quinta-feira, 24 de março de 2022

La Vie en rose

As duas meninas estão deitadas de barriga para baixo em toalhas que dizem GRAN HOTEL PUCÓN. A areia é escura e fina; a água do lago é verde. Mais escuro e perfumado, o verde dos pinheiros que margeiam o lago. O vulcão Villarica paira, branco, sobre o lago e as árvores, o hotel, a cidadezinha de Pucón. Fios de fumaça sobem do cume do vulcão e somem no azul límpido do céu. Barracas de praia azuis. A touca de cabelo ruivo de Gerda, uma bola de praia amarela, as faixas vermelhas de huasos que galopam por entre as árvores.
De vez em quando, uma das pernas bronzeadas de Gerda ou de Claire se balança languidamente no ar, para se livrar de grãos de areia ou de uma mosca. Às vezes seus corpos jovens trepidam com as incontroláveis risadinhas de adolescentes.
E a cara que a Conchi fez! A única coisa que ela pensou em dizer foi ‘Ojalá’. Que cara de pau!”
O riso de Gerda é um latido curto germânico. O de Claire é agudo, ondulante.
E ela nem admite quanto foi boba.”
Claire se senta para passar óleo no rosto. Seus olhos azuis vasculham a praia. Nada. Os dois homens bonitos não reapareceram.
Lá está ela… a Anna Kariênina…”
Numa cadeira de lona vermelha e branca embaixo dos pinheiros.
A melancólica moça russa, de chapéu-panamá, com uma sombrinha de seda branca.
Gerda suspira. “Ah, ela é linda. O nariz dela. Flanela cinza no verão. E ela parece tão infeliz. Deve ter um amante.”
Eu vou cortar o meu cabelo que nem o dela.”
Em você vai ficar parecendo que você botou uma cuia na cabeça. Ela simplesmente tem estilo.”
Ela é a única aqui que tem. Essas argentinas e americanas são todas muito cafonas. E parece que não tem nenhum chileno aqui, nem mesmo entre os funcionários. A aldeia inteira estava falando alemão.”
Quando acordo, eu sempre tenho a sensação de que ainda sou uma menininha e estou na Alemanha ou na Suíça. Dá para ouvir as empregadas sussurrando no hall ou cantando lá da cozinha.”
Fora aqueles americanos, ninguém aqui sorri, nem mesmo aquelas crianças, tão sérias com seus baldinhos.”
Só americanos sorriem o tempo todo. Você está falando em espanhol, mas o seu sorrisinho idiota te denuncia. O seu pai também ri o tempo inteiro. O mercado de cobre acabou de entrar em colapso, rá-rá-rá.”
O seu pai também ri muito.”
Só quando alguma coisa é ridícula. Olha pra ele. Já deve ter nadado até aquela balsa umas cem vezes hoje.”
Gerda e Claire sempre vão a lugares com o pai de uma ou de outra. Ao cinema e a corridas de cavalo com o sr. Thompson, a concertos ou jogar golfe com Herr von Dessaur. Já suas amigas chilenas saem sempre com mães, tias, avós ou irmãs.
A mãe de Gerda morreu na Alemanha durante a guerra; sua madrasta é médica e raramente está em casa. A mãe de Claire bebe, passa a maior parte do tempo na cama ou em sanatórios. Depois da escola, as duas amigas vão para casa tomar chá, ler ou estudar. A amizade delas começou entre livros, em suas casas vazias.
Herr von Dessaur se seca. Está molhado e ofegante. Frios olhos cinzentos. Quando criança, Claire se sentia culpada quando via filmes de guerra. Gostava dos nazistas… dos seus sobretudos, dos seus carros, dos seus frios olhos cinzentos.
Já Chega. Vão nadar. Eu quero ver o crawl de vocês, quero ver como vocês estão mergulhando agora.”
Ele está sendo bonzinho, não?”, Claire pergunta no caminho para a água.
Ele é bonzinho quando não está com ela.”
As meninas nadam com braçadas seguras pelo lago gelado adentro, até ouvirem Gerdalein! e verem o pai dela agitando os braços. Elas nadam até a balsa e se deitam na madeira quentinha. O vulcão branco solta chispas e fumaça bem acima delas. Risos vindos de um barco num ponto distante do lago, ruídos de cascos batendo na estrada de terra perto da margem. Nenhum outro som, além do chape-chape da água contra a balsa balançante.
Na enorme sala de refeições de teto alto, cortinas brancas se encapelam ao sabor da brisa do lago. Folhas de palmeiras se agitam em vasos. Um garçom de casaca serve o consomê com uma concha, outro quebra ovos, botando um em cada tigela de metal. Juntos, os dois homens removem as espinhas de trutas, flambam sobremesas.
