Boa
de Espanto muito cedo se abeirou do filho e lhe suplicou que
atentasse no perigo, medisse cada gesto do negro, lembrasse que era
animal, menos pensado, muito mais incerto e a negociar ainda a sua
maturação na criação. O negro nem seria espiritual, usaria
linguagem apenas pelo inconsciente desabrigado, sua boca levaria a
nenhuma dignidade, tinha um jacaré a viver no peito, troava no sono.
A feminina agarrava seu filho até com embaraço, porque crescera e
não deveria ser tocado de jeito tão intenso, numa ansiedade
imprudente.
Alguns
passaram a noite junto da maloca onde dormiam os dois aflitos da cor.
Espiavam o silêncio, asseguravam que acontecia nada e catavam
perigos. Comentavam que talvez o jacaré descesse do peito do negro
para o chão e fosse devorar os incautos. O corpo deitado do negro
poderia parecer à fera uma maré de feição à caça. Desceria de
seu esconderijo para se encher de mortos. A comunidade precisava de
ajudar o pajé na certeza de haver intuído a verdade. Em algumas
raras vezes, os ancestrais arriscavam contrários, desafiavam a
obediência crédula do povo, noticiavam erros para testar os abaeté
e sua boa fé. Podia ser que isso fosse agora com Meio da Noite.
Podia ser que ele testasse a estupidez da comunidade e solicitasse
algum guerreiro que fosse mais esperto, mais rápido. Boa de Espanto
contava ao filho o que a comunidade partilhava e até da aldeia
subida se sabia pensarem assim. Os erros no passado haviam sido todos
para fortalecer o espírito dos guerreiros, e Honra era irado, mas
ainda carecia de força. O feio branco respondeu:
chorou
por sentido próprio. Sem chefia, sem ninguém. Sagrada mãe, o negro
germinou seu espírito na noite, que eu intuí como estava amplo
sobre nós por dentro de toda a maloca. Nenhum jacaré desceu de seu
peito, de dentro de sua boca. O que houver de viver dentro ali
ficará, certamente incapaz de solucionar o labirinto das carnes, dos
ossos, das mazelas cicatrizadas. Dormiu à solta, em paz, na alegria.
Sagrada mãe, eu odeio o negro, mas ele chorou e dormiu na alegria.
Depois,
Honra mais entoou:
tenho
sempre dúvida que o negro exista, sagrada mãe. Por vezes, olho para
onde está e vejo nada, como se houvesse uma sombra mais espessa da
andiroba e algum vento acelerasse só por minha ansiedade. Onde o
negro é existe uma ausência. É como um nome ausente, por
pronunciar, adiado. Isso começa a entristecer meu ser. Não traz
tanta fúria. Traz tristeza. O animal negro ainda guerreia por
coagular em seu nome. Não deitou por inteiro de sua pronúncia. Não
é material na plenitude. É metade de uma fera. Talvez só morra um
pouco, e talvez também já um pouco tenha tenha morrido. Sobra por
isso enquanto sombra. Sagrada mãe, e se os negros forem guerreiros
que morreram metade incapazes de morrer inteiros, restos de pouco
pelas matas à míngua de existir. E se os negros nunca maturarem
mais do que para se tornarem metade mortos e deambularem pelas matas
sem pertencerem ao mundo esplendoroso dos vivos e da luz. São o
contrário da luz, dos clarões, das vibrantes e promitentes
tempestades. São a natureza profunda da tristeza. São o meio da
noite parado, contínuo, instante em que as feras covardes atacam. O
negro é à mercê das feras mais covardes. Essa é a sua condição.
A
feminina calou. Tudo em seu filho era por entender. Branco, zangado
por natureza branca, Honra crescia para o perigo e suas ideias
adquiriram a eloquência dos que estavam sempre no instante da
tocaia.
Quando
seguiram às pirogas, Honra respondeu:
minha
cor é ferida. Sou ferido por essa cor e não terei como sarar. Estou
sempre ferido. Meu nascimento é um golpe inimigo no corpo de minha
mãe que foi atacada sem permissão pelo branco. E eu vou aprender
tudo sobre o branco para o matar. Eu vou matar, sagrado Meio da
Noite, eu vou abeirar as aldeias e abrir os corpos dos mil brancos.
O
negro, imediato, entoou:
eu
mato junto. Mato mais mil, todos os mil, depois de aprender como.
O
guerreiro sempre ferido sentiu uma inusitada cumplicidade e quis
saber:
tu
já caçaste o inimigo. Mataste o inimigo, algum.
O
negro respondeu:
nunca.
Mas eu deveria ter. Mataram meu pai, mataram minha mãe, mataram meu
irmão. Agora só vivem no que lembro, e eu lembro pouco, menos a
cada vez, para conseguir viver. Se tivesse tido oportunidade, eu
teria matado com a mesma fúria que sinto na tua voz.
