As
duas meninas estão deitadas de barriga para baixo em toalhas que
dizem GRAN HOTEL PUCÓN. A areia é escura e fina; a água do lago é
verde. Mais escuro e perfumado, o verde dos pinheiros que margeiam o
lago. O vulcão Villarica paira, branco, sobre o lago e as árvores,
o hotel, a cidadezinha de Pucón. Fios de fumaça sobem do cume do
vulcão e somem no azul límpido do céu. Barracas de praia azuis. A
touca de cabelo ruivo de Gerda, uma bola de praia amarela, as faixas
vermelhas de huasos que galopam por entre as árvores.
De
vez em quando, uma das pernas bronzeadas de Gerda ou de Claire se
balança languidamente no ar, para se livrar de grãos de areia ou de
uma mosca. Às vezes seus corpos jovens trepidam com as
incontroláveis risadinhas de adolescentes.
“E
a cara que a Conchi fez! A única coisa que ela pensou em dizer foi
‘Ojalá’. Que cara de pau!”
O
riso de Gerda é um latido curto germânico. O de Claire é agudo,
ondulante.
“E
ela nem admite quanto foi boba.”
Claire
se senta para passar óleo no rosto. Seus olhos azuis vasculham a
praia. Nada. Os dois homens bonitos não reapareceram.
“Lá
está ela… a Anna Kariênina…”
Numa
cadeira de lona vermelha e branca embaixo dos pinheiros.
A
melancólica moça russa, de chapéu-panamá, com uma sombrinha de
seda branca.
Gerda
suspira. “Ah, ela é linda. O nariz dela. Flanela cinza no verão.
E ela parece tão infeliz. Deve ter um amante.”
“Eu
vou cortar o meu cabelo que nem o dela.”
“Em
você vai ficar parecendo que você botou uma cuia na cabeça. Ela
simplesmente tem estilo.”
“Ela
é a única aqui que tem. Essas argentinas e americanas são todas
muito cafonas. E parece que não tem nenhum chileno aqui, nem mesmo
entre os funcionários. A aldeia inteira estava falando alemão.”
“Quando
acordo, eu sempre tenho a sensação de que ainda sou uma menininha e
estou na Alemanha ou na Suíça. Dá para ouvir as empregadas
sussurrando no hall ou cantando lá da cozinha.”
“Fora
aqueles americanos, ninguém aqui sorri, nem mesmo aquelas crianças,
tão sérias com seus baldinhos.”
“Só
americanos sorriem o tempo todo. Você está falando em espanhol, mas
o seu sorrisinho idiota te denuncia. O seu pai também ri o tempo
inteiro. O mercado de cobre acabou de entrar em colapso, rá-rá-rá.”
“O
seu pai também ri muito.”
“Só
quando alguma coisa é ridícula. Olha pra ele. Já deve ter nadado
até aquela balsa umas cem vezes hoje.”
Gerda
e Claire sempre vão a lugares com o pai de uma ou de outra. Ao
cinema e a corridas de cavalo com o sr. Thompson, a concertos ou
jogar golfe com Herr von Dessaur. Já suas amigas chilenas saem
sempre com mães, tias, avós ou irmãs.
A
mãe de Gerda morreu na Alemanha durante a guerra; sua madrasta é
médica e raramente está em casa. A mãe de Claire bebe, passa a
maior parte do tempo na cama ou em sanatórios. Depois da escola, as
duas amigas vão para casa tomar chá, ler ou estudar. A amizade
delas começou entre livros, em suas casas vazias.
Herr
von Dessaur se seca. Está molhado e ofegante. Frios olhos cinzentos.
Quando criança, Claire se sentia culpada quando via filmes de
guerra. Gostava dos nazistas… dos seus sobretudos, dos seus carros,
dos seus frios olhos cinzentos.
“Já
Chega. Vão nadar. Eu quero ver o crawl de vocês, quero ver
como vocês estão mergulhando agora.”
“Ele
está sendo bonzinho, não?”, Claire pergunta no caminho para a
água.
“Ele
é bonzinho quando não está com ela.”
As
meninas nadam com braçadas seguras pelo lago gelado adentro, até
ouvirem Gerdalein! e verem o pai dela agitando os braços.
Elas nadam até a balsa e se deitam na madeira quentinha. O vulcão
branco solta chispas e fumaça bem acima delas. Risos vindos de um
barco num ponto distante do lago, ruídos de cascos batendo na
estrada de terra perto da margem. Nenhum outro som, além do
chape-chape da água contra a balsa balançante.
Na
enorme sala de refeições de teto alto, cortinas brancas se
encapelam ao sabor da brisa do lago. Folhas de palmeiras se agitam em
vasos. Um garçom de casaca serve o consomê com uma concha, outro
quebra ovos, botando um em cada tigela de metal. Juntos, os dois
homens removem as espinhas de trutas, flambam sobremesas.
