Apesar
de tudo o que disse, o tio Vanya voltou muitas vezes para repetir os
seus avisos, de preferência em noites frias ou chuvosas. O nosso
progresso gradual no controle do fogo em nada apaziguava os seus
receios. Bufava incrédulo quando lhe mostrávamos como o apagar,
como poia ser dividido, tal como se fosse uma enguia, em vários
outros fogos, e como podia ser transportado na ponta de um ramo seco.
Apesar de todas estas experiências serem cuidadosamente vigiadas
pelo Pai, eram condenadas pelo tio Vanya: ele considerava que a
Botânica e a Zoologia eram as únicas disciplinas de uma verdadeira
educação científica, e opunha-se terminantemente a juntar a Física
ao currículo.
Não
obstante, todos nós aprendemos com rapidez a lidar com o fogo. A
princípio, as mulheres eram um pouco lentas a afastarem-se dele,
queimando-se com frequência, e durante algum tempo parecia que a
geração mais nova não iria sobreviver. Mas o Pai achava que toda a
gente devia cometer os seus próprios erros. “Uma criança queimada
respeita o fogo”, dizia ele, confiante, quando outro bebé começava
aos berros depois de tentar agarrar um daqueles escaravelhos
incandescentes. E tinha toda a razão.
Estes
eram, afinal, acidentes insignificantes em comparação com o
progresso obtido. O nosso nível de vida subiu de forma quase
irreconhecível. Antes de termos o fogo, a nossa existência era
muito precária. Havíamos descido das árvores e possuíamos o
machado de pedra, mas não tínhamos muito mais e todos os dentes,
garras, e cornos da natureza pareciam estar contra nós. Embora nos
considerássemos animais de terra firme, tínhamos que trepar
rapidamente a uma árvore se nos víamos envolvidos em qualquer
espécie de sarilho. A nossa alimentação ainda dependia em grande
parte de bagas, raízes, e frutos secos, e ficávamos satisfeitos com
algumas lagartas e larvas gordas como suplemento proteico. Sofríamos
de uma escassez crônica de alimentos energéticos embora
necessitássemos deles desesperadamente para sustentar o
desenvolvimento do nosso físico. Uma razão importante para
abandonar a floresta era conseguirmos mais carne para a nossa dieta.
Havia muita carne nas planícies, o problema era que toda ela estava
em cima de quatro patas. As grandes pastagens estavam cheias de caça:
grandes manadas de bisontes, búfalos, impalas, orix, várias
espécies de antílopes, gazelas, zebras, cavalos, para só mencionar
alguns dos que gostaríamos de comer ao jantar. Mas perseguir carne
de quatro patas, quando ainda se está a tentar andar sobre duas, é
um jogo absurdo, e nós éramos forçados a tentar levantarmo-nos
para poder ver acima da erva da savana. Mesmo se apanhássemos um
grande ungulado, que podíamos fazer com ele? Dar-nos-ia um coice.
Por
vezes conseguíamos perseguir e derrubar um animal coxo, mas depois
tínhamos de enfrentar os seus cornos e era necessária uma horda de
homens-macaco para o apedrejar até à morte. Com uma horda pode-se
cercar e abater a caça; mas para manter uma horda reunida é preciso
um grande e regular fornecimento de alimentos. É o mais antigo dos
círculos viciosos em economia: para conseguir qualquer tipo de
captura regular é preciso uma equipa de caçadores, mas, para manter
uma equipa de caçadores, é necessário assegurar uma captura
regular. De outro modo, as refeições são tão irregulares que, na
melhor das hipóteses, só é possível alimentar um grupo de três
ou quatro elementos.
Por
conseguinte, começamos de baixo e tivemos de percorrer a custo um
longo caminho. Em primeiro lugar foram coelhos, hiraces e pequenos
roedores, os quais podem ser mortos com uma pedrada; depois
perseguimos tartarugas e cágados, lagartos e serpentes, animais que
podem ser capturados se estudarmos assiduamente os seus hábitos.
Depois de morta, a pequena caça pode facilmente ser cortada com
facas de sílex, e embora a melhor parte da carne não seja fácil de
rasgar e comer sem os grandes caninos dos carnívoros, pode ser
cortada e triturada com pedras antes de mastigada pelos molares,
inicialmente concebidos para uma dieta frutívora. Geralmente, as
partes macias não são as mais agradáveis, mas indivíduos
esfomeados pelo esforço de andarem na vertical sobre as patas
traseiras durante todo dia, e que querem alimentar os seus cérebros,
não se podem dar ao luxo de ser muito exigentes. Disputávamos as
partes mais macias e dávamos muito valor a animais de consistência
esponjosa, pois aliviavam o esforço imposto aos dentes e ao
estômago.
