompeu dentro da baiuca, seguido de um estouro de manada dos outros caçadores em fuga para o convés. Uma coluna de fumaça espessa e cáustica, do tipo produzido pela pólvora, saía pela abertura da escada da escotilha, e Wolf Larsen pulou lá dentro. Ouviram-se ruídos de socos e bordoadas. Os dois homens tinham se ferido e ele os estava espancando por terem desobedecido às suas ordens e se mutilado antes do início da caça. Na verdade, eles tiveram ferimentos sérios, e depois de espancá-los Wolf Larsen tratou de operá-los com técnicas rudimentares de cirurgia e depois cobriu os ferimentos com curativos. Trabalhei como assistente enquanto ele sondava e limpava os buracos deixados pelas balas, e vi os dois suportarem a cirurgia grosseira tendo como único anestésico um bom copo de uísque.
Mais tarde, no primeiro quarto vespertino,50 o tumulto atingiu seu apogeu no castelo de proa. Emergiu do disse me disse e das intrigas que já tinham levado ao espancamento de Johnson, e pelo barulho que ouvimos, e pela visão dos homens machucados no dia seguinte, foi possível deduzir que uma metade do castelo de proa tinha saído no braço com a outra metade.
O segundo quarto vespertino e o dia como um todo se encerraram com uma briga entre Johansen e o caçador esguio de aparência ianque, Latimer. Foi provocada pelos comentários de Latimer a respeito dos ruídos produzidos pelo imediato enquanto dormia, e embora Johansen tenha levado a pior, ele manteve a baiuca acordada pelo resto da noite, ressurgindo diversas vezes, mal das pernas, para continuar a briga.
Quanto a mim, fui oprimido por pesadelos. O dia inteiro se assemelhara a um sonho pavoroso. Uma brutalidade foi levando a outra. As paixões infladas e uma crueldade sanguinária tinham levado os homens a tentar tirar a vida uns dos outros e fazer todo o possível para ferir, aleijar e destruir. Meus nervos ficaram em estado de choque. Minha mente ficou em estado de choque. Eu tinha passado a vida toda ignorando o verdadeiro alcance da animalidade do homem. Na verdade, tinha conhecido a vida somente em suas dimensões intelectuais. Havia experimentado a brutalidade, mas era a brutalidade do intelecto, o sarcasmo cortante de Charles Furuseth, os epigramas cruéis e tiradas ocasionalmente ácidas dos companheiros do Bibelot, e os comentários severos de alguns professores nos meus dias de estudante.
Isso era tudo. Mas era novidade para mim, e de uma maneira estranha e assustadora, que os homens pudessem extravasar a raiva que tinham uns dos outros agredindo a carne e derramando sangue. Não era por nada que me chamavam de Humphrey “Florzinha”, pensei, me revirando no leito entre um pesadelo e outro. E agora eu tinha a impressão de que minha inocência diante da realidade da vida era de fato completa. Ri sozinho com amargura e comecei a ver na filosofia implacável de Wolf Larsen uma explicação melhor que a minha para a vida.
E me assustei ao perceber os rumos que meu pensamento estava tomando. A brutalidade contínua a meu redor tinha um efeito degenerativo. Não hesitava em destruir, dentro de mim, o que a vida tinha de melhor e mais luminoso. Minha razão atestava que a surra que Thomas Mugridge tinha recebido era uma coisa ruim, mas, por mais que houvesse tentado, não fui capaz de impedir que minha alma se regozijasse com ela. Mesmo oprimido pela enormidade do meu pecado, pois tratava-se de um pecado, eu dava uma risadinha louca de contentamento. Eu já não era Humphrey van Weyden. Eu era Hump, camaroteiro da escuna Ghost. Wolf Larsen era meu capitão, Thomas Mugridge e os outros eram meus companheiros e eu estava recebendo demãos da mesma tinta que cobrira a todos eles.

Jack London, in O Lobo do Mar

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