(Mar:
o céu em estado líquido. O princípio e o fim de tudo. Em
quimbundo, e em vários outros idiomas africanos, a palavra que
nomeia o mar é a mesma que nomeia Deus. É o lugar para onde vão os
corpos das pessoas depois que morrem. As almas, creio, continuam no
céu – ou vão para um céu acima deste. Essa é uma questão em
debate. O céu dispõe-se em camadas, como uma cebola infinita. Por
mais que a descasquemos, há sempre céu.)
Combinei
com Aimeé e com Sibongile que faríamos turnos, nessa noite, para o
caso de os piratas nos perseguirem. Fiquei na cabina de pilotagem,
consultando cartas e estabelecendo planos de voo até às três da
manhã. Não vi nenhuma luz estranha, e o radar manteve-se
silencioso. Luanda estava ainda muito longe, mais de setecentas
milhas para oeste. Fui acordar Sibongile e depois estendi-me num dos
sofás da biblioteca. Despertei, já o sol ia alto, com a sensação
de ter alguém atrás de mim, a vigiar-me. Levantei-me de um salto.
Não havia ninguém, nem sequer o meu pai. Desci até ao meu quarto,
um pouco inquieto. Sibongile dormia agora na minha rede. Lavei o
rosto e os dentes e subi até à cabina de pilotagem. Júlio e Aimée
estavam sentados no convés, conversando e rindo. O velho estendeu a
mão ao ver-me:
– Almirante?
Seu pai deve ter muito orgulho em si.
Puxou-me
com força e estreitou-me num apertado abraço. Aimée enxugou uma
lágrima com as costas da mão.
– Já
sei que tiveste muito trabalho para me resgatar. A tua amiga
contou-me. Acreditas que não me recordo de quase nada? Me lembro da
tempestade, de ter solto o arnês para saltar e escapar às chamas, e
de que escorreguei e falhei a rede. Depois guardo imagens soltas.
Clarões. Memórias que não sinto como minhas.
– Suponho
que eles te mantiveram drogado o tempo todo.
– Suponho
que sim, só ainda não compreendo porquê. Foi o meu Woodstock, mas
a música era má.
O
resto do dia passou como uma festa. Manu oferecera-me carne de frango
– um luxo! –, que o meu pai grelhou seguindo uma receita dos
tempos antigos. A carne estava magnífica. Ainda assim comi-a com
menos vontade do que todos os outros, porque, afinal de contas,
frangos têm asas, têm penas e bicos, ou seja, são aves, e entre
nós as aves não se comem. Aves são sagradas. Júlio bem me tentou
convencer:
– Estes
frangos não vieram do céu, filho. Aliás, frangos não voam. –
Suspirou. – Ah! Lá, na terra, eu gostava de comer os pássaros que
o meu avô caçava. No céu não comemos as aves por respeito à
vida. Fomos nós, os homens, quem provocou o Dilúvio. Somos
responsáveis pela extinção de muitos milhares de espécies de
plantas e animais. Algumas aves conseguiram escapar. O mínimo que
podemos fazer é dar-lhes abrigo nas nossas aldeias.
O
meu bisavô era índio. Um índio legítimo, da Amazônia, desses que
se enfeitavam com penas, embora nas fotos que vi dele apareça sempre
vestido de camisa e bermudas.
Aimée,
que, como todos os habitantes dos dirigíveis, tem dificuldade em
compreender a nossa devoção pelas aves, juntou-se ao meu pai:
– Frangos
são animais estúpidos. Mais estúpidos do que os peixes. Podem
inclusive perder a cabeça e continuar vivos durante muito tempo.
Contou
que vira um documentário sobre um frango norte-americano que ficara
sem cabeça e sobrevivera, transformando-se numa celebridade.
– Isso
era possível nos Estados Unidos, esse tipo de fenômenos –
confirmou o meu pai, muito sério. – Assim, de repente, lembro-me
até de um ou dois presidentes norte-americanos que governaram sem
cabeça.
