quinta-feira, 21 de abril de 2022

Por que almocei meu pai | 2

 


Apesar de tudo o que disse, o tio Vanya voltou muitas vezes para repetir os seus avisos, de preferência em noites frias ou chuvosas. O nosso progresso gradual no controle do fogo em nada apaziguava os seus receios. Bufava incrédulo quando lhe mostrávamos como o apagar, como poia ser dividido, tal como se fosse uma enguia, em vários outros fogos, e como podia ser transportado na ponta de um ramo seco. Apesar de todas estas experiências serem cuidadosamente vigiadas pelo Pai, eram condenadas pelo tio Vanya: ele considerava que a Botânica e a Zoologia eram as únicas disciplinas de uma verdadeira educação científica, e opunha-se terminantemente a juntar a Física ao currículo.
Não obstante, todos nós aprendemos com rapidez a lidar com o fogo. A princípio, as mulheres eram um pouco lentas a afastarem-se dele, queimando-se com frequência, e durante algum tempo parecia que a geração mais nova não iria sobreviver. Mas o Pai achava que toda a gente devia cometer os seus próprios erros. “Uma criança queimada respeita o fogo”, dizia ele, confiante, quando outro bebé começava aos berros depois de tentar agarrar um daqueles escaravelhos incandescentes. E tinha toda a razão.
Estes eram, afinal, acidentes insignificantes em comparação com o progresso obtido. O nosso nível de vida subiu de forma quase irreconhecível. Antes de termos o fogo, a nossa existência era muito precária. Havíamos descido das árvores e possuíamos o machado de pedra, mas não tínhamos muito mais e todos os dentes, garras, e cornos da natureza pareciam estar contra nós. Embora nos considerássemos animais de terra firme, tínhamos que trepar rapidamente a uma árvore se nos víamos envolvidos em qualquer espécie de sarilho. A nossa alimentação ainda dependia em grande parte de bagas, raízes, e frutos secos, e ficávamos satisfeitos com algumas lagartas e larvas gordas como suplemento proteico. Sofríamos de uma escassez crônica de alimentos energéticos embora necessitássemos deles desesperadamente para sustentar o desenvolvimento do nosso físico. Uma razão importante para abandonar a floresta era conseguirmos mais carne para a nossa dieta. Havia muita carne nas planícies, o problema era que toda ela estava em cima de quatro patas. As grandes pastagens estavam cheias de caça: grandes manadas de bisontes, búfalos, impalas, orix, várias espécies de antílopes, gazelas, zebras, cavalos, para só mencionar alguns dos que gostaríamos de comer ao jantar. Mas perseguir carne de quatro patas, quando ainda se está a tentar andar sobre duas, é um jogo absurdo, e nós éramos forçados a tentar levantarmo-nos para poder ver acima da erva da savana. Mesmo se apanhássemos um grande ungulado, que podíamos fazer com ele? Dar-nos-ia um coice.
Por vezes conseguíamos perseguir e derrubar um animal coxo, mas depois tínhamos de enfrentar os seus cornos e era necessária uma horda de homens-macaco para o apedrejar até à morte. Com uma horda pode-se cercar e abater a caça; mas para manter uma horda reunida é preciso um grande e regular fornecimento de alimentos. É o mais antigo dos círculos viciosos em economia: para conseguir qualquer tipo de captura regular é preciso uma equipa de caçadores, mas, para manter uma equipa de caçadores, é necessário assegurar uma captura regular. De outro modo, as refeições são tão irregulares que, na melhor das hipóteses, só é possível alimentar um grupo de três ou quatro elementos.
Por conseguinte, começamos de baixo e tivemos de percorrer a custo um longo caminho. Em primeiro lugar foram coelhos, hiraces e pequenos roedores, os quais podem ser mortos com uma pedrada; depois perseguimos tartarugas e cágados, lagartos e serpentes, animais que podem ser capturados se estudarmos assiduamente os seus hábitos. Depois de morta, a pequena caça pode facilmente ser cortada com facas de sílex, e embora a melhor parte da carne não seja fácil de rasgar e comer sem os grandes caninos dos carnívoros, pode ser cortada e triturada com pedras antes de mastigada pelos molares, inicialmente concebidos para uma dieta frutívora. Geralmente, as partes macias não são as mais agradáveis, mas indivíduos esfomeados pelo esforço de andarem na vertical sobre as patas traseiras durante todo dia, e que querem alimentar os seus cérebros, não se podem dar ao luxo de ser muito exigentes. Disputávamos as partes mais macias e dávamos muito valor a animais de consistência esponjosa, pois aliviavam o esforço imposto aos dentes e ao estômago.
