A primeira noite fora do porto foi
iluminada, de luar; e a fragata deslizou pelas águas com todas as
suas baterias.
Era meu quarto de vigia na gávea; e ali
me acomodei da melhor maneira possível, tendo comigo meus
companheiros de posto. Dos demais marinheiros, nada sei; esse, porém,
era um nobre grupo de marujos, certamente digno da apresentação ao
leitor.
Acima de todos, estava Jack Chase, nosso
valoroso primeiro capitão da gávea. Ele era britânico e o mais
confiável dos homens; alto, sólido e forte, de olhos claros e bem
abertos, uma bela testa larga e uma farta barba castanha. Homem algum
jamais teve coração maior ou mais cheio de coragem. Era querido
pelos marinheiros e admirado pelos oficiais; e, mesmo quando o
capitão lhe falava, ouvia-se em sua voz um leve ar de respeito. Jack
era um homem franco e fascinante.
Não se podia ter melhor companhia, fosse
no castelo de proa, fosse num bar; nenhum outro homem lhe contaria
histórias como as dele ou cantaria como ele; tampouco demonstraria
tamanha prontidão no cumprimento de sua função. De fato, só lhe
faltava uma coisa — um dedo da mão esquerda, dedo que perdera na
grande Batalha de Navarino.
Ele tinha em elevada conta a profissão
de marujo; e, sendo profundamente versado em todas as coisas
relativas a um navio de guerra, todos, sem exceção, encontravam
nele um oráculo. A gávea do mastro principal, a qual presidia, era
uma sorte de oráculo de Delfos; ao qual muitos peregrinos ascendiam
com o intuito de dirimir diferenças e dificuldades.
Tão abundante era o ar de simpatia e bom
senso que emanava daquele homem que não gostar dele era o mesmo que
se declarar um rematado mau-caráter. Eu agradecia aos céus a bela
dádiva de terem me colocado ao seu lado (ainda que abaixo) na
fragata; e desde o início Jack e eu nos fizemos amigos leais.
Onde quer que esteja agora, querido Jack,
singrando o azul das ondas, leve consigo minha mais alta estima; e
que Deus o abençoe aonde quer que vá!
Jack era um cavalheiro. Se sua mão era
calejada, o mesmo não se podia dizer de seu coração, como sói aos
que têm as palmas delicadas. Seus modos eram leves e tranquilos;
nada da violência intempestiva, tão comum nas gentes do mar; era
com educação e cortesia que ele se dirigia a você, ainda que fosse
apenas para pedir-lhe de empréstimo a faca. Jack conhecia toda a
poesia de Byron e toda a prosa de Scott; conversava sobre Rob Roy,
Don Juan e Pelham, Macbeth e Ulisses; mas, acima de tudo, era ardente
apreciador de Camões. Era capaz de declamar trechos inteiros de Os
lusíadas no original. Onde obtivera tão maravilhosos saberes,
não cabe a mim, seu humilde subordinado, dizê-lo. Basta afirmar que
eram tantos seus conhecimentos, e tantas as línguas em que travava
conversa, que a ele mais do que cabia a frase de Carlos v: “vale
por cinco homens aquele que fala cinco línguas”. Mas Jack era
melhor do que cem meros mortais; Jack era uma falange, um exército
inteiro; tinha a força de mil; Jack estaria à altura da sala de
estar da rainha da Inglaterra; Jack deve ter sido filho da aventura
de algum almirante inglês da Esquadra Azul. Mais belo exemplo da
raça insular dos ingleses não poderia ter sido encontrado na abadia
de Westminster num dia de coroação.
Sua postura como um todo contrastava
fortemente com a de um dos capitães da gávea de proa. Tal homem,
embora marujo competente, era um bom exemplo daqueles ingleses
insuportáveis que, preferindo por residência outros países ao seu,
ainda assim nos fartam com toda a arrogância de suas vaidades
nacionais e individuais combinadas. “Quando estava a bordo do
Audacious” — por um bom tempo, esse foi quase que invariavelmente
o preâmbulo dos mais ligeiros comentários do homem. Não raro é
costume da marujada dos navios de guerra, quando creem que alguma
coisa vai mal a bordo do navio, referir-se à última viagem que
fizeram quando, é claro, tudo se mostrara “na mais imaculada
ordem, digna de Bristol”. E, referindo-se ao Audacious (nome
bastante expressivo, a propósito), o capitão da gávea de proa
remontava a um navio da Marinha britânica no qual tivera a honra de
servir. Tão sucessivas eram suas alusões àquela embarcação de
tão amistoso nome que, por fim, consolidou-se entre a marujada a
opinião de que o Audacious era um verdadeiro tédio. Numa
tarde quente, durante uma calmaria, quando o capitão da gávea de
proa, a exemplo de muitos outros, estava desocupado e bocejando no
espardeque, Jack Chase, seu conterrâneo, aproximou-se dele e,
apontando a sua boca aberta, perguntou-lhe educadamente se era
daquele modo que se capturavam moscas no navio de Sua Majestade
britânica, o Audacious. Depois disso, nunca mais ouvimos
falar de tal embarcação.
As gáveas de uma fragata são bastante
espaçosas e confortáveis. Na parte de trás, são providas de um
cercado que as transforma numa espécie de varanda, bastante
agradável para uma noite tropical. De vinte a trinta convivas
poderiam estar ali confortavelmente reclinados sobre velas sem uso e
jaquetas. Tivemos ótimos momentos naquela gávea. Tínhamo-nos em
própria conta como os melhores marinheiros do navio; e das alturas
de nosso ninho etéreo literalmente olhávamos de cima os renegados
abaixo de nós, esgueirando-se pelo convés em meio aos canhões.