Um
senhor de cabelo branco e costas arqueadas se senta na cadeira em
frente à da bela Anna Kariênina.
“Será
que ele é o marido dela?”
“Espero
que ele não seja o conde Vronski.”
“De
onde vocês duas tiraram a ideia de que eles são russos? Eu ouvi os
dois falando alemão.”
“Jura,
papai? O que eles disseram?”
“Ela
disse: ‘Eu não devia ter comido ameixa seca no café da manhã’.”
As
meninas alugam um barco a remo e zarpam rumo a uma ilha. O lago é
imenso. Elas se revezam, rindo, remando em círculos a princípio,
mas depois deslizando suavemente. O chape-chape e o mergulho dos
remos na água. Elas atracam o barco numa enseada, mergulham de cima
de uma pedra na água verde, que tem gosto de peixe e limo. Nadam
durante um bom tempo, depois se deitam de braços e pernas abertas ao
sol, os rostos cobertos de trevos. Há um longo e lento tremor, que
faz o chão debaixo de seus corpos jovens se encrespar e estremecer.
Elas se agarram a hastes de alfazema enquanto a terra se ondula
debaixo delas, afunda debaixo delas. Seus olhos estão no mesmo nível
das ondulações verdes da terra. Teria escurecido por causa da
fumaça do vulcão? O cheiro de enxofre é intenso, aterrorizante. O
tremor para. Por uma fração de segundo, não há som nenhum e então
os pássaros desatam a piar histericamente. Vacas mugem e cavalos
relincham. Cachorros latem sem parar. Acima das meninas, os pássaros
adejam e assobiam nos galhos das árvores. Ondas altas se quebram
contra as pedras. As meninas estão em silêncio. Nenhuma delas
consegue falar sobre o que está sentindo, algo diferente de medo.
Gerda ri, dá aquela sua risada que parece um latido.
“A
gente nadou quilômetros, papai. Olha só as nossas mãos, cheias de
bolhas de tanto que nós remamos! Você sentiu o tremor?”
Ele
estava jogando golfe quando o tremor aconteceu, estava bem no green.
O pesadelo de um golfista… ver a bola se afastando do buraco, em
direção a você!
Os
rapazes estão no saguão, conversando com o recepcionista. Ah, eles
são bonitos. Fortes e bronzeados, com dentes brancos. Têm por volta
de vinte e cinco anos e vestem roupas chamativas. O de Claire, o
moreno, tem uma fenda no queixo. Quando olha para baixo, seus cílios
roçam em maçãs do rosto salientes e bronzeadas. Não pule tanto,
meu coração! Claire diz, rindo. Herr von Dessaur diz que os homens
são velhos demais para elas e vulgares, claramente da pior espécie.
Fazendeiros, é bem provável. Acompanhando as meninas, ele passa
pelos rapazes e diz para elas ficarem lendo no quarto até a hora do
jantar.
A
sala de jantar está festiva. Por causa do tremor, os hóspedes se
cumprimentam, falam com os garçons, conversam uns cons os outros. Há
músicos, homens muito velhos. Violinos tocam tangos, valsas.
“Frenesi.” La Mer.
Os
rapazes estão parados no vão da porta, emoldurados por vasos de
palmeiras e luminárias de parede de veludo vinho.
“Papai,
eles não são fazendeiros. Olha!”
Estão
esplendorosos em uniformes azul-claros de cadetes da Aeronáutica
chilena. Azul-claro adornado com galões dourados. Golas altas,
dragonas, botões dourados. Eles usam botas com esporas, capas de lã
que vão até o chão, espadas. Seguram seus quepes e luvas na dobra
do braço.
“Militares!
Pior ainda!”, exclama Herr von Dessaur, rindo. Vira o rosto,
secando lágrimas de riso dos olhos.
“Capas
numa noite de verão. Esporas e espadas num avião? Pelo amor de
Deus, olhem para eles! Eles são ridículos, coitados!”
Claire
e Gerda olham, impressionadas. Os cadetes retribuem com olhares
intensos, semissorrisos. Eles se sentam a uma pequena mesa perto do
palco, tomam conhaque em taças enormes. O louro tem uma piteira de
casca de tartaruga, que ele segura entre os dentes.
“Admita,
papai. Os olhos dele têm exatamente o mesmo tom de azul da capa.”
“Sim.
É o azul da Força Aérea chilena. A Força Aérea chilena nem
sequer tem aviões!”
Devia
estar quente demais, afinal. Eles se transferiram para uma mesa perto
da porta da varanda, penduraram as capas em suas cadeiras.
As
meninas imploraram para ficar acordadas até mais tarde, ouvir a
música, ver as pessoas dançarem tango. O suor encaracola o cabelo
caído na testa dos dançarinos, olhos nos olhos, hipnotizados. Como
sonâmbulos, os dançarinos giram e inclinam o corpo ao som dos
violinos.