Duvido que haja muita gente que ainda se lembre das agonias que passamos com as indigestões naqueles primeiros tempos, ou mesmo de quantos a elas sucumbiram. Os humores eram permanentemente azedados por distúrbios gástricos, e o esgar deprimido e sorumbático, mesmo feroz, desses pioneiros sub-humanos tinha muito menos a ver com insociabilidade ou selvajaria do que com o estado dos seus tecidos estomacais. A melhor boa-disposição podia ser minada por uma colite crônica. Portanto, é um engano absoluto pensar que, pelo facto de termos descido das árvores recentemente e, por extensão, estarmos mais “perto da natureza”, poderíamos comer de tudo, por mais intragável e fibroso que fosse. Bem pelo contrário, alargar os nossos hábitos alimentares de uma dieta puramente vegetariana (e, mesmo assim, quase só frutívora) até chegar a uma omnívora, foi um processo difícil e penoso, exigindo imensa paciência e persistência para descobrir como manter no estômago aquelas coisas que não só nos repugnavam como nos faziam sofrer. Só uma ambição sem limites, o desejo de melhorar o lugar no seio da natureza, e uma impiedosa autodisciplina, podem explicar que alguém aguente tal transição. Não nego que se encontrassem acepipes inesperados, mas a vida não pode ser só caracóis e moleja. Uma vez decidido sendo omnívoro, há que aprender a comer de tudo e numa altura em que não se sabe de onde nem quando virá a próxima refeição, há que comer tudo. Quando crianças, fomos estritamente educados dentro destas regras, e uma criança que se atrevesse a dizer: “Mas, mamãe, eu não gosto de sapo!”, estava a pedir um par de estalos nas orelhas. “Come tudo. É bom para ti”, foi o lema da minha infância e, claro, era verdade. A natureza maravilhosamente adaptável conseguiu, de algum modo, robustecer as entranhas dos nossos pequenos estômagos, de maneira a digerirem o indigerível.
Deve recordar-se que, quando nos tornamos comedores de carne, tínhamos de mastigar, e consequentemente saborear, toda esta comida rica e imprópria. Os carnívoros (os grandes felinos, os lobos, os cães e os crocodilos) rasgavam simplesmente a sua comida em pedaços e engoliam-na, sem se preocuparem se era espádua, bife da anca, fígado ou tripas. Nós não podíamos engolir a comida sem mastigar. “Mastiga cem vezes antes de engolir”, outra máxima da minha infância, era baseada na certeza de que ignorá-la resultaria numa violenta dor de barriga. Por muito horrível que fosse o naco de carne, naqueles tempos primitivos, tinha de ser bem explorado pela boca e pelo paladar. A fome era o nosso único tempero, mas disso tínhamos com fartura.
Daí resultava a enorme inveja pelos banquetes de carne que os leões e os tigres dentes-de-sabre abatiam tão descuidadamente e comiam com tanto desperdício, deixando por vezes três quartos de uma carcaça para os chacais e abutres. A nossa maior preocupação era, portanto, estarmos presentes, sempre que possível, quando o leão atacava e, depois de ele ter retirado a sua parte, levarmos o resto. Com os nossos machados, as nossas pedradas certeiras e as nossas lanças afiadas, estávamos, no mínimo, ao nível dos chacais e dos abutres, embora muitas vezes tivéssemos de lutar duramente. As nossas melhores refeições deviam-se à prática de observar os abutres e persegui-los até ao lugar certo, com a desvantagem de sendo necrófagos ficarmos nas proximidades do assassino, ainda por cima esfomeado. O que implicava o risco de nós próprios servirmos de refeição.