Duvido
que haja muita gente que ainda se lembre das agonias que passamos com
as indigestões naqueles primeiros tempos, ou mesmo de quantos a elas
sucumbiram. Os humores eram permanentemente azedados por distúrbios
gástricos, e o esgar deprimido e sorumbático, mesmo feroz, desses
pioneiros sub-humanos tinha muito menos a ver com insociabilidade ou
selvajaria do que com o estado dos seus tecidos estomacais. A melhor
boa-disposição podia ser minada por uma colite crônica. Portanto,
é um engano absoluto pensar que, pelo facto de termos descido das
árvores recentemente e, por extensão, estarmos mais “perto da
natureza”, poderíamos comer de tudo, por mais intragável e
fibroso que fosse. Bem pelo contrário, alargar os nossos hábitos
alimentares de uma dieta puramente vegetariana (e, mesmo assim, quase
só frutívora) até chegar a uma omnívora, foi um processo difícil
e penoso, exigindo imensa paciência e persistência para descobrir
como manter no estômago aquelas coisas que não só nos repugnavam
como nos faziam sofrer. Só uma ambição sem limites, o desejo de
melhorar o lugar no seio da natureza, e uma impiedosa autodisciplina,
podem explicar que alguém aguente tal transição. Não nego que se
encontrassem acepipes inesperados, mas a vida não pode ser só
caracóis e moleja. Uma vez decidido sendo omnívoro, há que
aprender a comer de tudo e numa altura em que não se sabe de onde
nem quando virá a próxima refeição, há que comer tudo. Quando
crianças, fomos estritamente educados dentro destas regras, e uma
criança que se atrevesse a dizer: “Mas, mamãe, eu não gosto de
sapo!”, estava a pedir um par de estalos nas orelhas. “Come tudo.
É bom para ti”, foi o lema da minha infância e, claro, era
verdade. A natureza maravilhosamente adaptável conseguiu, de algum
modo, robustecer as entranhas dos nossos pequenos estômagos, de
maneira a digerirem o indigerível.
Deve
recordar-se que, quando nos tornamos comedores de carne, tínhamos de
mastigar, e consequentemente saborear, toda esta comida rica e
imprópria. Os carnívoros (os grandes felinos, os lobos, os cães e
os crocodilos) rasgavam simplesmente a sua comida em pedaços e
engoliam-na, sem se preocuparem se era espádua, bife da anca, fígado
ou tripas. Nós não podíamos engolir a comida sem mastigar.
“Mastiga cem vezes antes de engolir”, outra máxima da minha
infância, era baseada na certeza de que ignorá-la resultaria numa
violenta dor de barriga. Por muito horrível que fosse o naco de
carne, naqueles tempos primitivos, tinha de ser bem explorado pela
boca e pelo paladar. A fome era o nosso único tempero, mas disso
tínhamos com fartura.
Daí
resultava a enorme inveja pelos banquetes de carne que os leões e os
tigres dentes-de-sabre abatiam tão descuidadamente e comiam com
tanto desperdício, deixando por vezes três quartos de uma carcaça
para os chacais e abutres. A nossa maior preocupação era, portanto,
estarmos presentes, sempre que possível, quando o leão atacava e,
depois de ele ter retirado a sua parte, levarmos o resto. Com os
nossos machados, as nossas pedradas certeiras e as nossas lanças
afiadas, estávamos, no mínimo, ao nível dos chacais e dos abutres,
embora muitas vezes tivéssemos de lutar duramente. As nossas
melhores refeições deviam-se à prática de observar os abutres e
persegui-los até ao lugar certo, com a desvantagem de sendo
necrófagos ficarmos nas proximidades do assassino, ainda por cima
esfomeado. O que implicava o risco de nós próprios servirmos de
refeição.
