quinta-feira, 24 de março de 2022

Capítulo doze | Como um nome ausente


Boa de Espanto muito cedo se abeirou do filho e lhe suplicou que atentasse no perigo, medisse cada gesto do negro, lembrasse que era animal, menos pensado, muito mais incerto e a negociar ainda a sua maturação na criação. O negro nem seria espiritual, usaria linguagem apenas pelo inconsciente desabrigado, sua boca levaria a nenhuma dignidade, tinha um jacaré a viver no peito, troava no sono. A feminina agarrava seu filho até com embaraço, porque crescera e não deveria ser tocado de jeito tão intenso, numa ansiedade imprudente.
Alguns passaram a noite junto da maloca onde dormiam os dois aflitos da cor. Espiavam o silêncio, asseguravam que acontecia nada e catavam perigos. Comentavam que talvez o jacaré descesse do peito do negro para o chão e fosse devorar os incautos. O corpo deitado do negro poderia parecer à fera uma maré de feição à caça. Desceria de seu esconderijo para se encher de mortos. A comunidade precisava de ajudar o pajé na certeza de haver intuído a verdade. Em algumas raras vezes, os ancestrais arriscavam contrários, desafiavam a obediência crédula do povo, noticiavam erros para testar os abaeté e sua boa fé. Podia ser que isso fosse agora com Meio da Noite. Podia ser que ele testasse a estupidez da comunidade e solicitasse algum guerreiro que fosse mais esperto, mais rápido. Boa de Espanto contava ao filho o que a comunidade partilhava e até da aldeia subida se sabia pensarem assim. Os erros no passado haviam sido todos para fortalecer o espírito dos guerreiros, e Honra era irado, mas ainda carecia de força. O feio branco respondeu:
chorou por sentido próprio. Sem chefia, sem ninguém. Sagrada mãe, o negro germinou seu espírito na noite, que eu intuí como estava amplo sobre nós por dentro de toda a maloca. Nenhum jacaré desceu de seu peito, de dentro de sua boca. O que houver de viver dentro ali ficará, certamente incapaz de solucionar o labirinto das carnes, dos ossos, das mazelas cicatrizadas. Dormiu à solta, em paz, na alegria. Sagrada mãe, eu odeio o negro, mas ele chorou e dormiu na alegria.
Depois, Honra mais entoou:
tenho sempre dúvida que o negro exista, sagrada mãe. Por vezes, olho para onde está e vejo nada, como se houvesse uma sombra mais espessa da andiroba e algum vento acelerasse só por minha ansiedade. Onde o negro é existe uma ausência. É como um nome ausente, por pronunciar, adiado. Isso começa a entristecer meu ser. Não traz tanta fúria. Traz tristeza. O animal negro ainda guerreia por coagular em seu nome. Não deitou por inteiro de sua pronúncia. Não é material na plenitude. É metade de uma fera. Talvez só morra um pouco, e talvez também já um pouco tenha tenha morrido. Sobra por isso enquanto sombra. Sagrada mãe, e se os negros forem guerreiros que morreram metade incapazes de morrer inteiros, restos de pouco pelas matas à míngua de existir. E se os negros nunca maturarem mais do que para se tornarem metade mortos e deambularem pelas matas sem pertencerem ao mundo esplendoroso dos vivos e da luz. São o contrário da luz, dos clarões, das vibrantes e promitentes tempestades. São a natureza profunda da tristeza. São o meio da noite parado, contínuo, instante em que as feras covardes atacam. O negro é à mercê das feras mais covardes. Essa é a sua condição.
A feminina calou. Tudo em seu filho era por entender. Branco, zangado por natureza branca, Honra crescia para o perigo e suas ideias adquiriram a eloquência dos que estavam sempre no instante da tocaia.
Quando seguiram às pirogas, Honra respondeu:
minha cor é ferida. Sou ferido por essa cor e não terei como sarar. Estou sempre ferido. Meu nascimento é um golpe inimigo no corpo de minha mãe que foi atacada sem permissão pelo branco. E eu vou aprender tudo sobre o branco para o matar. Eu vou matar, sagrado Meio da Noite, eu vou abeirar as aldeias e abrir os corpos dos mil brancos.
O negro, imediato, entoou:
eu mato junto. Mato mais mil, todos os mil, depois de aprender como.
O guerreiro sempre ferido sentiu uma inusitada cumplicidade e quis saber:
tu já caçaste o inimigo. Mataste o inimigo, algum.
O negro respondeu:
nunca. Mas eu deveria ter. Mataram meu pai, mataram minha mãe, mataram meu irmão. Agora só vivem no que lembro, e eu lembro pouco, menos a cada vez, para conseguir viver. Se tivesse tido oportunidade, eu teria matado com a mesma fúria que sinto na tua voz.
