sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Viver a vida ou registrá-la nos celulares? Essa é a nova questão

De alguns anos para cá, uma transformação profunda vem ocorrendo em nossas vidas, mesmo que poucos reflitam sobre ela. Com a rápida evolução dos celulares, ficou tão fácil capturar imagens da vida, que o que antes era complicado e oneroso – comprar um filme fotográfico, levar a câmera a tiracolo, revelar o filme, pagar, voltar para pegar as fotos reveladas – hoje é algo que todo mundo (ou quase) pode fazer. Tudo é devidamente registrado, do mais significativo ao mais trivial. Cada um de nós é a estrela principal do grande filme da nossa vida, e capturar os momentos que julgamos importantes é construir e registrar, aos poucos, essa narrativa pessoal.
O filme da sua vida vive, virtualmente, nas redes sociais: no YouTube, alguns vídeos viram “virais”, atingindo milhares e até milhões de pessoas em horas. Cachorros salvando animais que se afogam, aviões em pane, jogadores de videogame seguidos por adolescentes do mundo inteiro, cenas variadas da vida de indivíduos – cômicas e trágicas – são compartilhadas globalmente. Por um lado, isso faz sentido: nossas vidas são importantes, e queremos dividi-las, ser vistos e apreciados, tanto pelos amigos quanto por estranhos. Mas, por outro lado, essa compulsão de capturar a vida tecnologicamente acaba por nos separar dela, criando um distanciamento do momento, da experiência visceral de estarmos vivos.
Vivemos mais para mostrar aos outros as nossas vidas do que para apreciá-las a cada momento. Essa transição começou antes dos celulares. Algo ocorreu entre o diário pessoal que trancávamos na gaveta e a câmera de vídeo portátil. Por exemplo, em junho de 2001, levei um grupo de ex-alunos da minha universidade num cruzeiro para observar um eclipse total do Sol na África.
No navio, encontrei vários “caçadores de eclipse”, pessoas que viajam o mundo atrás de eclipses. Faz sentido, visto que poucos fenômenos naturais são tão espetaculares, capazes de despertar emoções tão profundas. (No meu livro O fim da Terra e do Céu, conto essa história em detalhe.)
Durante alguns minutos, o mundo se transforma, o dia vira noite, o Sol coberto pelo disco da Lua, cercado pelos raios difusos da corona. Para vivenciar isso, temos que olhar para o céu com foco total, nos entregar às emoções do momento. Mas o que vi, quando o eclipse ia começar, foi o convés do navio repleto de câmeras e tripés, as pessoas afoitas para fotografar e gravar o evento. As pessoas escolheram vivenciar esse momento tão raro e especial através de lentes e filtros, em vez de vivê-lo diretamente, olhos grudados no céu.
Fiquei chocado, especialmente porque o navio tinha fotógrafos profissionais que iriam dar suas fotos para os passageiros. Mas as pessoas queriam as suas fotos e vídeos, mesmo sabendo que não seriam tão boas quanto as dos profissionais. Participei de dois outros eclipses, e é sempre a mesma coisa. As pessoas optam por capturar a realidade através de uma máquina, diluindo a emoção do momento. Com os celulares e a mídia social, ficou infinitamente mais fácil arquivar e distribuir imagens. O alcance é potencialmente enorme, e o nível de gratificação mensurável (quantos “likes” uma foto ou vídeo ganha).
Essencialmente, a vida moderna se transformou num evento social compartilhável. Claro que existe um lado positivo disso tudo. Queremos – e devemos – celebrar momentos significativos, dividindo-os com pessoas queridas e próximas. O problema começa quando a ânsia de registrar o momento ofusca a experiência de vivenciá-lo. Músicos e comediantes reclamam que não podem ver seu público, “apenas um mar de iPhones e iPads”. Vi isso num show dos Tribalistas a que assisti em fevereiro de 2019 em Boston.
Algumas celebridades estão até proibindo o uso de celulares em seus casamentos, exigindo a presença concreta, e não virtual, de seus convidados. Algo semelhante ocorre com palestras e aulas que usam PowerPoint. Assim que a tela se ilumina, os olhares focam nela, e o apresentador vira uma voz solta no espaço, incapaz de criar uma relação direta com a audiência. Por isso, tendo a usar essas tecnologias minimamente hoje em dia. Sem querer ser muito nostálgico (mas sendo), nada suplanta o contato direto, o olho no olho, o estar presente no momento, com a família ou os amigos, e mesmo sozinho. Os celulares são incríveis, claro. Mas não deveriam definir como vivemos nossas vidas - apenas complementá-las.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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