Um
grão de milho deslizou da mão de Belonísia para o solo arado. Com
os próprios pés recobriu a semente, afofando com a necessária
delicadeza para que o movimento do mundo se encarregasse do resto. É
um campo maior que o do último plantio. Seus pés estavam de novo
sobre a várzea do rio Utinga, moldando a terra escura e úmida
nutrida pela cheia. As águas caíram generosas nas últimas semanas,
recobriram todos os cantos e convidavam os moradores para cultivar
suas roças com o que pudessem plantar. Havia peixes nas poças
d’água ao longo das áreas que antes estavam secas. Outro grão de
milho deixou sua mão para deitar a terra, formando uma trilha
subterrânea de sementes douradas.
Há
muitos anos, sentiu seu corpo vibrar como a terra úmida daquele
campo. Vivendo entre as mulheres jovens da fazenda, era como se sua
sina de ser mãe estivesse também sendo traçada. Mas, como a chuva,
esse desejo foi abandonando seu corpo sem explicação aparente. E,
depois dessa experiência, a cada vez que se entregava à semeadura
conseguia sentir a natureza vibrando, como no passado. Quando estava
sozinha e sabia que não a observariam com estranheza pelo seu ato,
deitava no chão, como viu seu pai fazer inúmeras vezes. Tentava
escutar os sons mais íntimos, dos lugares mais recônditos do
interior da terra, para livrar o plantio da praga, para reparar as
dificuldades e ajudar na colheita.
Fazia
algum tempo que os moradores decidiram levantar suas casas com
materiais duráveis. Aconteceu antes da morte de Salomão. Era um
desejo antigo, sufocado pelos interditos. Queriam ter casas de
alvenaria. Queriam moradas que não se desfizessem com o tempo e que
demarcassem de forma duradoura a relação deles com Água Negra. Os
filhos que trabalhavam fora passaram a enviar um pouco de dinheiro
para as construções. Os mais velhos, que puderam se aposentar,
começaram a comprar material à prestação na cidade. Chegavam na
calada da noite com carregamentos em carrinhos de mão e carroças,
para não chamar a atenção. O primeiro a assentar um tijolo foi o
velho Saturnino, com a ajuda dos filhos e netos. Alguém passou pela
frente da casa que estava sendo erguida e disse que faria o mesmo. Os
gerentes passaram a reclamar, por ordem de Salomão, mas não
adiantou. Aos poucos, a paisagem da fazenda foi se modificando como
nunca antes havia ocorrido. Salu apenas disse para Zezé e Belonísia
que queria levantar sua casa. Mas, se não tivesse dito, isso seria
fácil de decifrar nas suas palavras soltas e nos bons gestos. Estava
velha, queria ter sossego e não precisar se preocupar com o desgaste
do barro. As chuvas eram esparsas, mas por vezes chegavam violentas,
deixando avarias. Nunca teve nenhum bem e não abria mão de ter sua
casa, era um sonho antigo que acalentou com seu marido. Queria uma
com paredes caiadas e telhado de cerâmica. Nos finais de semanas,
Zezé, Inácio e Belonísia foram erguendo a casa da família.
Bibiana e Salu ajudavam, preparando o almoço. Havia um ar de
recomeço naqueles dias, como recomeçavam seus trabalhos na roça
depois da estiagem ou da cheia.
Talvez
por entender que aquele movimento de desobediência ganhava contornos
irrefreáveis, Salomão procurou a Justiça pedindo reintegração de
posse de todas as áreas ocupadas da fazenda. A notícia foi recebida
com comoção pelos moradores, que apenas imaginavam o que fariam se
os tratores derrubassem suas casas e tivessem que se retirar da
fazenda. Genivaldo foi o primeiro a falar mais alto, para que todos
ouvissem, que ele não iria para a cidade “alisar passeio”.
“Nasci nessa roça e só sei trabalhar com a mão na terra. Daqui
não saio.” Sua decisão passou a ser encorajada. Reunidos com
Bibiana, decidiram que se tivesse a ordem de um juiz – eles
acreditavam que era possível pela influência que Salomão tinha
entre os ilustres cidadãos da região –, deitariam no chão diante
de suas casas para impedir os tratores de demolir. Que nenhuma
família desampararia a mais próxima, independente das diferenças
que guardavam no dia a dia. Juntos resistiriam até o fim.
