(Noite:
o vazio que há entre as estrelas. A solidão pode ser também uma
representação da noite – digamos, o vazio que há entre as
pessoas.)
Lamentei
não ter comigo um cordel, para ir desenrolando enquanto avançávamos,
poucos passos atrás de Sibongile. A sangoma falava, falava, falava
sem cessar, e assim nos ia conduzindo – ou desconduzindo –
através daquele revolto labirinto de sombras. Não a víamos.
Seguíamos a voz dela. Bastaria calar-se para que nos perdêssemos.
– Uma
manhã despertamos, e os balões, as redes estavam cheios de
gafanhotos. Eu sonhava com a terra. Sonhava com os gafanhotos caindo
sobre o verde das árvores. Abri os olhos e ali estavam eles. Aos
milhares. Agora digam-me: de onde vieram? Não há gafanhotos no céu.
Não há gafanhotos no mar. Os gafanhotos só podem ter sobrevivido
se ainda existir em algum lado uma ilha coberta de vegetação.
Calou-se
e nós paramos, já perdidos. Então ouviu-se um assobio, seguido de
um alegre piar de ave, e logo uma luz trêmula emergiu das trevas.
– Tenho
dois peregrinos para O Voador – disse Sibongile. A luz
deteve-se:
– Podem
pagar a consulta?
– Não.
Estes não pagam. São meus convidados.
Seguimos
a luz durante uns dez minutos. Percebia-se que havia gente à volta.
De vez em quando alguém tossia. Finalmente, desembocamos numa sala
larga, com uma janela redonda, através da qual entravam estrelas. A
luz da Lua iluminava uma cama de ferro, colocada no centro do quarto.
Vi um homem deitado de costas, sobre duas enormes almofadas. O braço
esquerdo, engessado, estava preso ao peito por uma gaze. Avancei dois
passos e reconheci-o:
– Pai!
Um
sujeito alto, forte, agarrou-me o ombro:
– Não
pode aproximar-se mais.
Sacudi-o:
– É
o meu pai!
O
homem soltou uma gargalhada:
– Claro.
E eu sou a tua mãe.
– É
realmente o meu pai.
Sibongile
interveio:
– Calma,
Boniface. Deixe o rapaz falar com O Voador.
O
homem assentiu com um suspiro. Soltou-me o ombro. Aproximei-me da
cama. O meu pai ergueu para mim uns olhos perplexos:
– Quem
és tu?
Estremeci:
– Sou
o Carlos, pai! Não me reconheces?
Boniface
voltou a agarrar-me. Puxou-me para trás:
– Basta!
Estás a perturbar O Voador.
Dois
outros homens saltaram das sombras e imobilizaram-me.
– Levem-nos
daqui! – ordenou Boniface, antes de voltar a sua ira contra
Sibongile. – E tu, bruxa velha! Tem mais cuidado com quem andas. Um
destes dias atiro-te ao mar.
Nem
sei muito bem como saímos dali. Lembro-me, horas mais tarde, de
estar sentado a uma mesa de canto, num café vazio, enquanto o céu
clareava. Aimée procurava acalmar-me:
– O
importante é que encontraste o teu pai. Vamos pensar no que fazer a
seguir.
Sibongile
quis saber se eu possuía fotografias do meu pai. Mostrei-lhe algumas
imagens que guardo no telefone. Ele e a minha mãe, ainda na terra,
abraçados, enquanto, ao fundo, o sol se afunda no mar. Ele comigo ao
colo, poucos minutos depois de eu nascer. Eu e ele praticando
esgrima, sobre um cabo, perante uma assistência entusiasta. A
curandeira assobiou, espantada:
– É
O Voador!
– Sim!
Porque haveria eu de mentir?
– Não
sei. Temos quase sempre mais razões para mentir do que para dizer a
verdade. Sempre foi assim. Como é que ele veio aqui parar? Voando
numa asa-delta, como dizem?
– Se
definirmos voar como uma rápida deslocação através do céu,
inclusive na vertical, então podemos dizer que sim, que ele chegou
até aqui voando. Veio voando desde Luanda, e só parou ao bater nas
redes de proteção do Paris. Foi um voo Luanda-Paris – mas sem
asa-delta.
