sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Rio de sangue | 13

Um grão de milho deslizou da mão de Belonísia para o solo arado. Com os próprios pés recobriu a semente, afofando com a necessária delicadeza para que o movimento do mundo se encarregasse do resto. É um campo maior que o do último plantio. Seus pés estavam de novo sobre a várzea do rio Utinga, moldando a terra escura e úmida nutrida pela cheia. As águas caíram generosas nas últimas semanas, recobriram todos os cantos e convidavam os moradores para cultivar suas roças com o que pudessem plantar. Havia peixes nas poças d’água ao longo das áreas que antes estavam secas. Outro grão de milho deixou sua mão para deitar a terra, formando uma trilha subterrânea de sementes douradas.
Há muitos anos, sentiu seu corpo vibrar como a terra úmida daquele campo. Vivendo entre as mulheres jovens da fazenda, era como se sua sina de ser mãe estivesse também sendo traçada. Mas, como a chuva, esse desejo foi abandonando seu corpo sem explicação aparente. E, depois dessa experiência, a cada vez que se entregava à semeadura conseguia sentir a natureza vibrando, como no passado. Quando estava sozinha e sabia que não a observariam com estranheza pelo seu ato, deitava no chão, como viu seu pai fazer inúmeras vezes. Tentava escutar os sons mais íntimos, dos lugares mais recônditos do interior da terra, para livrar o plantio da praga, para reparar as dificuldades e ajudar na colheita.
Fazia algum tempo que os moradores decidiram levantar suas casas com materiais duráveis. Aconteceu antes da morte de Salomão. Era um desejo antigo, sufocado pelos interditos. Queriam ter casas de alvenaria. Queriam moradas que não se desfizessem com o tempo e que demarcassem de forma duradoura a relação deles com Água Negra. Os filhos que trabalhavam fora passaram a enviar um pouco de dinheiro para as construções. Os mais velhos, que puderam se aposentar, começaram a comprar material à prestação na cidade. Chegavam na calada da noite com carregamentos em carrinhos de mão e carroças, para não chamar a atenção. O primeiro a assentar um tijolo foi o velho Saturnino, com a ajuda dos filhos e netos. Alguém passou pela frente da casa que estava sendo erguida e disse que faria o mesmo. Os gerentes passaram a reclamar, por ordem de Salomão, mas não adiantou. Aos poucos, a paisagem da fazenda foi se modificando como nunca antes havia ocorrido. Salu apenas disse para Zezé e Belonísia que queria levantar sua casa. Mas, se não tivesse dito, isso seria fácil de decifrar nas suas palavras soltas e nos bons gestos. Estava velha, queria ter sossego e não precisar se preocupar com o desgaste do barro. As chuvas eram esparsas, mas por vezes chegavam violentas, deixando avarias. Nunca teve nenhum bem e não abria mão de ter sua casa, era um sonho antigo que acalentou com seu marido. Queria uma com paredes caiadas e telhado de cerâmica. Nos finais de semanas, Zezé, Inácio e Belonísia foram erguendo a casa da família. Bibiana e Salu ajudavam, preparando o almoço. Havia um ar de recomeço naqueles dias, como recomeçavam seus trabalhos na roça depois da estiagem ou da cheia.
Talvez por entender que aquele movimento de desobediência ganhava contornos irrefreáveis, Salomão procurou a Justiça pedindo reintegração de posse de todas as áreas ocupadas da fazenda. A notícia foi recebida com comoção pelos moradores, que apenas imaginavam o que fariam se os tratores derrubassem suas casas e tivessem que se retirar da fazenda. Genivaldo foi o primeiro a falar mais alto, para que todos ouvissem, que ele não iria para a cidade “alisar passeio”. “Nasci nessa roça e só sei trabalhar com a mão na terra. Daqui não saio.” Sua decisão passou a ser encorajada. Reunidos com Bibiana, decidiram que se tivesse a ordem de um juiz – eles acreditavam que era possível pela influência que Salomão tinha entre os ilustres cidadãos da região –, deitariam no chão diante de suas casas para impedir os tratores de demolir. Que nenhuma família desampararia a mais próxima, independente das diferenças que guardavam no dia a dia. Juntos resistiriam até o fim.
