sábado, 20 de novembro de 2021

O relógio

          Quando o carrilhão tocava a música das 8h 45 da noite era servido chá num bule de prata, coberto com um abafador. Eu começava a ficar ansioso. Estava chegando a hora do pânico, quando o carrilhão bateria 9 horas. As 9 horas provocavam pânico em todos, que se apressavam em ir para a cama como se uma grande catástrofe fosse acontecer caso se estivesse perambulando pelo sobrado às 9h:15. O curioso é que esse pânico das 9 horas não era obsessão apenas dos moradores do sobrado. A cidade inteira tinha medo das 9. A praça estava cheia de moços e moças que faziam o “rela”. “Rela” era o nome que se dava às caminhadas dos moços e das moças, em círculos, sempre em direção contrária, para poder “relar” uns nos outros. Mas às 9 horas, repentinamente, de um golpe só, a praça ficava vazia. Explicaram-me que esse pânico era um resíduo de tempos muito antigos, quando havia uma ronda policial que, às 9 da noite, saía para prender os vagabundos. Porque somente vagabundos poderiam estar perambulando pelas ruas àquelas altas horas da noite.
Eu tinha de ir para a cama. As luzes se apagariam. Mas eu não queria ir para a cama. Não queria dormir. Todo mundo dormiria. Só eu ficaria acordado ouvindo o ressonar e o roncar dos dormentes. E aquele maldito carrilhão batendo as mesmas músicas a cada quinze minutos... Batido um quarto de hora eu ficava à espera do próximo. Até que o cansaço me vencia. Eu tinha medo da solidão da insônia. O que incomoda na solidão da insônia não é o estar acordado. É saber que todos os outros estão dormindo. É como se fôssemos a única pessoa viva num mundo onde todos dormem.
Quando o carrilhão batia 5h:30 eu já estava acordado, pronto para as maravilhas do dia. Era uma felicidade. O sol estava acabando de nascer. Eu me levantava em silêncio, para não acordar ninguém. Se alguém acordasse daria logo a ordem para que eu voltasse para a cama...
Me vestia, abria a porta do quarto vagarosamente, atravessava a sala vazia, o corredor, descia os dois lances de escada, pegava o outro corredor, tirava as trancas de ferro da porta, e saía para a praça deserta. Eram momentos de indescritível felicidade. Eu e a natureza, sem nenhuma presença humana. Assentava-me num banco da praça e lá ficava, pernas penduradas, balançando... Os pássaros-pretos enchiam a manhã com a sua alegria. Faziam uma algazarra nas árvores. As palmeiras, a tipuana velhíssima, os ipês, as acácias, as murtas, o pequeno lago... Depois andava pelas ruas desertas. Naqueles tempos meu nariz era sensível e eu podia ir adivinhando as árvores que havia atrás dos muros de adobe: jasmim, flor do imperador, jabuticabeiras em flor, laranjeiras... Alberto Caeiro diz que “pensar é estar doente dos olhos”. Aumento: pensar é estar com os sentidos doentes. O pensamento é uma estática elétrica que perturba a pureza da imagem, seja sonora (o canto dos pássaros), visual (o horizonte se avermelhando), olfativa (o perfume da murta) ou tátil (o vento frio na pele). Na minha cabeça não havia lugar para pensamentos. Eu só gozava...

Passados muitos anos, voltando a Lavras de uma viagem, olhei para o outro lado da praça, através das árvores. Queria ver o sobrado. Mas, no seu lugar, havia um vazio, um monte de escombros fumegantes. Fora incendiado por um louco. De suas ruínas se desprendia um delicioso cheiro, os barrotes de pau-bálsamo ainda estavam fumegando. Esse louco, seu Lucílio, ainda pôs fogo em várias outras casas antigas. Descoberto e preso, ele alegou que fizera aquilo por amor a Lavras. Detestava as casas velhas. Lavras precisava se modernizar. No lugar do sobrado ergue-se hoje o Banco do Brasil. Se tivesse havido sensibilidade histórica, o banco poderia ter erigido a sua sede nos moldes do velho casarão colonial. Mas não é esse o destino de todas as coisas?

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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