E
era um grande risco. O chacal e a hiena podem correr e o abutre voar,
mas o pobre macaco acabado de descer das árvores tem que andar com
cautela nas planícies. Muitos de nós não se interessavam por esta
vida perigosa e limitavam-se à pequena caça, a maior parte das
vezes sórdida, e à pouco estimulante e provinciana sociedade que
aquela podia sustentar. Os indivíduos melhor alimentados, maiores e
mais empreendedores, eram sem dúvida aqueles que seguiam os grandes
felinos — leão, tigre dentes-de-sabre, chita, lince, e o resto da
tribo — e jantavam quando eles abandonavam a mesa. Era um trabalho
perigoso, mas aqueles que preferiam os seus benefícios afirmavam
que, de qualquer maneira, os grandes felinos haveriam sempre de comer
carne de primata, nem que fosse para variar a dieta. Sendo assim,
manter-se próximo deles, não aumentava substancialmente o risco de
se ser comido, com a vantagem de se aprenderem muitas coisas úteis
acerca dos seus hábitos, o que permitia mais facilmente as ações
evasivas em caso de necessidade. E então, quando se tinha mesmo de
fugir, estava-se bem alimentado e bem treinado. O principal era saber
quando o leão estava com fome ou não estava. A observação deste
pequeno pormenor reduzia as baixas a metade. Já ouvi objetar que
caçar com o leão foi o que lhe deu o gosto por nós, mas aqueles
primeiros caçadores negavam com veemência tal sugestão, e reagiam
também à acusação de que eram meros parasitas dos carnívoros
superiores. Tem de aceitar-se que, afinal, adquiriram profundos
conhecimentos sobre os predadores, o que foi de permanente utilidade
para a humanidade.
Embora
conhecendo alguma coisa dos carnívoros, não éramos adversários
para eles. Não nos atrevíamos a enfrentá-los. Eles eram os
senhores da criação e a sua vontade era lei. Mantinham reduzido o
nosso número e não podíamos fazer grande coisa contra isso, a não
ser voltar para as árvores e desistir de tudo, como se de uma tarefa
fracassada se tratasse. Mas, como o Pai estava convencido que nos
encontrávamos no bom caminho, não se punha essa questão, exceto
para pessoas como o tio Vanya. O Pai estava sendo plenamente
confiante de que aconteceria algo que mudaria o nosso destino.
Tínhamos depositado a nossa confiança na inteligência, num grande
cérebro e num grande crânio que o continha, e era preciso acreditar
nisso para encontrar uma saída. Entretanto, era necessário ter um
par de pernas tão bom quanto possível.
— Não
há nenhuma razão neste mundo — ouvi muitas vezes o Pai dizer —,
para que um homem-macaco não seja capaz de correr cem metros em dez
segundos, pular por cima de uma moita de espinhos de dois metros ou,
usando uma lança, saltar outra de quatro metros e meio. Um avanço
razoável e bíceps para saltar de ramo em ramo, deveria ser
suficiente para o livrar de apuros noventa vezes em cada cem. Ele
próprio já tinha dado provas de o poder fazer.
Tudo
isto era muito bonito, mas não resolvia o problema principal nem
remediava a série de pequenos inconvenientes que são inevitáveis
quando a tribo dos felinos é a classe dominante. Um deles era sem
dúvida o alojamento. Toda mulher-macaco ambiciona um lugar decente
onde criar a família, um verdadeiro lar, confortável, quente e,
acima de tudo, seco. Ninguém negará, creio eu, que basicamente isto
significa uma caverna. Nada mais resolve, de facto, o problema do
prolongamento da infância, da continuação estável do processo
educacional a seguir ao nível primário, que é a característica
mais marcante da nossa espécie. Lá no alto, nos ramos de uma
árvore, está-se comparativamente mais seguro, mas dorme-se
encavalitado num ramo, meio suspenso, e todos que já o fizeram e
poucos de nós, surpreendidos pela necessidade, mesmo nestes tempos
esclarecidos, o não fizeram — sabem como é extremamente
desconfortável. Por vezes, mesmo os chimpanzés chegam a cair quando
têm pesadelos — aquela horrível sensação de queda que, ao
acordar, se torna afinal verdadeira. Para uma mulher é ainda pior
porque tem de segurar uma ou mais crianças ao mesmo tempo, o que se
torna cada vez mais difícil à medida que deixa de lhe crescer pelo
no peito e as crianças vão perdendo as suas reações hereditárias
de preensão cada vez mais cedo.