Sibongile
e Aimée riram-se. Eu deixei o frango de lado – que Aimée se
apressou a comer – e fui preparar um sanduíche de atum. Estava
feliz por ter o meu pai de volta. Três dias mais tarde avistamos
Luanda. Amanhecia, e a minha aldeia refulgia ao longe, como uma teia
de aranha presa entre balões de todas as cores. Alguém deve ter
visto aproximar-se a Maianga porque, de repente, um foguete explodiu
no ar, logo seguido de mais dois ou três. Quando atraquei, junto ao
Jango, já uma pequena multidão se concentrava ali. A minha mãe
avançou, apoiada numa das irmãs, enquanto as pessoas se afastavam
para lhes dar passagem. Então Júlio inclinou-se sobre a amurada, de
braços erguidos, e a aldeia inteira explodiu em júbilo, gritando e
abraçando-se e soltando aquelas gargalhadas amplas e contagiosas que
nós, os luandenses, cultivamos desde o berço.
Ficamos
uma semana em Luanda. Foram dias alegres. Sibongile, porém,
mostrava-se inquieta. Queria partir. Fazia questão de recordar o
acordo entre nós:
– Não
estou de férias – repetia. – Cumpri a minha parte, cumpre a tua.
Voltei
a aparelhar a Maianga. A minha mãe opôs-se. Júlio ficou do meu
lado:
– O
rapaz tem razão, Georgina. Fez um acordo e tem de o cumprir. Vai ser
uma bela viagem. Será bom. Está na hora de o nosso passarinho
conhecer mais céu.
Sibongile
procurava uma aldeia chamada Jakarta. Consultei a Skypedia, um
dicionário exaustivo de aldeias, grandes cidades (dirigíveis),
balões-empresa, balões-pesqueiros, postos de abastecimento de
hélio, gasolineiras, e quase tudo quanto voe ou flutue, exceto aves
legítimas e papagaios de papel. Fiquei a saber que Jakarta é
composta por mais de oitocentas balsas. Uma aldeia gigantesca,
portanto, habitada por umas doze mil pessoas. Os indonésios
mantêm-se numa posição fixa, ou quase fixa, muito perto das
coordenadas da Jakarta terrestre. Os balseiros fizeram, ao partir, na
cerimônia de ascensão, um juramento segundo o qual não
abandonariam jamais os céus do seu país, aguardando, suspensos, o
dia da descida. Até ao momento têm cumprido. Não é fácil manter
a aldeia estacionada, contra ventos e tempestades. Imaginem
oitocentas balsas de todos os tipos, grandes e pequenas, bailando no
céu ao mesmo ritmo.
– Para
um estrangeiro Jakarta parece um caos – disse-me Sibongile. –
Pouco a pouco começas a compreender que existe uma harmonia oculta e
que tudo aquilo funciona.
Sorri,
Luanda não era muito diferente, apenas tinha menos gente. Quis saber
quantos anos Sibongile vivera em Jakarta. A sangoma olhou-me,
divertida:
– Em
Jakarta?! Nunca vivi em Jakarta.
– Ouvindo-te
falar parece que viveste lá imenso tempo. Como sabes tantas coisas?
– Contou-me
o homem de que te falei. Ele é indonésio. Mang, chama-se Mang.
– O
que é que ele faz?
– Vende
seda.
– Seda?
– Seda.
Quase toda a seda que circula no céu vem de Jakarta. Eles têm
bichos da seda.
– E
esse homem, esse Mang, ele esteve na Ilha Verde?
– Sim.
– Não
acredito, mas, enfim, vou cumprir a minha promessa. Levo-te a
Jakarta.
Pretendia
passar por Paris, para deixar Aimée. Fui falar com ela. Esperava
gritos e choros, mas isso não aconteceu:
– Péssimas
notícias – disse-me, muito serena, ao mesmo tempo que abria o
laptop. Mostrou-me uma série de mensagens trocadas com a mãe.
– Subestimamos a influência que Boniface exerce sobre o governo do
Paris. Nenhum dos homens dele foi preso. Manu, o teu amigo, está
desaparecido. O meu pai anda como um louco, à procura de quem possa
ter entrado nos computadores de bordo. Foi falar com o Alain, claro,
suspeitaram logo dele por causa da minha fuga. Escuso de te dizer que
os meus pais estão furiosos...
– E
o Alain?
– O
Alain não é estúpido. Montou aquela pequena operação a partir do
exterior, com um bando de hackers, as Brigadas de Assange, vinte ou
trinta tipos espalhados por todo o céu. O governo não tem provas
contra ele. O meu pai fechou-o no quarto, sem acesso ao computador,
mais para o proteger do que para o castigar.
Voltou
a fechar o laptop e abraçou-me, triunfante:
– Já
vês, não posso regressar ao Paris.