E era um grande risco. O chacal e a hiena podem correr e o abutre voar, mas o pobre macaco acabado de descer das árvores tem que andar com cautela nas planícies. Muitos de nós não se interessavam por esta vida perigosa e limitavam-se à pequena caça, a maior parte das vezes sórdida, e à pouco estimulante e provinciana sociedade que aquela podia sustentar. Os indivíduos melhor alimentados, maiores e mais empreendedores, eram sem dúvida aqueles que seguiam os grandes felinos — leão, tigre dentes-de-sabre, chita, lince, e o resto da tribo — e jantavam quando eles abandonavam a mesa. Era um trabalho perigoso, mas aqueles que preferiam os seus benefícios afirmavam que, de qualquer maneira, os grandes felinos haveriam sempre de comer carne de primata, nem que fosse para variar a dieta. Sendo assim, manter-se próximo deles, não aumentava substancialmente o risco de se ser comido, com a vantagem de se aprenderem muitas coisas úteis acerca dos seus hábitos, o que permitia mais facilmente as ações evasivas em caso de necessidade. E então, quando se tinha mesmo de fugir, estava-se bem alimentado e bem treinado. O principal era saber quando o leão estava com fome ou não estava. A observação deste pequeno pormenor reduzia as baixas a metade. Já ouvi objetar que caçar com o leão foi o que lhe deu o gosto por nós, mas aqueles primeiros caçadores negavam com veemência tal sugestão, e reagiam também à acusação de que eram meros parasitas dos carnívoros superiores. Tem de aceitar-se que, afinal, adquiriram profundos conhecimentos sobre os predadores, o que foi de permanente utilidade para a humanidade.
Embora conhecendo alguma coisa dos carnívoros, não éramos adversários para eles. Não nos atrevíamos a enfrentá-los. Eles eram os senhores da criação e a sua vontade era lei. Mantinham reduzido o nosso número e não podíamos fazer grande coisa contra isso, a não ser voltar para as árvores e desistir de tudo, como se de uma tarefa fracassada se tratasse. Mas, como o Pai estava convencido que nos encontrávamos no bom caminho, não se punha essa questão, exceto para pessoas como o tio Vanya. O Pai estava sendo plenamente confiante de que aconteceria algo que mudaria o nosso destino. Tínhamos depositado a nossa confiança na inteligência, num grande cérebro e num grande crânio que o continha, e era preciso acreditar nisso para encontrar uma saída. Entretanto, era necessário ter um par de pernas tão bom quanto possível.
Não há nenhuma razão neste mundo — ouvi muitas vezes o Pai dizer —, para que um homem-macaco não seja capaz de correr cem metros em dez segundos, pular por cima de uma moita de espinhos de dois metros ou, usando uma lança, saltar outra de quatro metros e meio. Um avanço razoável e bíceps para saltar de ramo em ramo, deveria ser suficiente para o livrar de apuros noventa vezes em cada cem. Ele próprio já tinha dado provas de o poder fazer.
Tudo isto era muito bonito, mas não resolvia o problema principal nem remediava a série de pequenos inconvenientes que são inevitáveis quando a tribo dos felinos é a classe dominante. Um deles era sem dúvida o alojamento. Toda mulher-macaco ambiciona um lugar decente onde criar a família, um verdadeiro lar, confortável, quente e, acima de tudo, seco. Ninguém negará, creio eu, que basicamente isto significa uma caverna. Nada mais resolve, de facto, o problema do prolongamento da infância, da continuação estável do processo educacional a seguir ao nível primário, que é a característica mais marcante da nossa espécie. Lá no alto, nos ramos de uma árvore, está-se comparativamente mais seguro, mas dorme-se encavalitado num ramo, meio suspenso, e todos que já o fizeram e poucos de nós, surpreendidos pela necessidade, mesmo nestes tempos esclarecidos, o não fizeram — sabem como é extremamente desconfortável. Por vezes, mesmo os chimpanzés chegam a cair quando têm pesadelos — aquela horrível sensação de queda que, ao acordar, se torna afinal verdadeira. Para uma mulher é ainda pior porque tem de segurar uma ou mais crianças ao mesmo tempo, o que se torna cada vez mais difícil à medida que deixa de lhe crescer pelo no peito e as crianças vão perdendo as suas reações hereditárias de preensão cada vez mais cedo.