Os
homens, Roberto e Andrés, batem os saltos de suas botas. Eles se
apresentam ao pai de Gerda e lhe pedem permissão para dançar com as
duas jovens senhoritas. Herr von Dessaur pensa em dizer não,
mas continua achando os cadetes tão engraçados que acaba dizendo:
Uma dança, depois é hora de as meninas irem para a cama.
A
orquestra toca “La Vie em rose” durante um longo tempo enquanto
os jovens dançam, dando voltas e mais voltas pelo salão de piso bem
encerado. Os uniformes azuis e os vestidos brancos de chiffon se
refletem nos espelhos escuros. As pessoas sorriem, observando os
belos dançarinos. As cortinas se agitam como velas de barco. Andrés
fala com Claire usando o pronome de tratamento familiar. Roberto
sugere que as meninas voltem para o salão depois que Herr von
Dessaur for dormir. A dança acabou.
Dias
se passam. Os homens trabalham na fazenda de Roberto e só voltam
para o hotel no fim da tarde. Gerda e Claire nadam, escalam o vulcão.
Sol quente, neve fria. Jogam golfe e croquet com Herr von
Dessaur. Remam até a ilha. Andam a cavalo com Herr von
Dessaur. Ombros para trás, ele diz. Cabeça erguida, ele diz para
Claire. Ele segura o pescoço dela durante um bom tempo. Claire
engole em seco. As meninas jogam canastra com algumas senhoras na
varanda. Uma argentina lê a sorte das duas nas cartas. Com um
cigarro na boca, ela aperta os olhos atrás da fumaça. Nas cartas,
Gerda tira um novo caminho e um homem estranho e misterioso. Claire
também tira um novo caminho e o dois de copas. Um beijo dos deuses.
Toda
noite, as meninas dançam com Roberto e Andrés ao som de “La Vie
en rose”, até que finalmente, uma noite, elas decidem voltar lá
para baixo depois que Herr von Dessaur pega no sono. Um casal
em lua de mel e alguns americanos são os únicos que restam no
salão. Roberto e Andrés se levantam e fazem uma reverência. Os
velhos músicos da orquestra parecem chocados, mas tocam “Adiós
muchachos”, um tango triste e pulsante. Os casais saem dançando,
como num sonho, pelas portas da varanda afora e descem a escada até
a areia molhada. As botas fazem a areia estalar como neve fresca. Os
quatro sobem num barco. Ficam sentados ali, sob o céu estrelado, de
mãos dadas, ouvindo os violinos. As luzes do hotel e do vulcão
branco formam estilhas prateadas na água. Sopra uma brisa. Está
fresco. Não, frio. O barco se desprendeu do cais. Não há remos. O
barco está se deslocando rapidamente, deslizando como o vento, com o
vento, rumo ao centro do lago escuro. Ah, não! Gerda arfa. As
meninas são beijadas enquanto ainda há chance. Ele enfiou a língua
toda na minha boca, Gerda conta, mais tarde. Claire leva uma cabeçada
na testa. Um beijo atinge o canto da sua boca, roça o seu nariz,
antes que as meninas mergulhem como mercúrio na água negra do lago.
Os
sapatos das duas se foram. As meninas estão molhadas e cheias de
frio, tremendo diante da entrada do hotel, agora fechada por portões
de ferro. Vamos esperar, diz Claire. O quê, até de manhã? Você só
pode estar maluca! Gerda sacode os portões de ferro, até que
finalmente luzes se acendem dentro do hotel. Gerdalein!, o pai
dela brada de uma das varandas, mas de repente ele está na frente
delas, atrás dos portões. O administrador do hotel aparece de
roupão, com as chaves.
No
quarto, as meninas se enrolam em cobertas. Herr von Dessaur
está pálido. Ele tocou em você? Gerda faz que não com a cabeça.
A gente dançou e depois sentou no barco, mas aí o barco se soltou,
então a gente… Ele beijou você? Ela não responde. Eu lhe fiz uma
pergunta: ele beijou você? Gerda faz que sim; o pai lhe dá um tapa
na boca. Vadia, ele diz.
A
camareira chega de manhã cedo, antes de clarear. Ela arruma as malas
deles. Eles vão embora antes que os outros hóspedes acordem, ficam
esperando um tempo enorme na estação de trem em Temuco. Herr
von Dessaur está sentado na frente de Claire e Gerda. As meninas
estão lendo, em silêncio, segurando o livro entre as duas. Sonata
de otoño. A mulher morre nos braços dele, numa ala distante do
castelo. Ele tem que carregar o corpo de volta até a cama dela,
pelos corredores. O longo cabelo preto da mulher arrasta nas pedras.
Não há velas.
“Você
não vai ver ninguém, principalmente a Claire, até o fim do verão.”
Finalmente
Herr von Dessaur sai para fumar e, por um breve e abençoado
momento, as amigas podem rir. Uma alegre explosão de riso. Quando
ele volta, elas estão lendo, em silêncio.
Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos
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