segunda-feira, 1 de agosto de 2022

A Vida no Céu | Sexto capítulo


(Mar: o céu em estado líquido. O princípio e o fim de tudo. Em quimbundo, e em vários outros idiomas africanos, a palavra que nomeia o mar é a mesma que nomeia Deus. É o lugar para onde vão os corpos das pessoas depois que morrem. As almas, creio, continuam no céu – ou vão para um céu acima deste. Essa é uma questão em debate. O céu dispõe-se em camadas, como uma cebola infinita. Por mais que a descasquemos, há sempre céu.)

Combinei com Aimeé e com Sibongile que faríamos turnos, nessa noite, para o caso de os piratas nos perseguirem. Fiquei na cabina de pilotagem, consultando cartas e estabelecendo planos de voo até às três da manhã. Não vi nenhuma luz estranha, e o radar manteve-se silencioso. Luanda estava ainda muito longe, mais de setecentas milhas para oeste. Fui acordar Sibongile e depois estendi-me num dos sofás da biblioteca. Despertei, já o sol ia alto, com a sensação de ter alguém atrás de mim, a vigiar-me. Levantei-me de um salto. Não havia ninguém, nem sequer o meu pai. Desci até ao meu quarto, um pouco inquieto. Sibongile dormia agora na minha rede. Lavei o rosto e os dentes e subi até à cabina de pilotagem. Júlio e Aimée estavam sentados no convés, conversando e rindo. O velho estendeu a mão ao ver-me:
Almirante? Seu pai deve ter muito orgulho em si.
Puxou-me com força e estreitou-me num apertado abraço. Aimée enxugou uma lágrima com as costas da mão.
Já sei que tiveste muito trabalho para me resgatar. A tua amiga contou-me. Acreditas que não me recordo de quase nada? Me lembro da tempestade, de ter solto o arnês para saltar e escapar às chamas, e de que escorreguei e falhei a rede. Depois guardo imagens soltas. Clarões. Memórias que não sinto como minhas.
Suponho que eles te mantiveram drogado o tempo todo.
Suponho que sim, só ainda não compreendo porquê. Foi o meu Woodstock, mas a música era má.
O resto do dia passou como uma festa. Manu oferecera-me carne de frango – um luxo! –, que o meu pai grelhou seguindo uma receita dos tempos antigos. A carne estava magnífica. Ainda assim comi-a com menos vontade do que todos os outros, porque, afinal de contas, frangos têm asas, têm penas e bicos, ou seja, são aves, e entre nós as aves não se comem. Aves são sagradas. Júlio bem me tentou convencer:
Estes frangos não vieram do céu, filho. Aliás, frangos não voam. – Suspirou. – Ah! Lá, na terra, eu gostava de comer os pássaros que o meu avô caçava. No céu não comemos as aves por respeito à vida. Fomos nós, os homens, quem provocou o Dilúvio. Somos responsáveis pela extinção de muitos milhares de espécies de plantas e animais. Algumas aves conseguiram escapar. O mínimo que podemos fazer é dar-lhes abrigo nas nossas aldeias.
O meu bisavô era índio. Um índio legítimo, da Amazônia, desses que se enfeitavam com penas, embora nas fotos que vi dele apareça sempre vestido de camisa e bermudas.
Aimée, que, como todos os habitantes dos dirigíveis, tem dificuldade em compreender a nossa devoção pelas aves, juntou-se ao meu pai:
Frangos são animais estúpidos. Mais estúpidos do que os peixes. Podem inclusive perder a cabeça e continuar vivos durante muito tempo.
Contou que vira um documentário sobre um frango norte-americano que ficara sem cabeça e sobrevivera, transformando-se numa celebridade.
Isso era possível nos Estados Unidos, esse tipo de fenômenos – confirmou o meu pai, muito sério. – Assim, de repente, lembro-me até de um ou dois presidentes norte-americanos que governaram sem cabeça.
