De alguns anos para cá, uma
transformação profunda vem ocorrendo em nossas vidas, mesmo que
poucos reflitam sobre ela. Com a rápida evolução dos celulares,
ficou tão fácil capturar imagens da vida, que o que antes era
complicado e oneroso – comprar um filme fotográfico, levar a
câmera a tiracolo, revelar o filme, pagar, voltar para pegar as
fotos reveladas – hoje é algo que todo mundo (ou quase) pode
fazer. Tudo é devidamente registrado, do mais significativo ao mais
trivial. Cada um de nós é a estrela principal do grande filme da
nossa vida, e capturar os momentos que julgamos importantes é
construir e registrar, aos poucos, essa narrativa pessoal.
O filme da sua vida vive, virtualmente,
nas redes sociais: no YouTube, alguns vídeos viram “virais”,
atingindo milhares e até milhões de pessoas em horas. Cachorros
salvando animais que se afogam, aviões em pane, jogadores de
videogame seguidos por adolescentes do mundo inteiro, cenas variadas
da vida de indivíduos – cômicas e trágicas – são
compartilhadas globalmente. Por um lado, isso faz sentido: nossas
vidas são importantes, e queremos dividi-las, ser vistos e
apreciados, tanto pelos amigos quanto por estranhos. Mas, por outro
lado, essa compulsão de capturar a vida tecnologicamente acaba por
nos separar dela, criando um distanciamento do momento, da
experiência visceral de estarmos vivos.
Vivemos mais para mostrar aos outros as
nossas vidas do que para apreciá-las a cada momento. Essa transição
começou antes dos celulares. Algo ocorreu entre o diário pessoal
que trancávamos na gaveta e a câmera de vídeo portátil. Por
exemplo, em junho de 2001, levei um grupo de ex-alunos da minha
universidade num cruzeiro para observar um eclipse total do Sol na
África.
No navio, encontrei vários “caçadores
de eclipse”, pessoas que viajam o mundo atrás de eclipses. Faz
sentido, visto que poucos fenômenos naturais são tão
espetaculares, capazes de despertar emoções tão profundas. (No meu
livro O fim da Terra e do Céu, conto essa história em
detalhe.)
Durante alguns minutos, o mundo se
transforma, o dia vira noite, o Sol coberto pelo disco da Lua,
cercado pelos raios difusos da corona. Para vivenciar isso, temos que
olhar para o céu com foco total, nos entregar às emoções do
momento. Mas o que vi, quando o eclipse ia começar, foi o convés do
navio repleto de câmeras e tripés, as pessoas afoitas para
fotografar e gravar o evento. As pessoas escolheram vivenciar esse
momento tão raro e especial através de lentes e filtros, em vez de
vivê-lo diretamente, olhos grudados no céu.
Fiquei chocado, especialmente porque o
navio tinha fotógrafos profissionais que iriam dar suas fotos para
os passageiros. Mas as pessoas queriam as suas fotos e vídeos, mesmo
sabendo que não seriam tão boas quanto as dos profissionais.
Participei de dois outros eclipses, e é sempre a mesma coisa. As
pessoas optam por capturar a realidade através de uma máquina,
diluindo a emoção do momento. Com os celulares e a mídia social,
ficou infinitamente mais fácil arquivar e distribuir imagens. O
alcance é potencialmente enorme, e o nível de gratificação
mensurável (quantos “likes” uma foto ou vídeo ganha).
Essencialmente, a vida moderna se
transformou num evento social compartilhável. Claro que existe um
lado positivo disso tudo. Queremos – e devemos – celebrar
momentos significativos, dividindo-os com pessoas queridas e
próximas. O problema começa quando a ânsia de registrar o momento
ofusca a experiência de vivenciá-lo. Músicos e comediantes
reclamam que não podem ver seu público, “apenas um mar de iPhones
e iPads”. Vi isso num show dos Tribalistas a que assisti em
fevereiro de 2019 em Boston.
Algumas celebridades estão até
proibindo o uso de celulares em seus casamentos, exigindo a presença
concreta, e não virtual, de seus convidados. Algo semelhante ocorre
com palestras e aulas que usam PowerPoint. Assim que a tela se
ilumina, os olhares focam nela, e o apresentador vira uma voz solta
no espaço, incapaz de criar uma relação direta com a audiência.
Por isso, tendo a usar essas tecnologias minimamente hoje em dia. Sem
querer ser muito nostálgico (mas sendo), nada suplanta o contato
direto, o olho no olho, o estar presente no momento, com a família
ou os amigos, e mesmo sozinho. Os celulares são incríveis, claro.
Mas não deveriam definir como vivemos nossas vidas - apenas
complementá-las.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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