sábado, 20 de novembro de 2021

Quando Red vence, ela está sozinha


Quando Red vence, ela está sozinha.
Sangue engoma seu cabelo. Ela expira vapor na última noite desse mundo moribundo.
Foi divertido, ela pensa, mas o pensamento se azeda no cenário. Foi limpo, ao menos. Escalar os fios do tempo até o passado e se certificar de que ninguém sobrevive a essa batalha para bagunçar os futuros que sua Agência organizou — os futuros nos quais sua Agência governa, nos quais a própria Red é possível. Ela veio para amarrar esse filamento da história e queimá-lo até que derreta.
Ela segura um cadáver que já foi um homem, suas mãos enluvadas nas entranhas dele, os dedos agarrando a coluna de liga metálica. Ela solta, e o exoesqueleto cai sobre as rochas. Tecnologia tosca. Primitiva. De bronze a urânio empobrecido. Ele nunca teve chance. É para isso que Red existe.
Depois de uma missão, vem um silêncio grandioso e definitivo. Suas armas e armadura se recolhem para dentro dela como rosas no crepúsculo. Uma vez que as tiras de pseudopele se arranjam e se curam e a matéria programável de suas roupas se costura de volta, Red volta a se parecer vagamente com uma mulher.
Ela caminha pelo campo de batalha, rastreando, se certificando.
Ela venceu, sim, venceu. Tem certeza de que venceu. Não foi?
Ambos os exércitos estão mortos. Dois grandes impérios se ruíram ali, cada um agindo como um recife para o casco do outro. Foi isso o que ela veio fazer. De suas cinzas, outros se erguerão, mais apropriados aos fins de sua Agência. Mas ainda assim.
Havia outra pessoa em campo — não uma terráquea, como os cadáveres ancorados no tempo empilhados pelo caminho, mas uma jogadora de verdade. Alguém do outro time.
Poucos dos companheiros de Red teriam sentido aquela presença rival. Red só sabe porque é paciente, solitária, cuidadosa. Ela estudou para esse encontro. Ela o remodelou muitas vezes em sua mente. Quando naves não estavam onde deveriam estar, quando cápsulas de fuga que precisavam ter sido disparadas não foram, quando tiros ecoaram trinta segundos depois do que deveriam, ela notou.
Duas vezes é coincidência. Três vezes é ação inimiga.
Mas por quê? Red fez o que tinha ido fazer, pensa. Porém guerras são cheias de ações e consequências, cálculos e estranhos atratores, especialmente as guerras no tempo. Uma vida poupada pode ser mais valiosa para o outro lado do que todo o sangue que mancha as mãos de Red hoje. Uma fugitiva se torna uma rainha ou uma cientista ou, pior, uma poeta. Ou a filha dela se torna, ou uma contrabandista com quem ela troca de uniforme em algum porto espacial distante. E todo esse sangue por nada.
Matar fica mais fácil com a prática, em mecânica e em técnica. Mas ter matado nunca fica, para Red. Seus colegas agentes não sentem o mesmo, ou escondem melhor.
Não é comum que os jogadores de Jardim encontrem Red no mesmo campo de batalha, no mesmo tempo. Sombras e jogadas certeiras fazem mais o estilo deles. Mas tem uma jogadora que iria. Red a conhece, embora elas nunca tenham se encontrado. Cada jogador tem sua assinatura. Ela reconhece os padrões de audácia e risco.
Red pode estar enganada. Ela raramente está.
Sua inimiga se deleitaria com esse truque de mágica: distorcer o grande trabalho de matança de Red para servir a seus próprios fins. Mas suspeitar não é o bastante. Red precisa encontrar provas.
Então ela caminha a esmo pelo campo mortuário da vitória e procura as sementes de sua derrota.
Um tremor passa pelo solo — não o chame de terra. O planeta morre. Grilos cricrilam. Grilos sobrevivem, por enquanto, entre as naves espatifadas e os corpos quebrados nesse prado caindo aos pedaços. Musgo-prateado devora o aço, e flores violeta entopem as armas mortas. Se o planeta durasse o suficiente, as vinhas brotando das bocas dos cadáveres dariam frutos.
Nenhuma das duas coisas vai acontecer.
Em um vão do solo arrasado, ela encontra a carta.