Dois
dias mais tarde a Maianga voltava a navegar. Largamos, rumo a leste,
com um céu magnífico, tão liso e tão limpo que se conseguia, aqui
e ali, espreitar o mar. Aimée, que nunca antes vira o oceano, estava
deslumbrada:
– É
tão lindo. Ah! Como eu gostava de mergulhar.
Os
deuses escutaram-na. Ao anoitecer, vi no radar um ponto vermelho,
devidamente identificado, aproximando-se de nós. Era o Paraty, de
que já vos falei atrás, uma balsa pesqueira, muito bem equipada,
que vende o melhor peixe daquela parte do céu. Provavelmente, de
qualquer parte. Costumam aparecer em Luanda, de mês a mês,
carregados de peixe e de riso fresco. A mãe, Judite, uma matrona
alegre e ágil, fala com os filhos aos gritos, num português redondo
e musical. David, o filho mais velho, não fala. Deixou de falar,
ainda criança, no dia em que embarcaram na balsa e ele viu, a partir
das nuvens, o mar engolir num brutal galope o histórico casario da
pequena cidade onde moravam. Armando, o filho do meio, já nascido no
céu, fala pelo irmão. A gente pergunta o que quer que seja a David,
este olha para Armando, e Armando responde. Esther, dois anos mais
velha do que eu, ri mais do que fala. O cabelo loiro, repartido em
grossas tranças de rastafári, chega-lhe à cintura.
O
pescador à linha está para o pescador-mergulhador como um pároco
de aldeia para um exorcista. Ambos pretendem o mesmo (no caso de
párocos e exorcistas, salvar almas), mas enquanto uns contemplam o
inferno de longe, como quem contempla uma metáfora, os outros
mergulham nele.
Aproximei-me
do Paraty e pedi licença para lançar uma ponte. Atravessamos para a
balsa deles. Expliquei à família que eu e Aimée aprendêramos a
nadar na piscina do Paris e que gostaríamos de mergulhar com eles.
Aceitaram a proposta com entusiasmo. Na manhã seguinte acordamos
muito cedo. O céu continuava translúcido como um vidro. Judite
emprestou-nos máscaras de mergulho. Ajudou-nos a afivelar o arnês e
a prender o cabo. Depois baixou o balão. O ar tornou-se quente.
Esther saltou, de pé, e nós seguimo-la. Senti-me como se estivesse
a mergulhar na boca de um dragão. Um bafo inflamado, uma rápida
cegueira branca. Depois o mar quebrou-se como um espelho, e logo
fendemos a água, assustando um cardume de peixes muito longos e
muito verdes, de grandes olhos alucinados. Nadei até à superfície.
Devido à neblina, a visibilidade era maior dentro da água. O ar não
se respirava – comia-se. Ardia nos pulmões. Escutei, atrás de
mim, a voz calma de Esther:
– Respira
devagar. Habitua-te. Faz de conta que acabaste de nascer.
Muitos
mergulhadores inexperientes desmaiam ao regressarem à superfície.
Os Paraty criaram um código para comunicar com o pessoal lá em
cima, na balsa. Dois esticões significa que está tudo bem. Três –
ou nenhum – icem-nos. Aimée emergiu ao meu lado, a pele do rosto
afogueada, rindo como uma criança:
– É
tão lindo! Olhem para baixo – disse. – Não se assustem.
Um
enorme tubarão-azul, uma das criaturas mais elegantes dos oceanos,
girava sob os nossos pés. Media pelo menos quatro metros. Deu três
lentas voltas e afastou-se. Esther mergulhou e nós fomos atrás
dela. A água era ali pouco profunda. A oito, dez metros,
conseguia-se distinguir, muito ao fundo, um escuro rumor de agudas
formas.
– Isto
já foi uma floresta – assegurou Esther, quando regressamos à
superfície. – Aquilo, lá no fundo, são troncos de árvores.
Milhões de grandes árvores mortas.
Almoçamos
com eles um maravilhoso peixe-espada grelhado, e despedimo-nos.
Durante a semana seguinte não vimos ninguém. Um céu desabitado.
Então, no primeiro dia de março, muito de madrugada, um violento
alarido arrancou-me da cama. Aimée, que dormia ao meu lado,
abraçou-se a mim, em pânico:
– O
que é isto?!
