sexta-feira, 8 de julho de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 5


Mas a minha primeira noite na baiuca dos caçadores foi também a última. No dia seguinte, Johansen, o novo imediato, foi enxotado da cabine por Wolf Larsen e alocado para dormir na baiuca dali em diante, e eu assumi um lugar no pequeno camarote da cabine, que já levava dois ocupantes no início da viagem. A razão por trás da mudança logo chegou ao conhecimento dos caçadores e deu pano a muitas queixas. Aparentemente, Johansen revivia à noite todos os acontecimentos do dia. Seu hábito de falar, gritar e proferir ordens durante o sono tinha sido demais para Wolf Larsen, e o capitão tratou de impingir o estorvo a seus caçadores.
Após a noite em claro, levantei fraco e dolorido para enfrentar meu segundo dia no Ghost. Thomas Mugridge me expulsou da cama às cinco e meia da mesma forma que Bill Sykes devia fazer com seu cachorro, mas a brutalidade com que me tratou foi retribuída com juros. O barulho desnecessário que fez (eu estava de olhos abertos como estivera a noite toda) deve ter despertado um dos caçadores, pois um sapato pesado passou voando na semiescuridão e arrancou do sr. Mugridge um grito de dor lancinante e um pedido geral de desculpas. Mais tarde, na cozinha, percebi que sua orelha estava vermelha e inchada. Ela nunca mais voltou ao tamanho normal e passou a ser chamada pelos marujos de “orelha de couve-flor”.
O dia transcorreu sem grandes acontecimentos. Eu tinha trazido minhas roupas secas da cozinha na noite anterior e a primeira coisa que fiz foi vesti-las para me livrar das roupas do cozinheiro. Procurei minha carteira. Além de trocados miúdos (e tenho boa memória para essas coisas), ela devia conter cento e oitenta e cinco dólares em ouro e cédulas. Encontrei a carteira, mas seu conteúdo, com exceção das moedinhas pequenas, tinha se extraviado. Toquei no assunto com o cozinheiro assim que cheguei ao convés para assumir minhas funções na cozinha, e, por mais que já esperasse uma resposta ríspida, não estava preparado para o discurso irado que precisei ouvir.
Escuta aqui, Hump — ele disse com um brilho malicioso no olhar e um rangido na voz —, tá querendo que eu te enfie a mão na cara? Se tá pensando que sou ladrão, melhor ficar na sua, ou vai aprender que tá enganado do jeito mais difícil. Raios me partam, é isso que eu chamo de gratidão! Você aparece do nada, um pobre-coitado, um trapo humano, aí te deixo trabalhar na minha cozinha, te recebo bem, e ganho isso em troca. Da próxima vez, que vá pro inferno, e se precisar de ajuda te dou um empurrãozinho.
Dito isso, ele ergueu os punhos e veio em minha direção. Por mais que me envergonhe em contá-lo, desviei do golpe e saí correndo pela porta da cozinha. Nada além da força podia prevalecer nessa nau de brutos. A persuasão moral era algo desconhecido. Tente imaginar um homem de estatura mediana, esguio e com músculos atrofiados, que teve uma vida pacata e calma e não está acostumado a nenhum tipo de violência. O que um homem assim pode fazer? Enfrentar aqueles homens seria tão irracional quanto enfrentar um touro furioso.
Era o que eu dizia a mim mesmo naquele tempo, movido pela necessidade de me justificar e pelo desejo de estar em paz com minha consciência. Mas essa justificativa não bastava. Até hoje, não consigo olhar para trás como homem e me inocentar por completo diante do que aconteceu. A situação realmente excedia as normas habituais de conduta e exigia mais do que frias conclusões racionais. Do ponto de vista da lógica formal, não há nada do que me envergonhar; mesmo assim, essas recordações me enchem de vergonha, e do alto do meu orgulho sinto que minha virilidade foi pisada e desonrada.
Nada disso importa. A velocidade com que saí correndo da cozinha causou uma dor excruciante no meu joelho e caí impotente à beira do tombadilho. Mas o cockney não veio em meu encalço.
Vejam como corre! Vejam como corre! — ouvi ele gritar. — E com a perna manca! Volta aqui, queridinho da mamãe. Não vou te bater, prometo.