Sibongile e Aimée riram-se. Eu deixei o frango de lado – que Aimée se apressou a comer – e fui preparar um sanduíche de atum. Estava feliz por ter o meu pai de volta. Três dias mais tarde avistamos Luanda. Amanhecia, e a minha aldeia refulgia ao longe, como uma teia de aranha presa entre balões de todas as cores. Alguém deve ter visto aproximar-se a Maianga porque, de repente, um foguete explodiu no ar, logo seguido de mais dois ou três. Quando atraquei, junto ao Jango, já uma pequena multidão se concentrava ali. A minha mãe avançou, apoiada numa das irmãs, enquanto as pessoas se afastavam para lhes dar passagem. Então Júlio inclinou-se sobre a amurada, de braços erguidos, e a aldeia inteira explodiu em júbilo, gritando e abraçando-se e soltando aquelas gargalhadas amplas e contagiosas que nós, os luandenses, cultivamos desde o berço.
Ficamos uma semana em Luanda. Foram dias alegres. Sibongile, porém, mostrava-se inquieta. Queria partir. Fazia questão de recordar o acordo entre nós:
Não estou de férias – repetia. – Cumpri a minha parte, cumpre a tua.
Voltei a aparelhar a Maianga. A minha mãe opôs-se. Júlio ficou do meu lado:
O rapaz tem razão, Georgina. Fez um acordo e tem de o cumprir. Vai ser uma bela viagem. Será bom. Está na hora de o nosso passarinho conhecer mais céu.
Sibongile procurava uma aldeia chamada Jakarta. Consultei a Skypedia, um dicionário exaustivo de aldeias, grandes cidades (dirigíveis), balões-empresa, balões-pesqueiros, postos de abastecimento de hélio, gasolineiras, e quase tudo quanto voe ou flutue, exceto aves legítimas e papagaios de papel. Fiquei a saber que Jakarta é composta por mais de oitocentas balsas. Uma aldeia gigantesca, portanto, habitada por umas doze mil pessoas. Os indonésios mantêm-se numa posição fixa, ou quase fixa, muito perto das coordenadas da Jakarta terrestre. Os balseiros fizeram, ao partir, na cerimônia de ascensão, um juramento segundo o qual não abandonariam jamais os céus do seu país, aguardando, suspensos, o dia da descida. Até ao momento têm cumprido. Não é fácil manter a aldeia estacionada, contra ventos e tempestades. Imaginem oitocentas balsas de todos os tipos, grandes e pequenas, bailando no céu ao mesmo ritmo.
Para um estrangeiro Jakarta parece um caos – disse-me Sibongile. – Pouco a pouco começas a compreender que existe uma harmonia oculta e que tudo aquilo funciona.
Sorri, Luanda não era muito diferente, apenas tinha menos gente. Quis saber quantos anos Sibongile vivera em Jakarta. A sangoma olhou-me, divertida:
Em Jakarta?! Nunca vivi em Jakarta.
Ouvindo-te falar parece que viveste lá imenso tempo. Como sabes tantas coisas?
Contou-me o homem de que te falei. Ele é indonésio. Mang, chama-se Mang.
O que é que ele faz?
Vende seda.
Seda?
Seda. Quase toda a seda que circula no céu vem de Jakarta. Eles têm bichos da seda.
E esse homem, esse Mang, ele esteve na Ilha Verde?
Sim.
Não acredito, mas, enfim, vou cumprir a minha promessa. Levo-te a Jakarta.
Pretendia passar por Paris, para deixar Aimée. Fui falar com ela. Esperava gritos e choros, mas isso não aconteceu:
Péssimas notícias – disse-me, muito serena, ao mesmo tempo que abria o laptop. Mostrou-me uma série de mensagens trocadas com a mãe. – Subestimamos a influência que Boniface exerce sobre o governo do Paris. Nenhum dos homens dele foi preso. Manu, o teu amigo, está desaparecido. O meu pai anda como um louco, à procura de quem possa ter entrado nos computadores de bordo. Foi falar com o Alain, claro, suspeitaram logo dele por causa da minha fuga. Escuso de te dizer que os meus pais estão furiosos...
E o Alain?
O Alain não é estúpido. Montou aquela pequena operação a partir do exterior, com um bando de hackers, as Brigadas de Assange, vinte ou trinta tipos espalhados por todo o céu. O governo não tem provas contra ele. O meu pai fechou-o no quarto, sem acesso ao computador, mais para o proteger do que para o castigar.
Voltou a fechar o laptop e abraçou-me, triunfante:
Já vês, não posso regressar ao Paris.
