Teu
aniversário, no escuro,
não
se comemora.
Escusa
de levar-te esta gravata.
Já
não tens roupa, nem precisas.
Numa
toalha no espaço há o jantar,
mas
teu jantar é silêncio, tua fome não come.
Não
mais te peço a mão enrugada
para
beijar-lhe as veias grossas.
Nem
procuro nos olhos estriados
aquela
interrogação: está chegando?
Em
verdade paraste de fazer anos.
Não
envelheces. O último retrato
vale
para sempre. É um homem cansado
mas
fiel: carteira de identidade.
Tua
imobilidade é perfeita. Embora a chuva,
o
desconforto deste chão. Mas sempre amaste
o
duro, o relento, a falta. O frio sente-se
em
mim, que te visito. Em ti, a calma.
Como
compraste calma? Não a tinhas.
Como
aceitaste a noite? Madrugavas.
Teu
cavalo corta o ar, guardo uma espora
de
tua bota, um grito de teus lábios,
sinto
em mim teu copo cheio, tua faca,
tua
pressa, teu estrondo… encadeados.
Mas
teu segredo não descubro.
Não
está nos papéis
do
cofre. Nem nas casas que habitaste.
No
casarão azul
vejo
a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo
noturno,
teu pigarro, e sinto os bois
e
sinto as tropas que levavas pela Mata
e
sinto as eleições (teu desprezo) e sinto a Câmara
e
passos na escada, que sobem,
e
soldados que sobem, vermelhos,
e
armas que te vão talvez matar,
mas
que não ousam.
Vejo,
no rio, uma canoa,
nela
três homens.
“Inda
que mal pergunte, o Coronel sabe nadar?
Porque
esta canoa, louvado Deus, pode virar,
e
sua criação nunca mais que o senhor há de encontrar.”
Tua
mão saca do bolso uma coisa. Tua voz vai à frente.
“Coronel,
me desculpe, não se pode caçoar?”
Vejo-te
mais longe. Ficaste pequeno.
Impossível
reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.
Vem
da névoa, das memórias, dos baús atulhados,
da
monarquia, da escravidão, da tirania familiar.
És
bem frágil e a escola te engole.
Faria
de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso.
Para
começar: uma dúzia de bolos!
Quem
disse?
Entraste
pela porta, saíste pela janela
— conheceu,
seu mestre? — quem quiser que conte outra,
mas
tu ganhavas o mundo e nele aprenderias tua sucinta gramática,
a
mão do mundo pegaria de tua mão e desenharia tua letra firme,
o
livro do mundo te entraria pelos olhos e te imprimiria sua completa e
clara ciência,
mas
não descubro teu segredo.
É
talvez um erro amarmos assim nossos parentes.
A
identidade do sangue age como cadeia,
fora
melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,
onde
o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.
Por
que ficar neste município, neste sobrenome?
Taras,
doenças, dívidas: mal se respira no sótão.
Quisera
abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,
passando
por baixo de seus problemas e lavouras, da eterna agência do
correio,
e
inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.
Quisera
abandonar-te, negar-te, fugir-te,
mas
curioso:
já
não estás, e te sinto,
não
me falas, e te converso.
E
tanto nos entendemos, no escuro,
no
pó, no sono.
E
pergunto teu segredo.
Não
respondes. Não o tinhas.
Realmente
não o tinhas, me enganavas?
Então
aquele maravilhoso poder de abrir garrafas sem saca-rolha,
de
desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem chorar, morte
de filho,
expulsar
assombrações apenas com teu passo duro,
o
gado que sumia e voltava, embora a peste varresse as fazendas,
o
domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas,
caixeiros,
fiscais do governo, beatas, padres,
médicos,
mendigos, loucos mansos, loucos agitados, animais, coisas:
então
não era segredo?
E
tu que me dizes tanto
disso
não me contas nada.
Palavras tão poucas, antes!
É certo que intimidavas.
Guardavas talvez o amor
em tripla cerca de espinhos.
Já não precisas guardá-lo.
No escuro em que fazes anos,
no escuro, é permitido sorrir.
Carlos Drummond de Andrade, in A Rosa do Povo
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