Um senhor de cabelo branco e costas arqueadas se senta na cadeira em frente à da bela Anna Kariênina.
Será que ele é o marido dela?”
Espero que ele não seja o conde Vronski.”
De onde vocês duas tiraram a ideia de que eles são russos? Eu ouvi os dois falando alemão.”
Jura, papai? O que eles disseram?”
Ela disse: ‘Eu não devia ter comido ameixa seca no café da manhã’.”
As meninas alugam um barco a remo e zarpam rumo a uma ilha. O lago é imenso. Elas se revezam, rindo, remando em círculos a princípio, mas depois deslizando suavemente. O chape-chape e o mergulho dos remos na água. Elas atracam o barco numa enseada, mergulham de cima de uma pedra na água verde, que tem gosto de peixe e limo. Nadam durante um bom tempo, depois se deitam de braços e pernas abertas ao sol, os rostos cobertos de trevos. Há um longo e lento tremor, que faz o chão debaixo de seus corpos jovens se encrespar e estremecer. Elas se agarram a hastes de alfazema enquanto a terra se ondula debaixo delas, afunda debaixo delas. Seus olhos estão no mesmo nível das ondulações verdes da terra. Teria escurecido por causa da fumaça do vulcão? O cheiro de enxofre é intenso, aterrorizante. O tremor para. Por uma fração de segundo, não há som nenhum e então os pássaros desatam a piar histericamente. Vacas mugem e cavalos relincham. Cachorros latem sem parar. Acima das meninas, os pássaros adejam e assobiam nos galhos das árvores. Ondas altas se quebram contra as pedras. As meninas estão em silêncio. Nenhuma delas consegue falar sobre o que está sentindo, algo diferente de medo. Gerda ri, dá aquela sua risada que parece um latido.
A gente nadou quilômetros, papai. Olha só as nossas mãos, cheias de bolhas de tanto que nós remamos! Você sentiu o tremor?”
Ele estava jogando golfe quando o tremor aconteceu, estava bem no green. O pesadelo de um golfista… ver a bola se afastando do buraco, em direção a você!
Os rapazes estão no saguão, conversando com o recepcionista. Ah, eles são bonitos. Fortes e bronzeados, com dentes brancos. Têm por volta de vinte e cinco anos e vestem roupas chamativas. O de Claire, o moreno, tem uma fenda no queixo. Quando olha para baixo, seus cílios roçam em maçãs do rosto salientes e bronzeadas. Não pule tanto, meu coração! Claire diz, rindo. Herr von Dessaur diz que os homens são velhos demais para elas e vulgares, claramente da pior espécie. Fazendeiros, é bem provável. Acompanhando as meninas, ele passa pelos rapazes e diz para elas ficarem lendo no quarto até a hora do jantar.
A sala de jantar está festiva. Por causa do tremor, os hóspedes se cumprimentam, falam com os garçons, conversam uns cons os outros. Há músicos, homens muito velhos. Violinos tocam tangos, valsas. “Frenesi.” La Mer.
Os rapazes estão parados no vão da porta, emoldurados por vasos de palmeiras e luminárias de parede de veludo vinho.
Papai, eles não são fazendeiros. Olha!”
Estão esplendorosos em uniformes azul-claros de cadetes da Aeronáutica chilena. Azul-claro adornado com galões dourados. Golas altas, dragonas, botões dourados. Eles usam botas com esporas, capas de lã que vão até o chão, espadas. Seguram seus quepes e luvas na dobra do braço.
Militares! Pior ainda!”, exclama Herr von Dessaur, rindo. Vira o rosto, secando lágrimas de riso dos olhos.
Capas numa noite de verão. Esporas e espadas num avião? Pelo amor de Deus, olhem para eles! Eles são ridículos, coitados!”
Claire e Gerda olham, impressionadas. Os cadetes retribuem com olhares intensos, semissorrisos. Eles se sentam a uma pequena mesa perto do palco, tomam conhaque em taças enormes. O louro tem uma piteira de casca de tartaruga, que ele segura entre os dentes.
Admita, papai. Os olhos dele têm exatamente o mesmo tom de azul da capa.”
Sim. É o azul da Força Aérea chilena. A Força Aérea chilena nem sequer tem aviões!”
Devia estar quente demais, afinal. Eles se transferiram para uma mesa perto da porta da varanda, penduraram as capas em suas cadeiras.
As meninas imploraram para ficar acordadas até mais tarde, ouvir a música, ver as pessoas dançarem tango. O suor encaracola o cabelo caído na testa dos dançarinos, olhos nos olhos, hipnotizados. Como sonâmbulos, os dançarinos giram e inclinam o corpo ao som dos violinos.