Retornei e continuei trabalhando, por ora dando o episódio como encerrado, embora outros desdobramentos me aguardassem. Botei a mesa do café na cabine e às sete horas fui servir os caçadores e oficiais. A tempestade havia claramente cessado durante a noite, mas o mar continuava imenso e o vento ainda soprava forte. Tinham estendido as velas nas primeiras vigias do dia, e agora o Ghost singrava com todas elas, exceto os dois joanetes e a bujarrona. Essas três velas, depreendi das conversas, seriam baixadas imediatamente após o desjejum. Também soube que Wolf Larsen pretendia aproveitar ao máximo os efeitos da tempestade que o empurrava para sudoeste, em direção a um ponto do mar onde ele esperava pegar os ventos alísios16 que sopravam do noroeste. Contava com esse vento constante para vencer a maior parte da distância até o Japão, fazendo uma curva ao sul até os trópicos e voltando ao norte ao se aproximar da costa asiática.
Após o café da manhã, tive outra experiência pouco invejável. Quando terminei de lavar os pratos, fui limpar o fogareiro da cabine e carreguei as cinzas ao convés para despejá-las. Wolf Larsen e Henderson estavam parados ao lado do timão, envolvidos numa conversa. O marinheiro Johnson pilotava o barco. Quando eu estava indo para o lado a barlavento, ele fez um movimento brusco de cabeça que interpretei como um gesto de reconhecimento ou saudação. Na verdade, ele estava tentando me dizer para despejar as cinzas no lado a sotavento. Inconsciente da mancada que estava prestes a cometer, passei por Wolf Larsen e pelo caçador e lancei as cinzas contra o vento. O vento as trouxe de volta e elas cobriram não apenas a mim, mas também Henderson e Wolf Larsen. No instante seguinte o capitão me deu um pontapé, como se eu fosse um vira-lata. Eu não imaginava que um chute podia doer tanto. Afastei-me dele aos tropeços e apoiei-me na lateral da cabine, sentindo-me à beira de um desmaio. Tudo começou a nadar diante dos meus olhos e me senti enjoado. As náuseas foram tomando conta de mim. Tentei me arrastar até a borda da embarcação. Mas Wolf Larsen não veio atrás de mim. Depois de limpar as cinzas das roupas, retomou a conversa com Henderson. Johansen, que tinha visto tudo do tombadilho, mandou um par de marujos limpar a bagunça.
Mais para o fim da manhã, tive uma surpresa de outra ordem. Seguindo as instruções do cozinheiro, eu tinha entrado no camarote de Wolf Larsen para ajeitar tudo e arrumar a cama. Na parede, perto da cabeceira da cama, havia uma prateleira cheia de livros. Dei uma espiada neles e me espantei ao encontrar nomes como Shakespeare, Tennyson, Poe e De Quincey. Também havia livros científicos da autoria de homens como Tyndall, Proctor e Darwin. A astronomia e a física estavam representadas e bati o olho em obras como A era da fábula, de Bulfinch, a História da literatura inglesa e americana de Shaw e os dois grandes volumes da História natural de Johnson. Havia ainda uma porção de gramáticas, entre elas as de Metcalf, Reed e Kellogg, e não contive um sorrisinho ao ver um exemplar de The Dean’s English.
Era impossível conciliar esses livros com aquele homem e com tudo que eu já sabia dele, e fiquei pensando se ele realmente os teria lido. Mas, quando fui arrumar a cama, encontrei o volume das obras completas de Browning, na edição de Cambridge, largada no meio dos cobertores, como se ele tivesse caído no sono enquanto lia. O volume estava aberto em “In a balcony”, e percebi trechos sublinhados a lápis aqui e ali. Como se não bastasse, deixei o livro cair com uma guinada do barco e dele saiu uma folha de papel. Tinha sido rabiscada com diagramas geométricos e cálculos de alguma espécie.
Ficava evidente que aquele homem terrível não era a besta ignorante que suas demonstrações de brutalidade indicavam. Ele tinha acabado de se transformar num enigma. Vistos separadamente, os dois lados de sua natureza eram compreensíveis; se tomados juntos, eram desconcertantes. Eu já tinha comentado que sua linguagem era excelente, apenas ocasionalmente maculada por pequenas imprecisões. É claro que no tratamento comum dado aos marujos e caçadores ela às vezes transbordava de erros, o que estava de acordo com o linguajar deles. As poucas palavras que havia trocado comigo, no entanto, foram sempre claras e corretas.