Claro
que se pode construir um ninho no chão. O instinto de nidificar é
muito comum, e mesmo que não fosse podia aprender-se com os
pássaros. Pode-se entretecer um pequeno e confortável ninho em
poucas horas com qualquer material apropriado, como o bambu ou folhas
de palmeira, e uma residência de ramos bastante imponente pode ser
construída numa semana se se pretender prolongar a estadia. Num
ninho destes é possível dormir estendido, mas não aguenta uma
chuvada forte, nem afasta sequer um pequeno leopardo. Por mais que se
disfarce cuidadosamente com folhas, por mais que se esconda nos
arbustos, tende-se a apanhar reumatismo e a perder o bebé.
Toda
mulher-macaco anseia por uma caverna, mesmo uma caverna pequenina,
com um teto por cima da cabeça, rocha sólida nas suas costas e uma
abertura estreita onde possa resistir e defender as suas crias com
alguma possibilidade de êxito. Pode então barrar a entrada com uma
árvore derrubada e pode até ter, no interior, um nicho alto onde
possa esconder o bebé ou utilizar como despensa. Mas, claro que os
animais conhecem isto tão bem como nós, tanto os ursos como os
leões ou os tigres dentes-de-sabre, e não há cavernas que cheguem
para todos. São poucas, apesar de tudo, as que não poderiam ser
ocupadas por várias famílias desalojadas de qualquer espécie. Mas
ninguém as partilha, talvez com exceção para as cobras.
Descobrimos que se um dos grandes felinos ocupava uma caverna, éramos
por regra obrigados a deixá-lo ficar com ela e, se ela nos pertencia
e ele a queria, tínhamos por regra de fazer as malas e partir. Mas
isto nunca impediu as mulheres de se queixarem.
De
modo nenhum. Queixavam-se e voltavam a queixar-se sobre o assunto.
Metade das suas conversas versava o tema das cavernas: as adoráveis
cavernas que tinham tido... até os seus machos permitirem que um
bruto de um urso qualquer os expulsasse de lá; as cavernas
maravilhosas na região mais próxima que poderiam ser ocupadas se
tivessem em consideração os pontos de vista femininos, afugentando
para outra zona um pequeno grupo de leões (onde, aliás, havia
muitas mais cavernas); cavernas ótimas que podiam ser encontradas,
sem nenhum leão a ocupá-las, se apenas se procurasse um pouco, em
vez de arranjar desculpas acerca da necessidade de passar todo o dia
a lascar pedra; e a inutilidade da mísera caverna que atualmente
tinham e que nem sequer podia ser considerada como tal, antes um mero
refúgio rochoso, um pedacinho de rocha com uma pequena saliência
interior onde a chuva entrava empurrada pelo vento, e... ouçam a
horrível tosse do bebé.
É
verdade que, à noite, estávamos frequentemente tão molhados e com
frio como esfomeados, e também assustados, quando a escuridão era
invadida pelo rugir do leão levantando a caça, ou pelos latidos das
matilhas de cães farejando-a. Podia-se ouvir o inimigo aproximar-se
cada vez mais enquanto nos agachávamos contra o mísero pedaço de
rocha — pelo qual começaria, inexplicavelmente e sempre, a correr
um rio de água gelada —, as mulheres segurando as crianças, os
machos empunhando os seus machados de pedra ou as suas lanças, e até
mesmo as crianças segurando pedras para arremessar. Os caçadores
aproximavam-se mais e mais, e ouvia-se o longo grito de algum veado
abatido, pelo que a nossa vez ainda não chegara. Uma hora ou duas de
um sono intermitente e a caçada recomeçava. Olhos cintilantes
observavam a pequena horda desde a linha negra da selva, brilhando
por um instante e passando adiante ou aproximando-se da pobre e fraca
fila de paus afiados que defendiam a nossa toca e nos dava mais
alguns segundos para atirar as pedras ou trespassar com as lanças.
Depois, como um grande projétil, abatia-se sobre nós o enorme
corpo, olhos em brasa, mandíbulas entreabertas, o rosnado aumentando
num crescendo de triunfo. Erguíamo-nos com o nosso grito de desafio
e depois tudo era confuso: paus volteando no ar, pedras voando,
mandíbulas abocanhando e garras afiadas irrompendo e rasgando coxas
nuas e barrigas expostas. Depois o súbito atacante desaparecia
deixando-nos maltratados e a sangrar... e um dos mais fracos teria
desaparecido.