Naquele instante, Meio da Noite berrou e seu berro fedeu na mata inteira, e teve o tamanho do ataque de vinte onças. Honra recuou empurrado pela massa de som, impressionado, tão dentro do susto quanto da maravilha. O feio branco entoou:
tu berras vinte onças. São vinte onças. Esse é um berro de caçar qualquer inimigo.
Meio da Noite outra vez berrou. Talvez fosse que o jacaré no peito lhe acontecesse nas partes canoras, talvez fosse que o jacaré quisesse protestar seu cárcere no interior escuro do fugitivo. O feio negro vociferava tremendo e chegava a levantar vento, a vegetação bulia nesse vento e também apavorada. O guerreiro branco, sempre duvidando de o negro ser inteiro alguém, certamente metade fera, um pouco fera ou completamente animal, pensou que haveria de ser perfeito contar com um guerreiro assim no momento da caça. Ele entoou:
serias um guerreiro temível no calado das tocaias. Serias um guerreiro valioso. A comunidade precisa de saber.
Ali, parados por um quase nada, Meio da Noite pediu:
faz comigo uma jura.
O que é uma jura,
quis saber Honra.
Um acordo. Acorda comigo a amizade. Só tive com meu irmão.
Honra, confuso, respondeu:
não me tentes, fera. Sou depois de qualquer transparência, maturei do pequeno igarapé. Minha educação está completa. Estou preparado para defender e vou ser abençoado quando for obrigado a atacar. Negoceio, assim, a paz e a guerra. Não posso negociar contigo. Tenho desconfiança e sinto pena. Observo tua tristeza mas aguardo teu ataque e temo ter também de te matar. Eu já não o quero. Mas julgo ainda ser obrigado. Matarei qualquer animal triste que enfureça por erro contra os abaeté. Eu matarei qualquer animal que enfureça por desespero contra os abaeté. E serei sempre abençoado por isso. Eu negoceio paz e guerra, mas não serei tentado. Mantenho os sentidos em dobro. Sou o dobro de um guerreiro quando pondero tua vida, teus gestos, tuas palavras tantas sem descodificar, teu jeito soturno, ao abandono mas com músculo para partir um inimigo em ossos pequenos.
O negro, sem entender o que significavam tais palavras, melhorou seu pedido:
serei teu amigo até que saibas ser meu amigo também.
Honra, sem resposta, sentiu o significado daquelas palavras como o mais belo que já escutara. Acelerou o pé. Não aceitava que a língua do branco trouxesse qualquer gentileza. Era uma língua suja, maldosa, estaria claramente a enganá-lo com astúcia para o derrotar. Meio da Noite sorriu. Entoou:
tenho treze anos, sou mais velho do que as tuas doze estações quentes. Eu posso ensinar muita coisa acerca de acordos, rapaz branco. Eu posso ensinar muita coisa.
Para Honra, esse conceito de anos para medir o tempo era absurdo e perigoso. Não existia. Única coisa que entoou:
não repitas essas falsidades. O tempo é inteiro sem idade. Idade é custo das coisas vivas. O tempo é vocábulo da Verdadeiríssima Divindade, não se deixa capturar em conta alguma. Podes contar o aquecimento das estações, não podes contar o tempo nem obrigá-lo a repetir-se. Ele é livre de teu pensamento e de teu gesto.
O feio negro, já correndo também, repetia:
fiz treze anos há muito. Não sei exactamente quando, sei que nasci nas festas dos santos brancos.
Para o feio branco, aquelas ideias eram ofensivas. A mata poderia puni-los. Se não cuidassem de respeitar o órgão vital, algum predador haveria de nascer diante deles para os devorar. Em corrida, assomaram ao areal, onde os guerreiros mais robustos trabalhavam as pirogas e os receberam com alarido. Honra, por orgulho, afastou-se do negro. Caminhou para o mais distante possível. E viu como Pé de Urutago emudeceu. O guerreiro com vocação para o voo emudeceu, sempre bravo a escavar o tronco já quase pronto. Quando Meio da Noite viu Pé de Urutago, ali mesmo visto diante de seus olhos, entoou na impenetrável língua branca:
Honra, conheço este tão grande. Eu vi como fazia alguma coisa estranha na mata branca. Na mata branca, Honra.
O guerreiro sempre ferido, humilhado de tão grande confiança com o animal negro, calou. Respondeu nada. Escavou o tronco sem resposta para ser um abaeté absolutamente normal.
Por vezes, tinha ainda a impressão de ser tocado. Alguém tangia seu corpo, mas havia ninguém. Olhava em redor e era ninguém. Os outros atarefavam e o guerreiro branco se esfregava para manter a pele limpa. Talvez fosse algum insecto. Algum bicho subindo sua perna. Um bicho que voasse logo depois, muito antes de ser visto.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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