Sou
devedor contumaz de Eduardo Lourenço desde 1991, precisamente há
dezassete anos. Trata-se de uma dívida um tanto singular porque,
sendo natural que ele, como lesado, não a tivesse esquecido, já é
menos habitual que eu, o lesante, ao contrário do que com frequência
sucede em casos semelhantes, nunca a tenha negado. Porém, se é
certo que jamais me fingi distraído da falta, há que dizer que ele
também não consentiu que eu me deixasse enganar pelos seus
silêncios tácticos, que de vez em quando interrompia para
perguntar: “Então essas fotografias?”. A minha resposta era
sempre a mesma: “Ó diabo, tenho tido muito trabalho, mas o pior de
tudo é que ainda não pude mandar fazer as cópias”. E ele, tão
invariável como eu: “As fotografias são seis, tu ficas com três
e dás-me as restantes”, “Isso nunca, era o que faltava, tens
direito a todas”, respondia eu, hipocritamente magnânimo. Ora, é
tempo de explicar que fotografias eram estas. Estávamos, ele e eu,
em Bruxelas, na Europália, e andávamos por ali como quaisquer
outros curiosos, de sala em sala, comentando as belezas e as riquezas
expostas, e connosco ia o Augusto Cabrita, de máquina em riste, à
procura do instantâneo imortal. Que pensou haver encontrado num
momento em que Eduardo Lourenço e eu nos havíamos detido de costas
para uma tapeçaria barroca sobre um tema desses históricos ou
míticos, não sei bem. “Aí”, ordenou Cabrita com aquele ar
feroz que têm os fotógrafos em situações de alto risco, como
imagino que eles as consideram. Ainda hoje estou sem saber que
diabinho me levou a não tomar a sério a solenidade do momento.
Comecei por compor a gravata do Eduardo, depois inventei que os
óculos dele não estavam bem ajustados e dediquei-me a pô-los no
seu sítio, de onde nunca haviam saído. Começámos a rir-nos como
dois garotos, ele e eu, enquanto o Augusto Cabrita aproveitava, com
sucessivos disparos, a ocasião que lhe tinha sido oferecida de
bandeja. Esta é a história das fotografias. Dias depois o Augusto
Cabrita, que morreria passados dois anos, mandou-me as imagens
tomadas, crendo, decerto, que elas ficariam em boas mãos. Boas eram,
ou não de todo más, mas, como já deixei explicado, pouco
diligentes.
Tempos
depois deu-me para escrever o romance Todos os nomes, o qual,
conforme pensei então e continuo a pensar hoje, não poderia ter
melhor apresentador que o Eduardo. Assim lho fiz saber, e ele, bom
rapaz, acedeu imediatamente. Chegou o dia, a sala maior do Hotel
Altis a rebentar pelas costuras, e do Eduardo Lourenço nem novas nem
mandadas. A preocupação respirava-se no ar carregado, algo deveria
ter sucedido. Além disso, como toda a gente sabe, o grande ensaísta
tem fama de despistado, podia ter-se equivocado de hotel. Tão
despistado, tão despistado que, quando finalmente apareceu,
anunciou, com a voz mais tranquila do mundo, que tinha perdido o
discurso. Ouviu-se um “Ah” geral de consternação, que eu, por
obra dos meus maus instintos, não acompanhei. Uma suspeita atroz me
havia assaltado o espírito, a de que o Eduardo Lourenço decidira
aproveitar a ocasião para se vingar do episódio das fotografias.
Enganado estava. Com papéis ou sem eles, o homem foi brilhante como
sempre. Pegava nas ideias, sopesava-as com o falso ar de quem estava
a pensar noutra coisa, a umas deixava-as de lado para um segundo
exame, a outras dispunha-as num tabuleiro invisível esperando que
elas próprias encontrassem as conexões que as potenciariam, entre
si e com alguma da segunda escolha, mais valiosa afinal do que havia
parecido. O resultado final, se a imagem é permitida, foi um bloco
de ouro puro.
A
minha dívida tinha aumentado, ultrapassara em tamanho o buraco de
ozono. E os anos foram passando. Até que, há sempre um até que
para nos pôr finalmente no bom caminho, como se o tempo, depois de
muito esperar, tivesse perdido a paciência. Neste caso foi a leitura
recente de um ensaio de Eduardo Lourenço, “Do imemorial ou a dança
do tempo”, na revista Portuguese Literary & Cultural Studies
7 da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Resumir essa
extraordinária peça seria ofensivo. Limitar-me-ei a deixar
constância de que as famosas cópias já se encontram finalmente em
meu poder e de que o Eduardo em poucos dias as receberá. Com a maior
amizade e a mais profunda admiração.
José Saramago, in O caderno
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