Esse vislumbre de sua outra faceta aumentou minha coragem e decidi ir falar com ele a respeito do meu dinheiro extraviado.
Fui roubado — disse-lhe um pouco mais tarde, ao encontrá-lo andando sozinho de um lado a outro no tombadilho.
Senhor — ele me corrigiu com firmeza, mas sem rispidez.
Fui roubado, senhor — emendei.
E como isso aconteceu? — ele perguntou.
Coloquei-o a par de todas as circunstâncias, mencionando que minhas roupas tinham ficado secando na cozinha e que depois quase tinha apanhado do cozinheiro ao tocar no assunto.
Ele sorriu ao terminar de ouvir o meu relato.
Rapinagem — concluiu. — Rapinagem do Mestre-Cuca. E você não acha que este foi um bom preço a pagar por sua vida desgraçada? Além do mais, pense nisso como uma lição. Com o tempo, aprenderá a tomar conta do seu dinheiro. Presumo que seu advogado tenha cuidado disso até hoje, ou o seu contador.
Detectei uma ponta de zombaria em suas palavras, mas perguntei:
Como poderei reavê-lo?
Isso é problema seu. Não há advogados nem contadores por perto, então vai precisar se virar sozinho. Quando conseguir um dólar, cuide bem dele. Quem deixa seu dinheiro largado por aí, como você fez, merece perdê-lo. Além disso, você pecou. Não tem o direito de colocar a tentação no caminho de seus semelhantes. Você provocou o Mestre-Cuca e ele não resistiu. Pôs em risco a alma imortal dele. Falando nisso, acredita na alma imortal?
Ele ergueu as pálpebras suavemente ao fazer essa pergunta e tive a impressão de que suas profundezas se abriam perante mim e que eu podia ver a sua alma. Mas não passava de uma ilusão. Por mais que tenha parecido vasta, ninguém jamais entrou fundo na vastidão da alma de Wolf Larsen, ou mesmo a vislumbrou. Disso, tenho certeza. Era uma alma muito solitária, eu logo descobriria, e que jamais se revelava, embora às vezes ensaiasse fazê-lo.
Leio a imortalidade em seus olhos — respondi abrindo mão do “senhor”, a título de experiência, pois julguei que a intimidade da conversa o dispensava.
Ele não reparou.
Com isso, se entendi bem, você quer dizer que vê algo vivo, mas que não necessariamente viverá para sempre.
Leio mais que isso — enfatizei.
Então você está lendo a consciência. Está lendo a consciência que a vida tem de que está viva. Mas nada além disso, não uma vida infinita.
Como ele se expressava com clareza, e como expressava bem o que pensava! Estava me observando com curiosidade, mas voltou o olhar para o oceano de chumbo que se estendia a barlavento. A sombra invadiu seus olhos e os contornos de sua boca se comprimiram. Era visível que estava num estado de ânimo pessimista.
Para quê, então? — perguntou de repente, virando-se de novo para mim. — Se sou imortal… por quê?
Vacilei. Como eu podia expor meu idealismo a esse homem? Como podia verbalizar algo que eu sentia, algo que era como a melodia dos sonhos, algo que se fazia entender mas transcendia qualquer esforço de elocução?
No que então o senhor acredita? — perguntei de volta.
Acredito que a vida é uma confusão — ele respondeu de imediato. — É como um levedo, um fermento, uma coisa que se move e pode continuar se movendo por um minuto, uma hora, um ano ou cem anos, mas que no fim vai parar de se mover. Os grandes devoram os pequenos para que possam seguir se movendo, os fortes devoram os fracos para manter sua força. E quem tem sorte devora mais e se move por mais tempo. Isso é tudo. O que pensa disso?
Ele fez um gesto impaciente com o braço, abrangendo os marujos que trabalhavam em alguma coisa cheia de cordas no meio do navio.
Eles se movem, como se move a água-viva. Eles se movem para conseguir comer e continuar se movendo. Aí está. Existem em função da barriga, e a barriga existe em função deles. É um círculo. Você não chega a lugar algum. Nem você nem eles. No fim eles simplesmente param. Já não se movem. Estão mortos.