De maneira geral, alimentávamos aquele
sentimento de esprit de corps, sempre presente, em maior ou
menor medida, nos vários segmentos da tripulação de uma fragata.
Nós, homens da gávea principal, éramos sem qualquer reserva
irmãos, empenhando-nos uns pelos outros com toda a liberdade do
mundo.
Não demorei a descobrir, contudo, sendo
membro dessa fraternidade de gentis amigos, que Jack Chase, nosso
capitão, tinha — como é próprio aos oráculos, bem como aos
preferidos de toda a gente — o que o assemelhasse aos ditadores;
não por intransigência ou perversidade, mas pelo curioso interesse
egoísta de emendar-nos os modos e sofisticar-nos o gosto, o que
fazia para que pudéssemos conferir crédito ao nosso tutor.
Ele fazia com que todos usássemos nossos
chapéus em certa inclinação, instruía-nos quanto ao laço de
nossos lenços de pescoço e ralhava contra as vulgares calças de
brim; além de nos dar lições náuticas e solenemente suplicar-nos
que jamais aceitássemos a companhia de qualquer marinheiro que
suspeitássemos ter servido em navio baleeiro. Cultivava contra todos
os baleeiros, de fato, a mais absoluta aversão, de um verdadeiro
marinheiro de navio de guerra — como o pobre Tubbs bem sabia.
Tubbs pertencia à guarda de popa. Era
alto e esguio, natural de Martha’s Vineyard; e falava sem parar de
ostagas, Nantucket, espermacete, Japão e botes avariados. Nada
parecia capaz de silenciá-lo; e suas comparações eram
invariavelmente ofensivas.
Pois bem, Jack abominava Tubbs do mais
profundo de sua alma. Dizia ser vulgar, arrivista — o Diabo que o
carregue, Tubbs já serviu num navio baleeiro. Mas, como muitos
homens que estiveram onde você jamais esteve, ou viram o que
você jamais viu, Tubbs, no que acercava suas experiências
baleeiras, afetava absoluto desprezo por Jack, como Jack por ele; e
era isso que tanto enervava nosso nobre capitão.
Certa noite, com alguma malícia no
olhar, Jack ordenou que eu descesse e convidasse Tubbs à gávea para
uma conversa. Lisonjeado por tamanha honra — pois éramos de certa
forma desdenhosos, e não estendíamos convites a todos —, Tubbs
rapidamente subiu pelo cordame, parecendo um tanto incomodado ao
ver-se na augusta presença dos homens do quarto de vigília da gávea
principal. Os modos corteses de Jack logo lhe aliviaram o
constrangimento; porém, para alguns tipos deste mundo é
simplesmente inútil ser cortês. Tubbs pertencia a essa categoria de
homem. Tão logo o palhaço viu-se à vontade, lançou-se, como de
costume, aos mais extraordinários elogios aos baleeiros; declarando
que apenas os baleeiros mereciam o nome de marinheiros. Jack aguentou
por algum tempo; mas quando Tubbs passou às críticas contra os
navios de guerra e, em especial, contra os homens da gávea grande,
aquilo foi tão aviltante e descabido que Jack avançou contra Tubbs
como a bala de um canhão.
“Ora, seu nantucketense pretensioso!
Saco de banha de baleia! Comedor de carniça! Você quer rebaixar um
navio de guerra? Ora, seu tipinho à toa, um navio de guerra está
para um baleeiro como uma metrópole para uma cidadezinha, para um
vilarejo de fim de mundo. Este, sim, é o lugar da vida e da
aventura; este é o lugar de ser cortês e alegre. E o que
você conhecia dessas coisas, seu palhaço, antes de vir a bordo? O
que você sabia da coberta dos canhões, ou da coberta das macas, ou
da revista ao redor do cabrestante, ou dos exercícios de posto, ou
do apito para o jantar? Você já havia sido convocado ao grogue, sua
bola de banha fervente? Já havia passado o inverno em Maó? Sabia o
que era ‘amarrar e guardar’? Ora, de que valem as ladainhas de um
marinheiro mercante em viagem à China atrás de chá, ou às Índias
atrás de açúcar, e às Shetlands atrás de pele de foca… de que
valem essas ladainhas, Tubbs, perto da vida elevada de um navio de
guerra? Ora, sua bigota! Naveguei com lordes e marqueses no comando;
e o rei das Duas Sicílias passou por mim, eu de pé ao lado do meu
canhão. Bah! Você está cheio de piques de vante e de castelos de
proa; conhece mesmo só ganchos e talhas; sua ambição jamais passou
da matança de porcos, que, em minha opinião, é o que melhor define
a caça à baleia! Marinheiros de topo, digam-me se este Tubbs não
passa de uma afronta a estas boas tábuas de carvalho, um vil
profanador deste mar três vezes sagrado, quando transforma seu
navio, meus caros, num caldeirão de banha, e o oceano num chiqueiro
de baleias? Saia, desgraçado, canalha sem Deus! Atire-o para longe
da gávea, Jaqueta Branca!”
Mas não precisei me empenhar. Tubbs,
perplexo diante de tamanha explosão, já descia rapidamente pelo
cordame.
Esse arroubo da parte de meu nobre amigo
Jack me fez tremer, a despeito de meu traje forrado; e me levou a
erguer os olhos devotos aos céus por não ter, em má hora,
divulgado o fato de eu próprio ter servido num navio baleeiro; pois,
tendo previamente observado o preconceito dos homens de fragata em
relação àquela muito envilecida categoria de marinheiros,
sabiamente me contive no tocante a botes avariados na costa do Japão.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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