A
gente morava na última casa de uma rua. Depois
o
mato começava. Dois trilheiros entravam pelo
mato.
Um trilheiro dava no rancho de Nhá Velina
Cuê
que comia feijão com arara, quati com abóbora
e
cobra com mandioca. O outro trilheiro esbarrava
no
rio. Os meninos brincavam nus no rio entre
pássaros.
Tinha um Bolivianinho, boliviano pé
de
pano entre os guris. E um Gonçalo pé de galo
orelha
de meu cavalo. Acho que o pé de pano do
boliviano
era só para trovar. Assim como o pé de
galo
do Gonçalo. Descobri nesse tempo que os
apelidos
pregam mais quando trovam. Depois descobri
naquele
lugar a palavra abandono. A palavra funcionava
dentro
e fora das pessoas. Eu não sabia se era o
lugar
que transmitia o abandono às pessoas ou se
eram
elas que transmitiam o abandono ao lugar. Eu
conhecia
a palavra só de nome. Mas não conhecia
o
lugar que pegava abandono. Por antes a força da
palavra
é que me dava a noção. Mas em vista do
que
vi o olhar reforça a palavra. O olhar segura
a
palavra na gente. O cheiro e o amor do lugar
também
participam. Todos os seres daquele lugar
me
pareciam perdidos na terra, bem esquecidos como
um
lápis numa península. Mas Nhá Velina Cuê me
falou:
este abandono me protege. Acho que esse
paradoxo
reforça mais a poesia do que a verdade.
Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância
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