Naquele
instante, Meio da Noite berrou e seu berro fedeu na mata inteira, e
teve o tamanho do ataque de vinte onças. Honra recuou empurrado pela
massa de som, impressionado, tão dentro do susto quanto da
maravilha. O feio branco entoou:
tu
berras vinte onças. São vinte onças. Esse é um berro de caçar
qualquer inimigo.
Meio
da Noite outra vez berrou. Talvez fosse que o jacaré no peito lhe
acontecesse nas partes canoras, talvez fosse que o jacaré quisesse
protestar seu cárcere no interior escuro do fugitivo. O feio negro
vociferava tremendo e chegava a levantar vento, a vegetação bulia
nesse vento e também apavorada. O guerreiro branco, sempre duvidando
de o negro ser inteiro alguém, certamente metade fera, um pouco fera
ou completamente animal, pensou que haveria de ser perfeito contar
com um guerreiro assim no momento da caça. Ele entoou:
serias
um guerreiro temível no calado das tocaias. Serias um guerreiro
valioso. A comunidade precisa de saber.
Ali,
parados por um quase nada, Meio da Noite pediu:
faz
comigo uma jura.
O
que é uma jura,
quis
saber Honra.
Um
acordo. Acorda comigo a amizade. Só tive com meu irmão.
Honra,
confuso, respondeu:
não
me tentes, fera. Sou depois de qualquer transparência, maturei do
pequeno igarapé. Minha educação está completa. Estou preparado
para defender e vou ser abençoado quando for obrigado a atacar.
Negoceio, assim, a paz e a guerra. Não posso negociar contigo. Tenho
desconfiança e sinto pena. Observo tua tristeza mas aguardo teu
ataque e temo ter também de te matar. Eu já não o quero. Mas julgo
ainda ser obrigado. Matarei qualquer animal triste que enfureça por
erro contra os abaeté. Eu matarei qualquer animal que enfureça por
desespero contra os abaeté. E serei sempre abençoado por isso. Eu
negoceio paz e guerra, mas não serei tentado. Mantenho os sentidos
em dobro. Sou o dobro de um guerreiro quando pondero tua vida, teus
gestos, tuas palavras tantas sem descodificar, teu jeito soturno, ao
abandono mas com músculo para partir um inimigo em ossos pequenos.
O
negro, sem entender o que significavam tais palavras, melhorou seu
pedido:
serei
teu amigo até que saibas ser meu amigo também.
Honra,
sem resposta, sentiu o significado daquelas palavras como o mais belo
que já escutara. Acelerou o pé. Não aceitava que a língua do
branco trouxesse qualquer gentileza. Era uma língua suja, maldosa,
estaria claramente a enganá-lo com astúcia para o derrotar. Meio da
Noite sorriu. Entoou:
tenho
treze anos, sou mais velho do que as tuas doze estações quentes. Eu
posso ensinar muita coisa acerca de acordos, rapaz branco. Eu posso
ensinar muita coisa.
Para
Honra, esse conceito de anos para medir o tempo era absurdo e
perigoso. Não existia. Única coisa que entoou:
não
repitas essas falsidades. O tempo é inteiro sem idade. Idade é
custo das coisas vivas. O tempo é vocábulo da Verdadeiríssima
Divindade, não se deixa capturar em conta alguma. Podes contar o
aquecimento das estações, não podes contar o tempo nem obrigá-lo
a repetir-se. Ele é livre de teu pensamento e de teu gesto.
O
feio negro, já correndo também, repetia:
fiz
treze anos há muito. Não sei exactamente quando, sei que nasci nas
festas dos santos brancos.
Para
o feio branco, aquelas ideias eram ofensivas. A mata poderia
puni-los. Se não cuidassem de respeitar o órgão vital, algum
predador haveria de nascer diante deles para os devorar. Em corrida,
assomaram ao areal, onde os guerreiros mais robustos trabalhavam as
pirogas e os receberam com alarido. Honra, por orgulho, afastou-se do
negro. Caminhou para o mais distante possível. E viu como Pé de
Urutago emudeceu. O guerreiro com vocação para o voo emudeceu,
sempre bravo a escavar o tronco já quase pronto. Quando Meio da
Noite viu Pé de Urutago, ali mesmo visto diante de seus olhos,
entoou na impenetrável língua branca:
Honra,
conheço este tão grande. Eu vi como fazia alguma coisa estranha na
mata branca. Na mata branca, Honra.
O
guerreiro sempre ferido, humilhado de tão grande confiança com o
animal negro, calou. Respondeu nada. Escavou o tronco sem resposta
para ser um abaeté absolutamente normal.
Por
vezes, tinha ainda a impressão de ser tocado. Alguém tangia seu
corpo, mas havia ninguém. Olhava em redor e era ninguém. Os outros
atarefavam e o guerreiro branco se esfregava para manter a pele
limpa. Talvez fosse algum insecto. Algum bicho subindo sua perna. Um
bicho que voasse logo depois, muito antes de ser visto.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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