terça-feira, 12 de julho de 2022

A Vida no Céu | Terceiro capítulo


(Noite: o vazio que há entre as estrelas. A solidão pode ser também uma representação da noite – digamos, o vazio que há entre as pessoas.)

Lamentei não ter comigo um cordel, para ir desenrolando enquanto avançávamos, poucos passos atrás de Sibongile. A sangoma falava, falava, falava sem cessar, e assim nos ia conduzindo – ou desconduzindo – através daquele revolto labirinto de sombras. Não a víamos. Seguíamos a voz dela. Bastaria calar-se para que nos perdêssemos.
Uma manhã despertamos, e os balões, as redes estavam cheios de gafanhotos. Eu sonhava com a terra. Sonhava com os gafanhotos caindo sobre o verde das árvores. Abri os olhos e ali estavam eles. Aos milhares. Agora digam-me: de onde vieram? Não há gafanhotos no céu. Não há gafanhotos no mar. Os gafanhotos só podem ter sobrevivido se ainda existir em algum lado uma ilha coberta de vegetação.
Calou-se e nós paramos, já perdidos. Então ouviu-se um assobio, seguido de um alegre piar de ave, e logo uma luz trêmula emergiu das trevas.
Tenho dois peregrinos para O Voador – disse Sibongile. A luz deteve-se:
Podem pagar a consulta?
Não. Estes não pagam. São meus convidados.
Seguimos a luz durante uns dez minutos. Percebia-se que havia gente à volta. De vez em quando alguém tossia. Finalmente, desembocamos numa sala larga, com uma janela redonda, através da qual entravam estrelas. A luz da Lua iluminava uma cama de ferro, colocada no centro do quarto. Vi um homem deitado de costas, sobre duas enormes almofadas. O braço esquerdo, engessado, estava preso ao peito por uma gaze. Avancei dois passos e reconheci-o:
Pai!
Um sujeito alto, forte, agarrou-me o ombro:
Não pode aproximar-se mais.
Sacudi-o:
É o meu pai!
O homem soltou uma gargalhada:
Claro. E eu sou a tua mãe.
É realmente o meu pai.
Sibongile interveio:
Calma, Boniface. Deixe o rapaz falar com O Voador.
O homem assentiu com um suspiro. Soltou-me o ombro. Aproximei-me da cama. O meu pai ergueu para mim uns olhos perplexos:
Quem és tu?
Estremeci:
Sou o Carlos, pai! Não me reconheces?
Boniface voltou a agarrar-me. Puxou-me para trás:
Basta! Estás a perturbar O Voador.
Dois outros homens saltaram das sombras e imobilizaram-me.
Levem-nos daqui! – ordenou Boniface, antes de voltar a sua ira contra Sibongile. – E tu, bruxa velha! Tem mais cuidado com quem andas. Um destes dias atiro-te ao mar.
Nem sei muito bem como saímos dali. Lembro-me, horas mais tarde, de estar sentado a uma mesa de canto, num café vazio, enquanto o céu clareava. Aimée procurava acalmar-me:
O importante é que encontraste o teu pai. Vamos pensar no que fazer a seguir.
Sibongile quis saber se eu possuía fotografias do meu pai. Mostrei-lhe algumas imagens que guardo no telefone. Ele e a minha mãe, ainda na terra, abraçados, enquanto, ao fundo, o sol se afunda no mar. Ele comigo ao colo, poucos minutos depois de eu nascer. Eu e ele praticando esgrima, sobre um cabo, perante uma assistência entusiasta. A curandeira assobiou, espantada:
É O Voador!
Sim! Porque haveria eu de mentir?
Não sei. Temos quase sempre mais razões para mentir do que para dizer a verdade. Sempre foi assim. Como é que ele veio aqui parar? Voando numa asa-delta, como dizem?
Se definirmos voar como uma rápida deslocação através do céu, inclusive na vertical, então podemos dizer que sim, que ele chegou até aqui voando. Veio voando desde Luanda, e só parou ao bater nas redes de proteção do Paris. Foi um voo Luanda-Paris – mas sem asa-delta.