Eles sonham — interrompi. — Sonhos vívidos e radiantes sobre…
Comida — ele concluiu sentenciosamente.
E também sobre…
Comida. Sonham com um apetite maior e mais sorte para saciá-lo. Sua voz adquirira um tom severo. Não possuía qualquer traço de frivolidade.
Pois perceba, eles sonham com viagens bem-aventuradas que lhes trarão mais dinheiro, em alcançar o posto de imediato do navio, encontrar fortunas. Em suma, sonham estar na melhor posição para rapinar seus semelhantes, dormir a noite toda, ter boa comida e mandar alguma outra pessoa fazer o trabalho sujo. Você e eu somos iguais a eles. Não há diferença, fora o fato de termos comido mais e melhor. Eu os devoro neste exato momento, e você também. Mas no passado você comeu mais do que eu. E dormiu em camas mais macias, e vestiu roupas de qualidade, e fez excelentes refeições. Quem fez aquelas camas? E aquelas roupas? E aquelas refeições? Não foi você. Você nunca fez nada com o próprio suor. Vive de uma renda conquistada por seu pai. É como uma fragata25 dando um rasante nas aves mais estúpidas e roubando o peixe que elas pegaram. Está no mesmo time do bando que organizou o que eles chamam de governo, que domina todos os outros homens e devora a comida que outros homens buscaram e gostariam de poder comer. Você veste roupas quentinhas. Eles fizeram as roupas, mas ficam tremendo de frio, vestidos em trapos, e imploram um emprego a você, ao advogado e ao contador que cuida do seu dinheiro.
Mas isso não tem nada a ver com a questão — exclamei.
Tem tudo a ver. — Agora ele estava falando rápido e seus olhos brilhavam. — É uma mesquinharia, e é a vida. Que utilidade ou sentido pode haver numa mesquinharia eterna?
Qual o propósito? Para que serve? Você nunca preparou comida alguma, mas toda a comida que comeu ou desperdiçou poderia ter salvado a vida da legião de coitados que a preparou e não teve a chance de comer. A que propósito imortal você serviu? E eles? Pensemos no nosso caso, você e eu. Para que serve a sua propagada imortalidade a partir do momento em que a sua vida cruzou com a minha? Você gostaria de retornar ao continente, que é um lugar propício ao seu tipo de mesquinharia. Eu prefiro mantê-lo a bordo deste barco, onde a minha mesquinharia impera. E vou mantê-lo. Vou consertá-lo ou quebrá-lo. Pode ser que você morra hoje mesmo, essa semana, mês que vem. Eu poderia matá-lo agora mesmo com um murro, pois você não passa de um fracote miserável. Mas, se somos imortais, qual é o sentido disso? Ser mesquinho, como fomos nós dois a vida toda, não parece ser exatamente a melhor conduta para um imortal. Repito, qual seria o sentido disso? Por que mantive você aqui?
Porque você é mais forte — consegui balbuciar.
Mais forte por quê? — ele deu continuidade a suas perpétuas indagações. — Porque sou um pedacinho de fermento maior que você? Não compreende? Não compreende?
Mas isso é desolador — protestei.
Estou de acordo — ele respondeu. — Então por que nos movemos, já que a vida é movimento? Se não nos movêssemos e não fizéssemos parte do fermento, não haveria desolação. Mas, e aí está a questão, queremos viver e nos mover, embora não tenhamos razão nenhuma para isso, pois ocorre que é da natureza da vida viver e se mover, querer viver e se mover. Não fosse por isso, a vida estaria morta. Você sonha com a imortalidade por causa dessa vida que está dentro de você. A vida que está dentro de você está viva e quer seguir vivendo para sempre. Bah! Uma eternidade de mesquinharias!
Ele se virou abruptamente e começou a andar. Parou na entrada do tombadilho e me chamou.
Por sinal, qual foi mesmo a quantia que o Mestre-Cuca surrupiou? — ele perguntou.
Cento e oitenta e cinco dólares, senhor.
Ele assentiu com a cabeça. Um instante depois, quando comecei a descer a escada para pôr a mesa do jantar, pude escutá-lo xingando aos brados alguns dos marujos que trabalhavam no meio do convés.

Jack London, in O Lobo do Mar

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