Claro que se pode construir um ninho no chão. O instinto de nidificar é muito comum, e mesmo que não fosse podia aprender-se com os pássaros. Pode-se entretecer um pequeno e confortável ninho em poucas horas com qualquer material apropriado, como o bambu ou folhas de palmeira, e uma residência de ramos bastante imponente pode ser construída numa semana se se pretender prolongar a estadia. Num ninho destes é possível dormir estendido, mas não aguenta uma chuvada forte, nem afasta sequer um pequeno leopardo. Por mais que se disfarce cuidadosamente com folhas, por mais que se esconda nos arbustos, tende-se a apanhar reumatismo e a perder o bebé.
Toda mulher-macaco anseia por uma caverna, mesmo uma caverna pequenina, com um teto por cima da cabeça, rocha sólida nas suas costas e uma abertura estreita onde possa resistir e defender as suas crias com alguma possibilidade de êxito. Pode então barrar a entrada com uma árvore derrubada e pode até ter, no interior, um nicho alto onde possa esconder o bebé ou utilizar como despensa. Mas, claro que os animais conhecem isto tão bem como nós, tanto os ursos como os leões ou os tigres dentes-de-sabre, e não há cavernas que cheguem para todos. São poucas, apesar de tudo, as que não poderiam ser ocupadas por várias famílias desalojadas de qualquer espécie. Mas ninguém as partilha, talvez com exceção para as cobras. Descobrimos que se um dos grandes felinos ocupava uma caverna, éramos por regra obrigados a deixá-lo ficar com ela e, se ela nos pertencia e ele a queria, tínhamos por regra de fazer as malas e partir. Mas isto nunca impediu as mulheres de se queixarem.
De modo nenhum. Queixavam-se e voltavam a queixar-se sobre o assunto. Metade das suas conversas versava o tema das cavernas: as adoráveis cavernas que tinham tido... até os seus machos permitirem que um bruto de um urso qualquer os expulsasse de lá; as cavernas maravilhosas na região mais próxima que poderiam ser ocupadas se tivessem em consideração os pontos de vista femininos, afugentando para outra zona um pequeno grupo de leões (onde, aliás, havia muitas mais cavernas); cavernas ótimas que podiam ser encontradas, sem nenhum leão a ocupá-las, se apenas se procurasse um pouco, em vez de arranjar desculpas acerca da necessidade de passar todo o dia a lascar pedra; e a inutilidade da mísera caverna que atualmente tinham e que nem sequer podia ser considerada como tal, antes um mero refúgio rochoso, um pedacinho de rocha com uma pequena saliência interior onde a chuva entrava empurrada pelo vento, e... ouçam a horrível tosse do bebé.
É verdade que, à noite, estávamos frequentemente tão molhados e com frio como esfomeados, e também assustados, quando a escuridão era invadida pelo rugir do leão levantando a caça, ou pelos latidos das matilhas de cães farejando-a. Podia-se ouvir o inimigo aproximar-se cada vez mais enquanto nos agachávamos contra o mísero pedaço de rocha — pelo qual começaria, inexplicavelmente e sempre, a correr um rio de água gelada —, as mulheres segurando as crianças, os machos empunhando os seus machados de pedra ou as suas lanças, e até mesmo as crianças segurando pedras para arremessar. Os caçadores aproximavam-se mais e mais, e ouvia-se o longo grito de algum veado abatido, pelo que a nossa vez ainda não chegara. Uma hora ou duas de um sono intermitente e a caçada recomeçava. Olhos cintilantes observavam a pequena horda desde a linha negra da selva, brilhando por um instante e passando adiante ou aproximando-se da pobre e fraca fila de paus afiados que defendiam a nossa toca e nos dava mais alguns segundos para atirar as pedras ou trespassar com as lanças. Depois, como um grande projétil, abatia-se sobre nós o enorme corpo, olhos em brasa, mandíbulas entreabertas, o rosnado aumentando num crescendo de triunfo. Erguíamo-nos com o nosso grito de desafio e depois tudo era confuso: paus volteando no ar, pedras voando, mandíbulas abocanhando e garras afiadas irrompendo e rasgando coxas nuas e barrigas expostas. Depois o súbito atacante desaparecia deixando-nos maltratados e a sangrar... e um dos mais fracos teria desaparecido.