Se
prepararam para a guerra, como os coronéis fizeram no passado pelo
controle dos garimpos. A diferença é que agora o conflito era pelo
direito de morar. Mas a decisão da justiça parecia demorar a sair,
e no meio da espera o homem apareceu morto. A suspeita de imediato
recaiu sobre os moradores. Muitos foram conduzidos à delegacia. Até
mesmo Bibiana foi levada, junto com o filho. Lá se recordou da morte
do marido, que ainda não havia completado um ano. Questionaram sobre
o papel dela na desordem que relatavam na fazenda. Disse que era
professora, casada por muitos anos com um militante. Disse que era
quilombola. Escutou que ninguém nunca havia falado sobre quilombo
naquela região. “Mas a nossa história de sofrimento e luta diz
que nós somos quilombolas”, disse, tranquila, diante do escrivão
e do delegado.
Durante
muito tempo, o temor de que iria surgir dentre eles um assassino
perturbou suas vidas. Ao mesmo tempo, chegavam notícias de
trabalhadores de outras fazendas de Salomão, relatando discórdias
com empregados e vizinhos. Por onde ele havia passado deixou um
rastro de descontentamento e desejo de revide. Isso só dificultou
mais as investigações. O inquérito, depois de muitas oitivas e
diligências, findou inconcluso.
Estela
havia se mudado para a capital, mas continuava a administrar, de
longe, as fazendas. Quem a conhecia dizia que havia enlouquecido. Via
conspiração e tramas de vingança em todo o canto. Vivia sem sair
de casa e impunha uma ordem de pavor aos filhos, com medo de que
fossem alvos da mesma retaliação que vitimou o pai.
Meses
depois, a notícia dos assassinatos trouxe funcionários de órgãos
públicos, que ouviram moradores num processo de reintegração de
posse. Aquela chegada foi celebrada com alívio. Tudo permanecia
incerto, não havia prazos para a solução do problema, mas aquela
movimentação indicava que a existência de Água Negra já era um
fato. Não eram mais invisíveis, nem mesmo poderiam ser ignorados.
Em
meio a todas as mudanças que chegavam, Inácio se preparou para
deixar a casa da mãe. Iria estudar na cidade, se prepararia para os
exames da universidade, queria ser professor. Queria participar de
movimentos como o pai havia feito. Bibiana foi incentivadora da
mudança, e em nenhum momento deixou transparecer o peso que a
ausência do filho teria em seus dias. Tentava irradiar confiança.
Diferente de Belonísia, que se quedou melancólica. A irmã amava os
sobrinhos como filhos. Conviveu entre eles desde o retorno de
Bibiana. O primeiro filho de Domingas estava a caminho, mas isso não
a fazia cogitar se afastar de nenhum deles. Não queria ter que se
separar de mais ninguém.
Imaginou
que no dia da partida de Inácio teria que consolar Bibiana. Salu, as
irmãs e as sobrinhas fizeram fila para abraçá-lo. Flora e Maria
escreveram cartas dizendo que sentiriam saudade e que, se o irmão
encontrasse trabalho, trouxesse presentes. Ana deu um desenho da
família completa com o pai, Salu e os tios. Inácio abraçou cada
uma, de forma mais detida a mãe, mas teve que enxugar as lágrimas
de tia Belonísia. Pediu para que a madrinha não chorasse.
Retornaria a cada final de ano. Guardaria tudo que ela havia lhe
ensinado. Belonísia deu uma garrafa de mel e um terço com a imagem
de Senhor dos Passos para que levasse consigo. Seria seu amuleto.
Mesmo
muito depois de o carro ter deixado a fazenda e a família ter se
recolhido aos seus afazeres, Belonísia permaneceu à porta mirando a
estrada e tudo o mais que não podia ver de onde estava. Bibiana se
levantou da mesa, onde iria iniciar a correção dos cadernos, e se
dirigiu até a irmã. Envolveu-a por trás, enlaçando os braços em
sua cintura, aninhando seu rosto entre o ombro e a orelha. Belonísia
segurou suas mãos. Juntas fecharam os olhos e compartilharam a
dádiva daquele instante. Entregaram-se àquele gesto por inteiro e
experimentaram algo que poderiam chamar de perdão.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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