Sim, lembro-me, ele foi encontrado nas redes que protegem as placas de energia solar. Pode ser. Volta e meia cai alguma coisa nas redes. Detritos. Pedaços de satélites. Aves. Porque não uma pessoa? O teu pai deve ser um homem com muita sorte.
Receio que tenha esgotado a sorte toda. A sorte e a memória. Como o levo de volta a casa?
A curandeira suspirou:
Boniface transformou o teu pai num bom negócio.
Já percebi. Não será melhor ir à polícia?
O bandido criou uma complexa rede de informantes e de colaboradores, inclusive na polícia. Arriscamo-nos a que ele se livre do teu pai muito antes que a polícia o encontre. Por exemplo, atira-o ao mar.
Irritei-me:
Quem é, afinal, esse homem?
Um bandido, já te disse. Entrou no Paris ilegalmente. Nasceu em Miami, nos Estados Unidos. Começou a vender droga, nas ruas, muito novo. Enriqueceu. Na altura do Dilúvio não conseguiu que nenhum dos grandes dirigíveis o aceitasse. Então, como tinha muito dinheiro, mandou construir um balão enorme e, contudo, incrivelmente rápido, o Española Way, e fez-se ao céu. Durante alguns anos sobreviveu do saque às aldeias mais pobres.
Um balão-pirata?
O Española Way? Um dos piores. Uma lenda dos ares.
E depois?
Boniface tratava os seus próprios homens com extrema brutalidade. Uma noite os piratas amotinaram-se e tomaram o balão. Boniface conseguiu escapar numa lancha rápida e alcançar o Paris, de noite. Trazia diamantes. Subornou os polícias de fronteira e entrou. Desde então tem feito um pouco de tudo. Montou um casino clandestino, Le Fantôme, frequentado por ricos e pobres, e, por isso mesmo, tolerado pelas autoridades.
Bebi a minha cerveja. A cerveja fabricada no Paris goza de justa fama no céu inteiro. Aimée, que se mantivera em silêncio durante quase todo o tempo, voltou-se para Sibongile:
Aquilo que a senhora disse há pouco, aquilo dos gafanhotos...
Sim?!
O que queria dizer? Acredita realmente que ainda exista alguma ilha coberta de vegetação?
Tenho a certeza absoluta. Nem hei de morrer sem sentir de novo o cheiro da terra molhada e do capim verde. O cheiro das goiabas...
Admitindo que existam. Ninguém, nenhuma pessoa, consegue resistir a temperaturas tão elevadas, durante um largo período de tempo. Não é possível viver nessas ilhas.
Não sei. Pode ser que em algumas dessas ilhas a temperatura não seja tão elevada…
Você disse que estava a sonhar com gafanhotos quando os gafanhotos apareceram. Talvez ainda fosse um sonho.
Se aquilo foi um sonho, então não terminou. A má notícia é que vocês estão neste instante a ser sonhados por mim.
Que horror! – suspirou Aimée. – Prefiro acreditar nos gafanhotos.
Não são apenas os gafanhotos que me fazem acreditar na existência da Ilha Verde. Há alguns anos, antes de me instalar aqui, no Paris, conheci um homem que esteve lá.
Voltou-se para mim:
Pedi-te que me levasses a um lugar, lembras-te?
Lembro.
Quero que me ajudes a encontrar a aldeia desse homem.
E a senhora ajuda-me a resgatar o meu pai?
Sibongile abriu os braços num largo gesto de desânimo – ou de rendição:
E tenho alternativa?! Já percebi que és mais teimoso do que um jumento. O tipo de pessoa que não descansa enquanto não consegue o que pretende. Sim, ajudo-te, embora esteja a arriscar a própria pele.
Boa! Estamos todos juntos – disse Aimée. – E eu tenho um plano.

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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