Que desilusão para a nossa crença na inteligência contra o puro músculo e as garras retrateis! Algumas vezes saíamos vencedores mesmo contra um ataque frontal. Quando estávamos abrigados numa saliência situada mesmo fora de alcance (e que era proporcionalmente desconfortável) e descarregávamos o nosso vocabulário de insultos no indignado focinho do agressor. Ou quando uma pedrada certeira obrigava o gigantesco atacante a afastar-se com uma enorme dor de cabeça. Lembro-me de uma vez que matamos, e prontamente devoramos, um enorme tigre dentes-de-sabre, que tinha perdido os sabres com outra vítima e pensava que nós seriamos comida mais fácil. Mas as minhas recordações mais fortes são das longas noites de espera numa posição exposta e mal fortificada, dos rugidos cada vez mais fortes do inimigo, dos olhos cintilantes e da carga final.
Não se podia fazer nada a não ser esperar e escutar, a boca seca, um buraco no estômago, o coração aos pulos, os joelhos dobrados preparados para entrarem em ação. Passamos longas noites de vigília nas piores épocas, quando parecíamos perseguidos por hordas de carnívoros que nos atacavam por turnos. Os homens iam desaparecendo, mortos de imediato ou em consequência dos ferimentos, e rapazes ainda pequenos ocupavam as primeiras filas. E eles continuavam a atacar. E então, uma noite, demos também pela ausência do Pai. Naquela manhã tinha observado a cena da carnificina deixada pela batalha da noite anterior. A sua expressão estava cinzenta de cansaço e sulcada de tristeza. Depois voltou-se e, abrindo caminho, embrenhou-se na floresta dizendo apenas:
Voltarei esta noite. Tenho que fazer uma coisa importante”. A Mãe suspirou e continuou a ligar, com folhas e uma das peles de cobra que guardava para tais emergências, um rasgão horrível no ombro do meu irmão. Naquela noite tinha perdido Pepita, a minha irmã mais nova. Mas quando escureceu de novo, o Pai ainda não tinha voltado. Todos os dias, ao anoitecer, costumava supervisionar a reconstrução e o reforço da paliçada, insistir com todos para que comêssemos algo, nem que fossem apenas raízes e bagas, verificar os machados e afiar as lanças. Sabíamos o que significava a sua ausência — um encontro com um mamute, um pé descuidado em cima de um crocodilo — e, entristecidos, preparamo-nos para fazer o que sempre nos havia ensinado. Por fim, uma lua em forma de foice emergiu entre as estrelas e soubemos que ia ser outra daquelas terríveis noites.
Eles chegaram e olharam-nos ferozmente com os seus olhos incandescentes. Descreveram um círculo à nossa volta e continuaram, disseram à lua que tinham fome e precisavam comer, e foram caçar e de novo voltaram para nós. Então, vi aproximar-se de muito longe uma besta desconhecida só com um olho. Ainda meio adormecido, vi-a, dentro da minha cabeça, como um enorme lagarto com um vulcão a arder na testa, enquanto se dirigia implacavelmente na nossa direção, Um imenso leviatã com armadura que nos engoliria da forma mais amistosa, pondo fim àquela insuportável situação. E caminhava ao nosso encontro, esmagando criaturas mais pequenas, cada vez mais perto, maior e mais brilhante, determinado a apanhar-nos antes que os leões e os leopardos escolhessem os melhores petiscos ou os lobos se precipitassem, vorazes, sobre nós. E exatamente quando todos os dentes da selva pareciam convergir para a nossa paliçada, de súbito a estranha besta saltou, pequena, ágil, castanha e bípede, para o meio de nós e rasgou a escuridão da noite com uma brecha vermelha. Era o Pai, de mão levantada bem ao alto. E, na sua mão, cativo num pau, cintilando e fumegando ameaçador, afastando a selva muito para além do salto de um leão, estava o fogo.
Na manhã do dia seguinte o Pai conduziu-nos, numa pequena e enlameada procissão, daquele lugar ensanguentado para a melhor caverna da região. Tinha um belo pórtico rematado por um arco, cuja largura rondaria os quatro metros e meio e a altura os seis, protegido por uma saliência rochosa, graciosamente erodida, de onde tombavam raminhos de buganvília formando uma cortina. Em frente, uma plataforma rochosa suave e polida, de agradável aspecto solarengo servia ao mesmo tempo de soleira e varanda; era flanqueada por uma alameda de cedros por onde corria um constante abastecimento de água fresca, boa para beber, tomar banho e despejar detritos. No interior, a caverna era espaçosa: a sala central tinha um comprimento superior a dez metros e meio e uma largura pouco menor com um teto abobadado. Para ambos os lados abriam-se diversas cavernas interiores e alcovas, enquanto ao fundo um túnel estreito conduzia até às entranhas das colinas. Os meus pais inspecionavam estas comodidades modernas com a maior satisfação.