Está fora de lugar. Ali deveria haver corpos empilhados entre os destroços de naves que um dia percorreram as estrelas. Ali deveria haver a morte e a sujeira e o sangue de uma operação bem-sucedida. Deveria haver luas se desintegrando lá em cima, naves incendiadas em órbita.
Não deveria haver uma folha de papel cor de creme, limpo, exceto por uma única linha longa e repuxada escrita à mão: Queime antes de ler.
Red gosta de sentir. É um fetiche. Agora ela sente medo. E avidez.
Ela estava certa.
Procura nas sombras por sua caçadora, sua presa. Ela ouve um som infrassônico, ultrassônico. Anseia pelo contato, por uma nova batalha, mais digna, mas ela está sozinha com os cadáveres e os estilhaços e a carta que sua inimiga deixou.
É uma armadilha, é claro.
Vinhas crescem em cavidades oculares, se retorcem através de escotilhas quebradas. Flocos de ferrugem caem como neve. Metal range, pressionado, e se estilhaça.
É uma armadilha. Veneno seria grosseiro, mas ela não fareja nada. Talvez um noovírus na mensagem — para subverter seus pensamentos, semear um gatilho, ou meramente manchar a reputação de Red aos olhos de sua Comandante. Se ler essa carta, talvez ela seja gravada, exposta, chantageada para se tornar uma agente dupla. A inimiga é traiçoeira. Mesmo que isso seja apenas a primeira manobra de um jogo mais longo, ao ler, Red se arrisca à ira da Comandante, caso ela descubra, se arrisca a parecer uma traidora, nunca tendo sido tão leal.
A jogada mais esperta e cautelosa seria ir embora. Mas a carta é uma aposta feita, e Red precisa saber.
Ela encontra um isqueiro no bolso de um soldado morto. Chamas se acendem no fundo dos seus olhos. Fagulhas sobem, cinzas caem, e letras surgem no papel, na mesma caligrafia rebuscada.
Red contorce a boca: um esgar, uma máscara, o sorriso de uma caçadora.
A carta queima seus dedos enquanto a assinatura toma forma. Ela deixa as cinzas caírem.
Red então vai embora, tendo ao mesmo tempo cumprido e falhado na missão, e escala o fio em direção à sua casa, para o futuro trançado que sua Agência formata e protege. Nenhum vestígio dela permanece, salvo cinzas, ruínas e milhões de mortos.
O planeta espera por seu fim. Vinhas vivem, sim, e grilos, embora não haja ninguém para vê-los a não ser as caveiras.
Nuvens de chuva ameaçam. Raios vicejam, e o campo de batalha fica monocromático. Trovões ecoam. Choverá essa noite, para lavar o vidro que era o chão, se o planeta durar esse tanto.
As cinzas da carta morrem.
A sombra de uma aeronave se retorce. Vazia, se expande.
Uma rastreadora emerge daquela sombra, carregando outras sombras com ela.
Em silêncio, a rastreadora observa os resultados. Ela não chora, até onde se vê. Ela caminha pelos escombros, sobre os corpos, profissional: cria uma espiral de vento, certificando-se, com artes longamente praticadas, de que ninguém a seguiu pelas trilhas silenciosas que percorreu para chegar nesse lugar.
O chão treme e se destroça.
Ela alcança o que antes era uma carta. Ajoelhando-se, remexe nas cinzas. Uma faísca sobe e ela a toma em sua mão.
Ela pega uma fina plaqueta branca de uma bolsa ao seu lado e a enfia sob as cinzas, espalhando-as contra a superfície branca. Retira sua luva e corta o dedo. Sangue arco-íris jorra e cai, respingando no cinza.
Ela mistura seu sangue nas cinzas para fazer uma massa, mistura essa massa, estica. Ao redor, a decomposição continua. As naves de guerra se tornam colinas de musgo. Armas enormes se quebram.
Ela aplica luzes áureas e sons singulares. Ela dobra o tempo.
O mundo se parte ao meio.
As cinzas se tornam um pedaço de papel, com tinta safira em uma caligrafia tortuosa no alto.
Essa carta deveria ser lida uma vez, depois destruída.
Nos momentos que antecedem o fim do mundo, ela lê de novo.

Amal El-Mohtar & Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo

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