terça-feira, 23 de novembro de 2021

O som do rugido da onça | III


A mulher se reclina. Seus olhos e seus ouvidos se colocam a postos. Sua boca aberta recebe o hálito que atravessa as folhas das árvores, os animais, que tocara a pele de todas as mulheres antes dela. Ela está no centro da maloca, e a maloca é o ventre do universo, e a barriga dela, o centro do mundo. Sobre o telhado, o céu rebrilha de estrelas, crânios muito alvos faiscando eternamente. Então ela começa a gritar seu suor de seiva e sangue. O trabalho dos ossos do quadril se afastando como pedras que há muito assentadas não resistem à imposição violenta das águas. Ela sente as dores em ondas que vão e vêm em fluxo e refluxo, e enfim seu canal se dilata totalmente para a passagem dos rios, primeiro o rio que traz um menino, depois o rio que traz uma menina.
São todos os rios que chegam naquela noite, todos os braços e pernas do Japurá, todas as águas do Paranáhuazú, cujo nome ancestral é Deus que fala todas as línguas . E, conforme o trabalho das dores rasguem o breu, nascem a menina e seu irmão. Ela, uma criança mirrada, mas de olhos bem abertos e com uma pequenina boca vermelha como o fruto do buritizeiro e, por esse motivo, é chamada de Iñe-e pelo velho avô, o xamã. Está destinada a crescer e a aprender os ritos das comidas, os usos da açacurana, o preparo do curare. O irmão, em tudo igual e diverso dela, nasce destinado à guerra e, por seu grito, como que de trovão, Tsittsi é chamado. E recebe, do velho avô, um dente de onça do seu colar. A onça, sim, inimiga do seu povo, mas a quem devem temor e respeito por ser a Dona da Caça, aquela que lhes permite viver em seus domínios.
Iñe-e cresce escutando a história do seu nascimento e do nascimento do irmão fluindo, como a água de onde veio, da boca de sua mãe. É uma das histórias que mais lhe agradam ouvir, mais do que a de Juziñamui, o devorador de gente, mais do que as histórias do quebradão das antas, mais do que o episódio da tartaruga que chorava por não poder chupar os testículos do tuxaua que havia morrido e que arrancava risadas de todos os ouvintes, moços e velhos. Escuta também como surgiu a desconfiança que o pai passou a ter dela quando, ainda muito pequena, se desgarrou das mulheres que preparavam a yuca e ficou horas desaparecida. Somente a encontraram no fim da tarde. Quando as esperanças de vê-la viva novamente se esvaíam, os parentes a avistaram à margem do rio, em companhia de uma enorme onça; Iñe-e de cócoras, Tipai uu, a onça, a seu lado, a cauda batendo ritmadamente de um lado para o outro, como quem espera, como quem vela, tendo deixado a criança intacta e segura até a chegada do seu povo, quando então foi embora. Naquele dia, o entendimento do pai dizia que a filha, por haver se ajuntado em pacto com a inimiga, mesmo sem ter ciência do que havia de fato acontecido, era agora inimiga como a onça. Muito embora o velho avô a tenha benzido em proteção dos donos dos animais no instante em que nascera, o pai acreditava que o evento era um sinal de maldição.
Ela um dia se transforma e nos devora a todos, como Nonueteima se transformou em jaguar, acusou o pai certa vez, deixando a mãe entre irritada e amedrontada pelo destino que via se desenhar para a filha. Para o avô, aquele ódio não estava certo, o encontro da menina com a onça cintilava como uma dádiva quando ele consultou a sabedoria da coca a respeito. Mas mesmo isso não conseguia retirar a cisma do coração do filho, cujas fibras embranqueciam a cada contato com os estrangeiros, o que era, de fato, e o velho sabia, uma verdadeira desgraça.
Alheia a esses embates, a menina ia seguindo a vontade de crescer e, ademais, a cisma ou a raiva do pai eram inconstantes. Ora recrudescendo com uma nova implicância, ora adormecendo como se nunca tivesse existido. Ela não sabia se gostava de ter sido onçada por Tipai uu, mas em seu coração sabia que, por outro lado, não desgostava. Onça voa de um grande salto, onça engana os melhores caçadores, onça esturra enchendo a mata de reverência e temor, onça enterra os dentes no cangote do inimigo. Ela pensava, em pensamento desarrumado de criança pequena, pensamento que ia guardando muito bem guardado, que talvez algum dia haveria de ter alguma serventia ter feito pacto com onça.
Quando a menina completou sete anos, o avô decidiu levá-la às festas de Yurupari, o Dono das Frutas, quando meninos e meninas são colocados diante do Esawámina, para talvez serem escolhidos em uma missão de grande responsabilidade. Entre o povo dela, meninas e meninos tinham a mesma honra de ser escolhidos. Assim, ao som das trompas e flautas, Iñe-e foi uma das crianças eleitas, e por isso deveria mirar Yurupari por sete vezes para que, quando completasse doze anos, se convertesse em curadora do corpo e do espírito, vendo aquilo que ninguém mais poderia enxergar.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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