– Sim,
lembro-me, ele foi encontrado nas redes que protegem as placas de
energia solar. Pode ser. Volta e meia cai alguma coisa nas redes.
Detritos. Pedaços de satélites. Aves. Porque não uma pessoa? O teu
pai deve ser um homem com muita sorte.
– Receio
que tenha esgotado a sorte toda. A sorte e a memória. Como o levo de
volta a casa?
A
curandeira suspirou:
– Boniface
transformou o teu pai num bom negócio.
– Já
percebi. Não será melhor ir à polícia?
– O
bandido criou uma complexa rede de informantes e de colaboradores,
inclusive na polícia. Arriscamo-nos a que ele se livre do teu pai
muito antes que a polícia o encontre. Por exemplo, atira-o ao mar.
Irritei-me:
– Quem
é, afinal, esse homem?
– Um
bandido, já te disse. Entrou no Paris ilegalmente. Nasceu em Miami,
nos Estados Unidos. Começou a vender droga, nas ruas, muito novo.
Enriqueceu. Na altura do Dilúvio não conseguiu que nenhum dos
grandes dirigíveis o aceitasse. Então, como tinha muito dinheiro,
mandou construir um balão enorme e, contudo, incrivelmente rápido,
o Española Way, e fez-se ao céu. Durante alguns anos sobreviveu do
saque às aldeias mais pobres.
– Um
balão-pirata?
– O
Española Way? Um dos piores. Uma lenda dos ares.
– E
depois?
– Boniface
tratava os seus próprios homens com extrema brutalidade. Uma noite
os piratas amotinaram-se e tomaram o balão. Boniface conseguiu
escapar numa lancha rápida e alcançar o Paris, de noite. Trazia
diamantes. Subornou os polícias de fronteira e entrou. Desde então
tem feito um pouco de tudo. Montou um casino clandestino, Le Fantôme,
frequentado por ricos e pobres, e, por isso mesmo, tolerado pelas
autoridades.
Bebi
a minha cerveja. A cerveja fabricada no Paris goza de justa fama no
céu inteiro. Aimée, que se mantivera em silêncio durante quase
todo o tempo, voltou-se para Sibongile:
– Aquilo
que a senhora disse há pouco, aquilo dos gafanhotos...
– Sim?!
– O
que queria dizer? Acredita realmente que ainda exista alguma ilha
coberta de vegetação?
– Tenho
a certeza absoluta. Nem hei de morrer sem sentir de novo o cheiro da
terra molhada e do capim verde. O cheiro das goiabas...
– Admitindo
que existam. Ninguém, nenhuma pessoa, consegue resistir a
temperaturas tão elevadas, durante um largo período de tempo. Não
é possível viver nessas ilhas.
– Não
sei. Pode ser que em algumas dessas ilhas a temperatura não seja tão
elevada…
– Você
disse que estava a sonhar com gafanhotos quando os gafanhotos
apareceram. Talvez ainda fosse um sonho.
– Se
aquilo foi um sonho, então não terminou. A má notícia é que
vocês estão neste instante a ser sonhados por mim.
– Que
horror! – suspirou Aimée. – Prefiro acreditar nos gafanhotos.
– Não
são apenas os gafanhotos que me fazem acreditar na existência da
Ilha Verde. Há alguns anos, antes de me instalar aqui, no Paris,
conheci um homem que esteve lá.
Voltou-se
para mim:
– Pedi-te
que me levasses a um lugar, lembras-te?
– Lembro.
Quero
que me ajudes a encontrar a aldeia desse homem.
– E
a senhora ajuda-me a resgatar o meu pai?
Sibongile
abriu os braços num largo gesto de desânimo – ou de rendição:
– E
tenho alternativa?! Já percebi que és mais teimoso do que um
jumento. O tipo de pessoa que não descansa enquanto não consegue o
que pretende. Sim, ajudo-te, embora esteja a arriscar a própria
pele.
– Boa!
Estamos todos juntos – disse Aimée. – E eu tenho um plano.
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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