Subimos
os dois. Sibongile continuava a dormir, na biblioteca, alheia ao
carnaval que parecia estar a decorrer um pouco mais acima, no nosso
convés. Passei pela cozinha, procurei a faca maior e galguei em dois
saltos os degraus que faltavam. Abri a porta – e dei com os
papagaios. Passeavam na amurada, seis ou sete, gritando uns com os
outros, muito alegres, como adolescentes numa festa. Aimée já
estava ao meu lado, também ela segurando uma faca e tão assombrada
quanto eu:
– Maravilha!
E de onde saíram eles?
Procurei
no céu sinais de uma embarcação. Não se via nada. Corri até à
cabina de pilotagem. A aldeia mais próxima, o Cairo, estava a mais
de cem quilômetros de distância, para norte. Havia também uma
estação móvel de abastecimento de hélio, duzentos e cinquenta
quilômetros para sul. Mais nada. Dois pequenos pontos no monitor, um
vermelho e outro azul, afastando-se um do outro. Um terceiro ponto,
no centro, muito verde, palpitando e palpitando e palpitando: nós, a
Maianga.
– Vem!
Vem ver isto!
Era
Aimée gritando lá fora, apontando com o dedo para qualquer coisa,
bastante mais abaixo, escondida entre o nevoeiro. Fiz com que a balsa
descesse até aos cem metros. Um calor sufocante. Arranquei a camisa,
ensopada em suor, e desci mais um pouco. Os papagaios protestaram,
irritados. Dois deles levantaram voo e deixaram-se cair, afundando-se
na suave brancura. Segui-os com o olhar. E de repente lá estava ele,
um balão azul, alongado, muito brilhante. Tivera um nome, mas estava
riscado. Estabilizei a Maianga ao lado da balsa. Fui buscar o
megafone:
– Alô,
tripulação, respondam!
Só
os papagaios responderam. Esvoaçavam, muito agitados, entre as duas
balsas. Estávamos a menos de vinte metros. Lancei um gancho que se
prendeu à amurada da outra embarcação. Estiquei o calabre. Vesti o
arnês e prendi-me ao cabo. Aimée não escondia o nervosismo:
– Vais
atravessar? És algum funâmbulo?
Lembrei-me
de uma frase que o meu pai gostava de repetir:
– No
céu, somos todos funâmbulos e palhaços. Uns mais palhaços, outros
mais funâmbulos.
Subi
para a amurada e atravessei o calabre a correr. Faltavam-me percorrer
uns dez metros quando, sem aviso, baixou em mim o palhaço – essa
entidade propensa a desastres e gargalhadas. Libertei o meu cabo do
arnês e voltei-me para trás. Aimée tinha os olhos muito abertos.
Sibongile, ao lado dela, desgrenhada, embrulhada numa toalha
vermelha, abanava a cabeça num gesto de reprovação:
– Estás
maluco?! – gritou-me Aimée. – Volta a prender o cabo.
Dobrei-me
numa vênia teatral e dei um salto mortal para trás. Há anos que
não fazia aquilo. Porém, embora me faltasse o treino sobrava-me,
naquele instante, a convicção, de forma que o meu corpo desenhou
uma curva perfeita no ar sem fôlego, até os meus pés encontrarem
de novo a segurança do calabre. Voltei a inclinar-me, numa vénia
ainda mais profunda, «aplausos, gente, aplausos!», dei meia volta e
saltei para o convés da balsa. Estava tudo arrumado e limpo com
exceção das penas dos papagaios. Abri a porta que conduzia à
cabina de pilotagem. Preso a uma das paredes havia um enorme mapa,
desenhado à mão, do que parecia ser a terra após o Grande
Desastre. Ao invés de Terra devia ter passado a chamar-se Água.
Pequenas ilhas soltas (mortas) numa imensidão de azul. Não
encontrei o computador de bordo. Impossível adivinhar o que se
passara ali.
Ouvi
um choro. Detive-me, assustado. Vinha do andar inferior. Desci. Vi,
olhando para mim com enormes olhos de assombro, uma menina de um ano
e pouco. Estava nua e fazia um esforço enorme para se manter em pé.
Ao ver-me abriu um sorriso:
– Papá!
Peguei-a
ao colo. Não havia mais ninguém. A mesa da cozinha estava posta
para duas pessoas. Pão de algas, água e dois ovos estrelados. Havia
ainda um biberão vazio. Enchi o biberão com a água e dei-o à
menina. Voltei ao convés. Mostrei a figurinha às duas mulheres, na
Maianga. Gritei:
– E
agora, o que faço com ela?
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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