Que
desilusão para a nossa crença na inteligência contra o puro
músculo e as garras retrateis! Algumas vezes saíamos vencedores
mesmo contra um ataque frontal. Quando estávamos abrigados numa
saliência situada mesmo fora de alcance (e que era proporcionalmente
desconfortável) e descarregávamos o nosso vocabulário de insultos
no indignado focinho do agressor. Ou quando uma pedrada certeira
obrigava o gigantesco atacante a afastar-se com uma enorme dor de
cabeça. Lembro-me de uma vez que matamos, e prontamente devoramos,
um enorme tigre dentes-de-sabre, que tinha perdido os sabres com
outra vítima e pensava que nós seriamos comida mais fácil. Mas as
minhas recordações mais fortes são das longas noites de espera
numa posição exposta e mal fortificada, dos rugidos cada vez mais
fortes do inimigo, dos olhos cintilantes e da carga final.
Não
se podia fazer nada a não ser esperar e escutar, a boca seca, um
buraco no estômago, o coração aos pulos, os joelhos dobrados
preparados para entrarem em ação. Passamos longas noites de vigília
nas piores épocas, quando parecíamos perseguidos por hordas de
carnívoros que nos atacavam por turnos. Os homens iam desaparecendo,
mortos de imediato ou em consequência dos ferimentos, e rapazes
ainda pequenos ocupavam as primeiras filas. E eles continuavam a
atacar. E então, uma noite, demos também pela ausência do Pai.
Naquela manhã tinha observado a cena da carnificina deixada pela
batalha da noite anterior. A sua expressão estava cinzenta de
cansaço e sulcada de tristeza. Depois voltou-se e, abrindo caminho,
embrenhou-se na floresta dizendo apenas:
“Voltarei
esta noite. Tenho que fazer uma coisa importante”. A Mãe suspirou
e continuou a ligar, com folhas e uma das peles de cobra que guardava
para tais emergências, um rasgão horrível no ombro do meu irmão.
Naquela noite tinha perdido Pepita, a minha irmã mais nova. Mas
quando escureceu de novo, o Pai ainda não tinha voltado. Todos os
dias, ao anoitecer, costumava supervisionar a reconstrução e o
reforço da paliçada, insistir com todos para que comêssemos algo,
nem que fossem apenas raízes e bagas, verificar os machados e afiar
as lanças. Sabíamos o que significava a sua ausência — um
encontro com um mamute, um pé descuidado em cima de um crocodilo —
e, entristecidos, preparamo-nos para fazer o que sempre nos havia
ensinado. Por fim, uma lua em forma de foice emergiu entre as
estrelas e soubemos que ia ser outra daquelas terríveis noites.
Eles
chegaram e olharam-nos ferozmente com os seus olhos incandescentes.
Descreveram um círculo à nossa volta e continuaram, disseram à lua
que tinham fome e precisavam comer, e foram caçar e de novo voltaram
para nós. Então, vi aproximar-se de muito longe uma besta
desconhecida só com um olho. Ainda meio adormecido, vi-a, dentro da
minha cabeça, como um enorme lagarto com um vulcão a arder na
testa, enquanto se dirigia implacavelmente na nossa direção, Um
imenso leviatã com armadura que nos engoliria da forma mais
amistosa, pondo fim àquela insuportável situação. E caminhava ao
nosso encontro, esmagando criaturas mais pequenas, cada vez mais
perto, maior e mais brilhante, determinado a apanhar-nos antes que os
leões e os leopardos escolhessem os melhores petiscos ou os lobos se
precipitassem, vorazes, sobre nós. E exatamente quando todos os
dentes da selva pareciam convergir para a nossa paliçada, de súbito
a estranha besta saltou, pequena, ágil, castanha e bípede, para o
meio de nós e rasgou a escuridão da noite com uma brecha vermelha.
Era o Pai, de mão levantada bem ao alto. E, na sua mão, cativo num
pau, cintilando e fumegando ameaçador, afastando a selva muito para
além do salto de um leão, estava o fogo.
Na
manhã do dia seguinte o Pai conduziu-nos, numa pequena e enlameada
procissão, daquele lugar ensanguentado para a melhor caverna da
região. Tinha um belo pórtico rematado por um arco, cuja largura
rondaria os quatro metros e meio e a altura os seis, protegido por
uma saliência rochosa, graciosamente erodida, de onde tombavam
raminhos de buganvília formando uma cortina. Em frente, uma
plataforma rochosa suave e polida, de agradável aspecto solarengo
servia ao mesmo tempo de soleira e varanda; era flanqueada por uma
alameda de cedros por onde corria um constante abastecimento de água
fresca, boa para beber, tomar banho e despejar detritos. No interior,
a caverna era espaçosa: a sala central tinha um comprimento superior
a dez metros e meio e uma largura pouco menor com um teto abobadado.
