Quando o carrilhão tocava a música das
8h 45 da noite era servido chá num bule de prata, coberto com um
abafador. Eu começava a ficar ansioso. Estava chegando a hora do
pânico, quando o carrilhão bateria 9 horas. As 9 horas provocavam
pânico em todos, que se apressavam em ir para a cama como se uma
grande catástrofe fosse acontecer caso se estivesse perambulando
pelo sobrado às 9h:15. O curioso é que esse pânico das 9 horas não
era obsessão apenas dos moradores do sobrado. A cidade inteira tinha
medo das 9. A praça estava cheia de moços e moças que faziam o
“rela”. “Rela” era o nome que se dava às caminhadas dos
moços e das moças, em círculos, sempre em direção contrária,
para poder “relar” uns nos outros. Mas às 9 horas,
repentinamente, de um golpe só, a praça ficava vazia. Explicaram-me
que esse pânico era um resíduo de tempos muito antigos, quando
havia uma ronda policial que, às 9 da noite, saía para prender os
vagabundos. Porque somente vagabundos poderiam estar perambulando
pelas ruas àquelas altas horas da noite.
Eu tinha de ir para a cama. As luzes se
apagariam. Mas eu não queria ir para a cama. Não queria dormir.
Todo mundo dormiria. Só eu ficaria acordado ouvindo o ressonar e o
roncar dos dormentes. E aquele maldito carrilhão batendo as mesmas
músicas a cada quinze minutos... Batido um quarto de hora eu ficava
à espera do próximo. Até que o cansaço me vencia. Eu tinha medo
da solidão da insônia. O que incomoda na solidão da insônia não
é o estar acordado. É saber que todos os outros estão dormindo. É
como se fôssemos a única pessoa viva num mundo onde todos dormem.
Quando o carrilhão batia 5h:30 eu já
estava acordado, pronto para as maravilhas do dia. Era uma
felicidade. O sol estava acabando de nascer. Eu me levantava em
silêncio, para não acordar ninguém. Se alguém acordasse daria
logo a ordem para que eu voltasse para a cama...
Me vestia, abria a porta do quarto
vagarosamente, atravessava a sala vazia, o corredor, descia os dois
lances de escada, pegava o outro corredor, tirava as trancas de ferro
da porta, e saía para a praça deserta. Eram momentos de
indescritível felicidade. Eu e a natureza, sem nenhuma presença
humana. Assentava-me num banco da praça e lá ficava, pernas
penduradas, balançando... Os pássaros-pretos enchiam a manhã com a
sua alegria. Faziam uma algazarra nas árvores. As palmeiras, a
tipuana velhíssima, os ipês, as acácias, as murtas, o pequeno
lago... Depois andava pelas ruas desertas. Naqueles tempos meu nariz
era sensível e eu podia ir adivinhando as árvores que havia atrás
dos muros de adobe: jasmim, flor do imperador, jabuticabeiras em
flor, laranjeiras... Alberto Caeiro diz que “pensar é estar doente
dos olhos”. Aumento: pensar é estar com os sentidos doentes. O
pensamento é uma estática elétrica que perturba a pureza da
imagem, seja sonora (o canto dos pássaros), visual (o horizonte se
avermelhando), olfativa (o perfume da murta) ou tátil (o vento frio
na pele). Na minha cabeça não havia lugar para pensamentos. Eu só
gozava...
Passados muitos anos, voltando a Lavras
de uma viagem, olhei para o outro lado da praça, através das
árvores. Queria ver o sobrado. Mas, no seu lugar, havia um vazio, um
monte de escombros fumegantes. Fora incendiado por um louco. De suas
ruínas se desprendia um delicioso cheiro, os barrotes de pau-bálsamo
ainda estavam fumegando. Esse louco, seu Lucílio, ainda pôs fogo em
várias outras casas antigas. Descoberto e preso, ele alegou que
fizera aquilo por amor a Lavras. Detestava as casas velhas. Lavras
precisava se modernizar. No lugar do sobrado ergue-se hoje o Banco do
Brasil. Se tivesse havido sensibilidade histórica, o banco poderia
ter erigido a sua sede nos moldes do velho casarão colonial. Mas não
é esse o destino de todas as coisas?
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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