Se prepararam para a guerra, como os coronéis fizeram no passado pelo controle dos garimpos. A diferença é que agora o conflito era pelo direito de morar. Mas a decisão da justiça parecia demorar a sair, e no meio da espera o homem apareceu morto. A suspeita de imediato recaiu sobre os moradores. Muitos foram conduzidos à delegacia. Até mesmo Bibiana foi levada, junto com o filho. Lá se recordou da morte do marido, que ainda não havia completado um ano. Questionaram sobre o papel dela na desordem que relatavam na fazenda. Disse que era professora, casada por muitos anos com um militante. Disse que era quilombola. Escutou que ninguém nunca havia falado sobre quilombo naquela região. “Mas a nossa história de sofrimento e luta diz que nós somos quilombolas”, disse, tranquila, diante do escrivão e do delegado.
Durante muito tempo, o temor de que iria surgir dentre eles um assassino perturbou suas vidas. Ao mesmo tempo, chegavam notícias de trabalhadores de outras fazendas de Salomão, relatando discórdias com empregados e vizinhos. Por onde ele havia passado deixou um rastro de descontentamento e desejo de revide. Isso só dificultou mais as investigações. O inquérito, depois de muitas oitivas e diligências, findou inconcluso.
Estela havia se mudado para a capital, mas continuava a administrar, de longe, as fazendas. Quem a conhecia dizia que havia enlouquecido. Via conspiração e tramas de vingança em todo o canto. Vivia sem sair de casa e impunha uma ordem de pavor aos filhos, com medo de que fossem alvos da mesma retaliação que vitimou o pai.
Meses depois, a notícia dos assassinatos trouxe funcionários de órgãos públicos, que ouviram moradores num processo de reintegração de posse. Aquela chegada foi celebrada com alívio. Tudo permanecia incerto, não havia prazos para a solução do problema, mas aquela movimentação indicava que a existência de Água Negra já era um fato. Não eram mais invisíveis, nem mesmo poderiam ser ignorados.
Em meio a todas as mudanças que chegavam, Inácio se preparou para deixar a casa da mãe. Iria estudar na cidade, se prepararia para os exames da universidade, queria ser professor. Queria participar de movimentos como o pai havia feito. Bibiana foi incentivadora da mudança, e em nenhum momento deixou transparecer o peso que a ausência do filho teria em seus dias. Tentava irradiar confiança. Diferente de Belonísia, que se quedou melancólica. A irmã amava os sobrinhos como filhos. Conviveu entre eles desde o retorno de Bibiana. O primeiro filho de Domingas estava a caminho, mas isso não a fazia cogitar se afastar de nenhum deles. Não queria ter que se separar de mais ninguém.
Imaginou que no dia da partida de Inácio teria que consolar Bibiana. Salu, as irmãs e as sobrinhas fizeram fila para abraçá-lo. Flora e Maria escreveram cartas dizendo que sentiriam saudade e que, se o irmão encontrasse trabalho, trouxesse presentes. Ana deu um desenho da família completa com o pai, Salu e os tios. Inácio abraçou cada uma, de forma mais detida a mãe, mas teve que enxugar as lágrimas de tia Belonísia. Pediu para que a madrinha não chorasse. Retornaria a cada final de ano. Guardaria tudo que ela havia lhe ensinado. Belonísia deu uma garrafa de mel e um terço com a imagem de Senhor dos Passos para que levasse consigo. Seria seu amuleto.
Mesmo muito depois de o carro ter deixado a fazenda e a família ter se recolhido aos seus afazeres, Belonísia permaneceu à porta mirando a estrada e tudo o mais que não podia ver de onde estava. Bibiana se levantou da mesa, onde iria iniciar a correção dos cadernos, e se dirigiu até a irmã. Envolveu-a por trás, enlaçando os braços em sua cintura, aninhando seu rosto entre o ombro e a orelha. Belonísia segurou suas mãos. Juntas fecharam os olhos e compartilharam a dádiva daquele instante. Entregaram-se àquele gesto por inteiro e experimentaram algo que poderiam chamar de perdão.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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