Para ambos os lados abriam-se diversas cavernas interiores e alcovas,
enquanto ao fundo um túnel estreito conduzia até às entranhas das
colinas. Os meus pais inspecionavam estas comodidades modernas com a
maior satisfação.
— Pelo
menos as pequenas terão um pouco de privacidade, — disse a Mãe.
— Cavernas
interiores, — disse o Pai, espreitando para dentro do túnel. —
Boas perspectivas para desenvolvimento. Morcegos, claro, mas depressa
os eliminaremos. Malcheirosos, mas muito nutritivos. Um quarto
privativo interior, uma, num..., uma adega, qualquer dia, quem sabe?
— E
bastante espaço em frente para o depósito de lixo — disse a Mãe.
— Sim,
minha querida, — concordou o Pai. — Julgo que ficaremos muito bem
instalados aqui.
A
caverna fora durante muito tempo o lar de uma grande família de
ursos que nos fitaram estupefatos quando nos dirigimos a eles para os
expulsar. Mal podiam acreditar no que viam. Deve ter-lhes parecido
que o jantar estava sendo servido. Então, de repente, o Pai estava a
atirar tições incandescentes para o meio deles. Rugindo de fúria e
espanto, saíram de roldão da caverna, enchendo o ar com cheiro de
pelo chamuscado. O seu chefe, que conhecíamos bem como o maior
brigão das redondezas, carregou selvaticamente sobre nós, mas logo
descobriu que não éramos presa fácil quando nos colocamos em
formação para enfrentar a sua carga, machado numa mão e tição
flamejante na outra. O fumo erguia-se em grandes rolos ameaçadores
da nossa linha de batalha e o senhor dos ursos estacou subitamente.
Os seus seguidores fitaram-no perplexos ao verem o seu campeão
hesitar e rosnar em vez de nos atacar. Outro míssil flamejante saiu
disparado da nossa pequena falange, deixando atrás de si um rasto
curvilíneo de fumo, acertando-lhe em cheio entre os olhos, e
incendiando por momentos as suas sobrancelhas espessas. Isto arrumou
o assunto de vez. Dando patadas no focinho, enquanto lágrimas de dor
e humilhação corriam pelo seu nariz abaixo, o senhor dos ursos
bateu em retirada seguido pelo resto do seu grupo.
— Vencemos!
— foi o nosso grito, transbordante de alegria mas ainda incrédulo.
— Vencemos.
— Claro
que vencemos, — disse o Pai. — E aprendam que a Natureza não
está necessariamente do lado dos grandes batalhões. A Natureza está
do lado da espécie que possui vantagem tecnológica sobre as outras.
No momento, somos nós quem detém essa vantagem. — Fitou-nos
fixamente, e havia um aviso no seu olhar. — Eu disse “no
momento”. Não deixem que uma simples vitória vos suba à cabeça.
Ainda temos uma longa caminhada pela frente, — uma longa caminhada.
Mas, por enquanto, tomemos posse efetiva desta sedutora residência.
Assim,
mudamo-nos para o nosso novo lar e constatamos que era uma melhoria
substancial em relação a todos os outros que ocupáramos antes. Os
ursos voltaram várias vezes, sobretudo quando pensavam que o Pai
tinha saído para caçar, mas encontraram sempre uma fogueira
luminosa e acolhedora ardendo em frente da caverna e mudaram sempre
de ideia quanto a atacar-nos. Os leões e os outros felinos também
vieram espreitar mas, depois de examinarem o fogo à distância,
tentavam fingir que de qualquer modo já tinham um lugar melhor e
partiam com toda a dignidade que conseguiam reunir, ao som das nossas
gargalhadas trocistas.
— Qualquer
dia — disse o Pai — pedirão que os deixemos sentar à volta
desta agradável e quente fogueira.
— E
nós responderemos “Põe-te a andar, vagabundo!” — disse o meu
irmão Oswald.
— Talvez
— respondeu o Pai pensativamente. — Ou podemos deixá-los... com
certas condições.
— Eu
gostaria de ter um gatinho só meu, esganiçou-se William, o meu
irmão mais novo.
— Não
enchas a cabeça das crianças com disparates, — disse a Mãe.
Roy Lewis, in Por que Almocei meu Pai
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