Pelo menos as pequenas terão um pouco de privacidade, — disse a Mãe.
Cavernas interiores, — disse o Pai, espreitando para dentro do túnel. — Boas perspectivas para desenvolvimento. Morcegos, claro, mas depressa os eliminaremos. Malcheirosos, mas muito nutritivos. Um quarto privativo interior, uma, num..., uma adega, qualquer dia, quem sabe?
E bastante espaço em frente para o depósito de lixo — disse a Mãe.
Sim, minha querida, — concordou o Pai. — Julgo que ficaremos muito bem instalados aqui.
A caverna fora durante muito tempo o lar de uma grande família de ursos que nos fitaram estupefatos quando nos dirigimos a eles para os expulsar. Mal podiam acreditar no que viam. Deve ter-lhes parecido que o jantar estava sendo servido. Então, de repente, o Pai estava a atirar tições incandescentes para o meio deles. Rugindo de fúria e espanto, saíram de roldão da caverna, enchendo o ar com cheiro de pelo chamuscado. O seu chefe, que conhecíamos bem como o maior brigão das redondezas, carregou selvaticamente sobre nós, mas logo descobriu que não éramos presa fácil quando nos colocamos em formação para enfrentar a sua carga, machado numa mão e tição flamejante na outra. O fumo erguia-se em grandes rolos ameaçadores da nossa linha de batalha e o senhor dos ursos estacou subitamente. Os seus seguidores fitaram-no perplexos ao verem o seu campeão hesitar e rosnar em vez de nos atacar. Outro míssil flamejante saiu disparado da nossa pequena falange, deixando atrás de si um rasto curvilíneo de fumo, acertando-lhe em cheio entre os olhos, e incendiando por momentos as suas sobrancelhas espessas. Isto arrumou o assunto de vez. Dando patadas no focinho, enquanto lágrimas de dor e humilhação corriam pelo seu nariz abaixo, o senhor dos ursos bateu em retirada seguido pelo resto do seu grupo.
Vencemos! — foi o nosso grito, transbordante de alegria mas ainda incrédulo. — Vencemos.
Claro que vencemos, — disse o Pai. — E aprendam que a Natureza não está necessariamente do lado dos grandes batalhões. A Natureza está do lado da espécie que possui vantagem tecnológica sobre as outras. No momento, somos nós quem detém essa vantagem. — Fitou-nos fixamente, e havia um aviso no seu olhar. — Eu disse “no momento”. Não deixem que uma simples vitória vos suba à cabeça. Ainda temos uma longa caminhada pela frente, — uma longa caminhada. Mas, por enquanto, tomemos posse efetiva desta sedutora residência.
Assim, mudamo-nos para o nosso novo lar e constatamos que era uma melhoria substancial em relação a todos os outros que ocupáramos antes. Os ursos voltaram várias vezes, sobretudo quando pensavam que o Pai tinha saído para caçar, mas encontraram sempre uma fogueira luminosa e acolhedora ardendo em frente da caverna e mudaram sempre de ideia quanto a atacar-nos. Os leões e os outros felinos também vieram espreitar mas, depois de examinarem o fogo à distância, tentavam fingir que de qualquer modo já tinham um lugar melhor e partiam com toda a dignidade que conseguiam reunir, ao som das nossas gargalhadas trocistas.
Qualquer dia — disse o Pai — pedirão que os deixemos sentar à volta desta agradável e quente fogueira.
E nós responderemos “Põe-te a andar, vagabundo!” — disse o meu irmão Oswald.
Talvez — respondeu o Pai pensativamente. — Ou podemos deixá-los... com certas condições.
Eu gostaria de ter um gatinho só meu, esganiçou-se William, o meu irmão mais novo.
Não enchas a cabeça das crianças com disparates, — disse a Mãe.

Roy Lewis, in Por que Almocei meu Pai

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