Dois dias mais tarde a Maianga voltava a navegar. Largamos, rumo a leste, com um céu magnífico, tão liso e tão limpo que se conseguia, aqui e ali, espreitar o mar. Aimée, que nunca antes vira o oceano, estava deslumbrada:
É tão lindo. Ah! Como eu gostava de mergulhar.
Os deuses escutaram-na. Ao anoitecer, vi no radar um ponto vermelho, devidamente identificado, aproximando-se de nós. Era o Paraty, de que já vos falei atrás, uma balsa pesqueira, muito bem equipada, que vende o melhor peixe daquela parte do céu. Provavelmente, de qualquer parte. Costumam aparecer em Luanda, de mês a mês, carregados de peixe e de riso fresco. A mãe, Judite, uma matrona alegre e ágil, fala com os filhos aos gritos, num português redondo e musical. David, o filho mais velho, não fala. Deixou de falar, ainda criança, no dia em que embarcaram na balsa e ele viu, a partir das nuvens, o mar engolir num brutal galope o histórico casario da pequena cidade onde moravam. Armando, o filho do meio, já nascido no céu, fala pelo irmão. A gente pergunta o que quer que seja a David, este olha para Armando, e Armando responde. Esther, dois anos mais velha do que eu, ri mais do que fala. O cabelo loiro, repartido em grossas tranças de rastafári, chega-lhe à cintura.
O pescador à linha está para o pescador-mergulhador como um pároco de aldeia para um exorcista. Ambos pretendem o mesmo (no caso de párocos e exorcistas, salvar almas), mas enquanto uns contemplam o inferno de longe, como quem contempla uma metáfora, os outros mergulham nele.
Aproximei-me do Paraty e pedi licença para lançar uma ponte. Atravessamos para a balsa deles. Expliquei à família que eu e Aimée aprendêramos a nadar na piscina do Paris e que gostaríamos de mergulhar com eles. Aceitaram a proposta com entusiasmo. Na manhã seguinte acordamos muito cedo. O céu continuava translúcido como um vidro. Judite emprestou-nos máscaras de mergulho. Ajudou-nos a afivelar o arnês e a prender o cabo. Depois baixou o balão. O ar tornou-se quente. Esther saltou, de pé, e nós seguimo-la. Senti-me como se estivesse a mergulhar na boca de um dragão. Um bafo inflamado, uma rápida cegueira branca. Depois o mar quebrou-se como um espelho, e logo fendemos a água, assustando um cardume de peixes muito longos e muito verdes, de grandes olhos alucinados. Nadei até à superfície. Devido à neblina, a visibilidade era maior dentro da água. O ar não se respirava – comia-se. Ardia nos pulmões. Escutei, atrás de mim, a voz calma de Esther:
Respira devagar. Habitua-te. Faz de conta que acabaste de nascer.
Muitos mergulhadores inexperientes desmaiam ao regressarem à superfície. Os Paraty criaram um código para comunicar com o pessoal lá em cima, na balsa. Dois esticões significa que está tudo bem. Três – ou nenhum – icem-nos. Aimée emergiu ao meu lado, a pele do rosto afogueada, rindo como uma criança:
É tão lindo! Olhem para baixo – disse. – Não se assustem.
Um enorme tubarão-azul, uma das criaturas mais elegantes dos oceanos, girava sob os nossos pés. Media pelo menos quatro metros. Deu três lentas voltas e afastou-se. Esther mergulhou e nós fomos atrás dela. A água era ali pouco profunda. A oito, dez metros, conseguia-se distinguir, muito ao fundo, um escuro rumor de agudas formas.
Isto já foi uma floresta – assegurou Esther, quando regressamos à superfície. – Aquilo, lá no fundo, são troncos de árvores. Milhões de grandes árvores mortas.
Almoçamos com eles um maravilhoso peixe-espada grelhado, e despedimo-nos. Durante a semana seguinte não vimos ninguém. Um céu desabitado. Então, no primeiro dia de março, muito de madrugada, um violento alarido arrancou-me da cama. Aimée, que dormia ao meu lado, abraçou-se a mim, em pânico:
O que é isto?!
