Eu
não gostava de padres. Pareciam-me seres sinistros, com suas batinas
pretas e chapéus redondos. Mas ninguém da família jamais me falara
mal deles. Fiquei a imaginar as origens da minha ojeriza e concluí
que ela nasceu de um poema de Guerra Junqueiro que meu pai me leu: “O
melro”. Começa assim: “O melro, eu conheci-o. Era negro,
vibrante, luzidio, madrugador jovial. Logo de manhã cedo começava a
soltar dentre o arvoredo verdadeiras risadas de cristal”. É a
estória de um padre malvado. Ele tinha raiva do melro que cantava no
seu quintal porque, segundo ele, o melro comia as sementes que ele
semeava. Aí, numa manhã, ele encontrou o ninho do melro num
arbusto, cheio de filhotinhos. Lembrou-se da teologia: pecado
original, o pai pecou, todos os filhos pecaram, os filhos pagam pelos
pecados dos pais. Protegido pela doutrina divina, ele pegou os
minúsculos passarinhos e os trancou numa gaiola. Eles haveriam de
pagar pelo pecado do seu pai. Para saber a estória toda é preciso
ler o poema, que termina assim: “Há mais Deus com certeza nos
cardos secos de um rochedo nu que nessa bíblia antiga... Ó
natureza, a única bíblia verdadeira és tu!”. Eu chorava e
fiquei com raiva de padres, matadores de passarinhos.
Mas
eram muitos os jovens que eram mandados para os seminários por suas
famílias. Porque naqueles tempos os pobres só tinham dois caminhos
para dar educação aos seus filhos: ou a escola de cadetes ou o
seminário. Se a vontade dos pais prevalecesse, os filhos iriam para
a escola de cadetes, com suas fardas, botões dourados e sabres.
Muito mais bonitas que as batinas pretas. E mais másculas. Não
gostariam de ver os seus filhos vestidos de batina preta, falando com
voz de taquara rachada e fazendo gestos afrescalhados. As moças
preferiam os cadetes aos padres. “Se dependesse das mães não
haveria guerras”, disse Mário Quintana. “Mas as filhas
preferem os soldados...” Um filho oficial militar era uma
realização do sonho de um pai pobre.
Mas
com frequência as mães eram mais fortes. O filho mais amado, mais
chegado, era dedicado ao sacerdócio. Não conheço nenhum estudo
psicanalítico sobre o assunto, mas sustento a teoria de que o
sacerdócio era a solução do complexo de Édipo a contento das
mães: o filho querido seria sempre seu, ficaria a salvo das mulheres
por toda a vida, e o voto de castidade guardaria a sua virgindade. E,
como bonificação, havia a garantia de entrada no céu! Uma família
que vivia no fim do pastinho tinha um filho no seminário. De vez em
quando ele aparecia. E eu o via de longe, todo em negro, batina e
chapéu redondo.
Anunciaram
no grupo: “Hoje vai ter aula de catecismo...” . Fiquei gelado.
Nunca me defrontara com um padre face a face. Não sendo católico,
não sabia os gestos e rezas característicos da Igreja Católica. O
padre entrou, falou “Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo”. A
meninada respondeu em coro: “Pra sempre seja louvado”. Aí
começou a rezar uma Ave-Maria, todo mundo rezando junto, eu olhando
pra baixo pra disfarçar. Depois começou a ensinar fórmulas para
exorcizar inimigos fazendo cruzinha com a ponta do polegar na testa,
na boca e no peito, e dizendo “Pelo sinal da santa cruz, livra-nos
Deus, nosso senhor, dos nossos inimigos, em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, amém”. Eu não tinha inimigos, não tinha uso
para aqueles gestos e palavras de exorcismo. Fiquei esperando que ele
começasse a contar as parábolas de Jesus, porque era assim que
acontecia na Igreja Presbiteriana, mas ele não falou nada sobre
Jesus. Mas nos ensinou a batizar nenezinho moribundo, na ausência do
padre. Como era sabido, nenezinho que morria sem batismo não ia para
o céu. Devia faltar algo neles para que Deus não gostasse deles.
Ele voltou num outro dia convocando os meninos e meninas para a
primeira comunhão. Foi um alvoroço. Aí a confusão foi
interrompida por um menino, o Tião, que gritou: “O Rubes não, que
é pustestante, e o Estelino não, que é esprita...” . O padre
tinha dito na igreja que no centro espírita o Coisa-Ruim ficava
nadando o dia inteiro na “água sulfurítica”. Os padres viviam
espalhando medo. (Explicação: parece que no Centro Espírita havia
uma água abençoada chamada “fluídica”. O padre mudou o nome,
inventou a palavra “sulfurítica”, de “súlfur”, enxofre,
que, segundo aqueles que tiveram experiências pessoais com o Diabo,
é o cheiro de suas ventilações fedorentas.) Aí todo mundo parou,
espantado de que houvesse pessoas que não eram católicas, e todos
os olhos se fixaram em nós, o Estelino e eu, e eu fiquei vermelho de
vergonha, olhei para o chão, odiei o padre, e foi naquele momento
que virei protestante sem saber direito o que era, só pra dizer que
ando sozinho, na direção contrária da direção que todos seguiam.
“Não vou por aí...” . E até hoje continuo a andar na direção
contrária.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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