Os homens, Roberto e Andrés, batem os saltos de suas botas. Eles se apresentam ao pai de Gerda e lhe pedem permissão para dançar com as duas jovens senhoritas. Herr von Dessaur pensa em dizer não, mas continua achando os cadetes tão engraçados que acaba dizendo: Uma dança, depois é hora de as meninas irem para a cama.
A orquestra toca “La Vie em rose” durante um longo tempo enquanto os jovens dançam, dando voltas e mais voltas pelo salão de piso bem encerado. Os uniformes azuis e os vestidos brancos de chiffon se refletem nos espelhos escuros. As pessoas sorriem, observando os belos dançarinos. As cortinas se agitam como velas de barco. Andrés fala com Claire usando o pronome de tratamento familiar. Roberto sugere que as meninas voltem para o salão depois que Herr von Dessaur for dormir. A dança acabou.
Dias se passam. Os homens trabalham na fazenda de Roberto e só voltam para o hotel no fim da tarde. Gerda e Claire nadam, escalam o vulcão. Sol quente, neve fria. Jogam golfe e croquet com Herr von Dessaur. Remam até a ilha. Andam a cavalo com Herr von Dessaur. Ombros para trás, ele diz. Cabeça erguida, ele diz para Claire. Ele segura o pescoço dela durante um bom tempo. Claire engole em seco. As meninas jogam canastra com algumas senhoras na varanda. Uma argentina lê a sorte das duas nas cartas. Com um cigarro na boca, ela aperta os olhos atrás da fumaça. Nas cartas, Gerda tira um novo caminho e um homem estranho e misterioso. Claire também tira um novo caminho e o dois de copas. Um beijo dos deuses.
Toda noite, as meninas dançam com Roberto e Andrés ao som de “La Vie en rose”, até que finalmente, uma noite, elas decidem voltar lá para baixo depois que Herr von Dessaur pega no sono. Um casal em lua de mel e alguns americanos são os únicos que restam no salão. Roberto e Andrés se levantam e fazem uma reverência. Os velhos músicos da orquestra parecem chocados, mas tocam “Adiós muchachos”, um tango triste e pulsante. Os casais saem dançando, como num sonho, pelas portas da varanda afora e descem a escada até a areia molhada. As botas fazem a areia estalar como neve fresca. Os quatro sobem num barco. Ficam sentados ali, sob o céu estrelado, de mãos dadas, ouvindo os violinos. As luzes do hotel e do vulcão branco formam estilhas prateadas na água. Sopra uma brisa. Está fresco. Não, frio. O barco se desprendeu do cais. Não há remos. O barco está se deslocando rapidamente, deslizando como o vento, com o vento, rumo ao centro do lago escuro. Ah, não! Gerda arfa. As meninas são beijadas enquanto ainda há chance. Ele enfiou a língua toda na minha boca, Gerda conta, mais tarde. Claire leva uma cabeçada na testa. Um beijo atinge o canto da sua boca, roça o seu nariz, antes que as meninas mergulhem como mercúrio na água negra do lago.
Os sapatos das duas se foram. As meninas estão molhadas e cheias de frio, tremendo diante da entrada do hotel, agora fechada por portões de ferro. Vamos esperar, diz Claire. O quê, até de manhã? Você só pode estar maluca! Gerda sacode os portões de ferro, até que finalmente luzes se acendem dentro do hotel. Gerdalein!, o pai dela brada de uma das varandas, mas de repente ele está na frente delas, atrás dos portões. O administrador do hotel aparece de roupão, com as chaves.
No quarto, as meninas se enrolam em cobertas. Herr von Dessaur está pálido. Ele tocou em você? Gerda faz que não com a cabeça. A gente dançou e depois sentou no barco, mas aí o barco se soltou, então a gente… Ele beijou você? Ela não responde. Eu lhe fiz uma pergunta: ele beijou você? Gerda faz que sim; o pai lhe dá um tapa na boca. Vadia, ele diz.
A camareira chega de manhã cedo, antes de clarear. Ela arruma as malas deles. Eles vão embora antes que os outros hóspedes acordem, ficam esperando um tempo enorme na estação de trem em Temuco. Herr von Dessaur está sentado na frente de Claire e Gerda. As meninas estão lendo, em silêncio, segurando o livro entre as duas. Sonata de otoño. A mulher morre nos braços dele, numa ala distante do castelo. Ele tem que carregar o corpo de volta até a cama dela, pelos corredores. O longo cabelo preto da mulher arrasta nas pedras. Não há velas.
Você não vai ver ninguém, principalmente a Claire, até o fim do verão.”
Finalmente Herr von Dessaur sai para fumar e, por um breve e abençoado momento, as amigas podem rir. Uma alegre explosão de riso. Quando ele volta, elas estão lendo, em silêncio.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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