Subimos os dois. Sibongile continuava a dormir, na biblioteca, alheia ao carnaval que parecia estar a decorrer um pouco mais acima, no nosso convés. Passei pela cozinha, procurei a faca maior e galguei em dois saltos os degraus que faltavam. Abri a porta – e dei com os papagaios. Passeavam na amurada, seis ou sete, gritando uns com os outros, muito alegres, como adolescentes numa festa. Aimée já estava ao meu lado, também ela segurando uma faca e tão assombrada quanto eu:
Maravilha! E de onde saíram eles?
Procurei no céu sinais de uma embarcação. Não se via nada. Corri até à cabina de pilotagem. A aldeia mais próxima, o Cairo, estava a mais de cem quilômetros de distância, para norte. Havia também uma estação móvel de abastecimento de hélio, duzentos e cinquenta quilômetros para sul. Mais nada. Dois pequenos pontos no monitor, um vermelho e outro azul, afastando-se um do outro. Um terceiro ponto, no centro, muito verde, palpitando e palpitando e palpitando: nós, a Maianga.
Vem! Vem ver isto!
Era Aimée gritando lá fora, apontando com o dedo para qualquer coisa, bastante mais abaixo, escondida entre o nevoeiro. Fiz com que a balsa descesse até aos cem metros. Um calor sufocante. Arranquei a camisa, ensopada em suor, e desci mais um pouco. Os papagaios protestaram, irritados. Dois deles levantaram voo e deixaram-se cair, afundando-se na suave brancura. Segui-os com o olhar. E de repente lá estava ele, um balão azul, alongado, muito brilhante. Tivera um nome, mas estava riscado. Estabilizei a Maianga ao lado da balsa. Fui buscar o megafone:
Alô, tripulação, respondam!
Só os papagaios responderam. Esvoaçavam, muito agitados, entre as duas balsas. Estávamos a menos de vinte metros. Lancei um gancho que se prendeu à amurada da outra embarcação. Estiquei o calabre. Vesti o arnês e prendi-me ao cabo. Aimée não escondia o nervosismo:
Vais atravessar? És algum funâmbulo?
Lembrei-me de uma frase que o meu pai gostava de repetir:
No céu, somos todos funâmbulos e palhaços. Uns mais palhaços, outros mais funâmbulos.
Subi para a amurada e atravessei o calabre a correr. Faltavam-me percorrer uns dez metros quando, sem aviso, baixou em mim o palhaço – essa entidade propensa a desastres e gargalhadas. Libertei o meu cabo do arnês e voltei-me para trás. Aimée tinha os olhos muito abertos. Sibongile, ao lado dela, desgrenhada, embrulhada numa toalha vermelha, abanava a cabeça num gesto de reprovação:
Estás maluco?! – gritou-me Aimée. – Volta a prender o cabo.
Dobrei-me numa vênia teatral e dei um salto mortal para trás. Há anos que não fazia aquilo. Porém, embora me faltasse o treino sobrava-me, naquele instante, a convicção, de forma que o meu corpo desenhou uma curva perfeita no ar sem fôlego, até os meus pés encontrarem de novo a segurança do calabre. Voltei a inclinar-me, numa vénia ainda mais profunda, «aplausos, gente, aplausos!», dei meia volta e saltei para o convés da balsa. Estava tudo arrumado e limpo com exceção das penas dos papagaios. Abri a porta que conduzia à cabina de pilotagem. Preso a uma das paredes havia um enorme mapa, desenhado à mão, do que parecia ser a terra após o Grande Desastre. Ao invés de Terra devia ter passado a chamar-se Água. Pequenas ilhas soltas (mortas) numa imensidão de azul. Não encontrei o computador de bordo. Impossível adivinhar o que se passara ali.
Ouvi um choro. Detive-me, assustado. Vinha do andar inferior. Desci. Vi, olhando para mim com enormes olhos de assombro, uma menina de um ano e pouco. Estava nua e fazia um esforço enorme para se manter em pé. Ao ver-me abriu um sorriso:
Papá!
Peguei-a ao colo. Não havia mais ninguém. A mesa da cozinha estava posta para duas pessoas. Pão de algas, água e dois ovos estrelados. Havia ainda um biberão vazio. Enchi o biberão com a água e dei-o à menina. Voltei ao convés. Mostrei a figurinha às duas mulheres, na Maianga. Gritei:
E agora, o que faço com ela?

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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