sábado, 23 de outubro de 2021

Torto Arado | 23

Você tem que tirar a mão de seu pai da cabeça, comadre. Precisa ir para outra casa de curador”, diziam as filhas de Tonha. Depois vieram Crispina e Crispiniana para falar o mesmo. E por último Maria Cabocla, ao passar pela porta da casa velha, onde eu havia me instalado desde que o pai adoeceu. Não dava importância ao que me diziam. Era a crença que meu próprio pai havia ajudado a difundir durante toda sua vida na fazenda, mas que não fazia mais qualquer sentido para mim. Como poderia tirar a mão de meu pai de minha cabeça? Meu pai se foi e a mão dele também. Nem que quisesse seguir à risca as crenças, ainda assim não tiraria sua mão de mim. Zeca Chapéu Grande era meu pai, guia pela terra e responsável pelo que sou. Seus filhos e filhas de santo seguiram dia após dia procurando casas de jarê conhecidas dos arredores para retirar sua mão de suas cabeças. Temiam estar sentenciados ao passamento. Eu não conseguia temer nada, nem temi as grosserias de Tobias, muito menos Aparecido avançando sobre mim. Não temia os vivos, não temeria os mortos. Chegaram mesmo a chorar à nossa porta dizendo que eu iria morrer. “Deixem Belonísia. Se ela não quer, ela não tira. Muito agradecida, mas vão cuidar da vida de vocês”, disse Salu mais de uma vez, até que o tempo passou e pareceram esquecer. “Se descuidarem”, pensei, “é capaz de vocês irem antes de mim”. Como iria rir se fossem antes de mim.
Minha mãe, abatida, passou um longo período sem conseguir ir para a roça. Também começou a beber cachaça, antes mesmo do meio-dia. Era estranho, nunca havia visto minha mãe beber numa festa ou celebração. Comecei a esconder as garrafas de aguardente, mas ela ia à feira e dava um jeito de trazer às escondidas, junto com os mantimentos. Entornava largos copos, como nunca havia feito, e dormia sentada na cadeira, até roncar. Esquecia a comida no fogo e parecia não sentir mais vontade de interagir com os netos. Nos poucos momentos em que ficava sóbria, pegava algo que havia pertencido ao nosso pai para dizer “olha o que deixou”, ou então “ele não conseguiu terminar de fazer isso”. As recordações tomavam conta de seu dia quando alguém aparecia pedindo ajuda para algum problema, acostumados que estavam a tratar suas mazelas com Zeca. Ela dizia que não poderia ajudar, que não era curadora. “Não vou mexer com coisas que não sei”, disse a Domingas enquanto abanava a lenha do fogão, “não nasci com o dom”.
A obra da casa que meu pai havia começado a levantar estava parada e passou meses assim, sem que ninguém se dispusesse a continuar. Não se sentiam autorizados. Minha mãe bateu o pé olhando para o mato que começava a crescer em volta da casa, “vou desmanchar aquela casa, não quero mais sair daqui”. “Essa casa está se desmanchando”, Bibiana relembrou, “talvez fosse melhor terminar a outra para mudar o quanto antes”. Minha mãe, que havia perdido qualquer vontade de mudança, fez valer sua vontade, “ninguém mexe, deixe o tempo tomar conta dela”.
Quando o sol se prolongou no horizonte trazendo de novo a estiagem, Salu passou um dia enferma na cama, ardendo de febre. Dona Tonha veio visitá-la. Ficaram as duas no quarto, conversando baixo. No dia seguinte, me disse que iria para Cachoeira, que estava entregue à bebida por obrigação que não cumpria dos encantados, que meu pai havia deixado. Dona Tonha a acompanharia. Considerou que naquele momento precisava retirar a mão do marido da cabeça. Partiu para encontrar o curador, e fiquei sozinha em casa. Retomei o movimento do roçado porque queria tentar fazer as coisas voltarem a parecer como antes. Pensava que continuar trabalhando era a única maneira de recordar meu pai de uma forma que não fosse mais tão doída. Me coloquei nas trilhas com meu irmão, e, de fato, arar a terra, plantar, colher, consertar cerca, foram me curando de sua ausência, da mesma maneira que haviam me curado da tristeza que senti ao deixar a casa para viver com Tobias. Da mesma forma de quando fiquei viúva: foi o que me sustentou nas terras da beira do Santo Antônio. Foi das coisas que nasceram de novo em minhas mãos que pensei sobre o rumo que tomaríamos sem a liderança de nosso pai. Como seria tudo sem as forças dos encantados, que por tanto tempo haviam estado entre nós.
Por último, Salu retornou à fazenda depois da viagem a Cachoeira e disse que iria terminar de construir a casa. Disse também que não triscaria mais em bebida. A decisão trouxe alívio. Em pouco tempo, a casa que meu pai havia deixado com a construção encaminhada ficou pronta. Limpamos o terreno do mato que havia crescido. Preparamos tudo para a mudança. O mesmo pai de santo que havia cuidado de minha mãe em Cachoeira veio até Água Negra para orientar a transferência de uma casa para outra. Na casa velha havia vivido um homem poderoso que movimentava energias entre o mundo dos vivos e dos mortos. Moveu sentimentos bons e ruins, curou a terra, curou pessoas, evocou espíritos da natureza. Então tudo que havia vivido, todo o movimento de seu mundo de fé estava pairando naquele espaço, e deveria ser encaminhado a um destino. Ela seria desmanchada. Retiraram portas, janelas e o junco que recobria o teto. O pai de santo bateu com ervas nas paredes e entoou cantigas que nunca havia escutado nas brincadeiras de jarê.
Se tiver alguma força nessa casa, a senhora vai querer, dona Salustiana? Para seguir a sina de seu marido?”, perguntou o velho. “Não”, respondeu sem hesitar, com olhos firmes no que o benzedor fazia. “Então, posso tomar para mim?”, parou com as folhas no ar enquanto acompanhava ao lado de minha mãe. “Pode”, foi o que respondeu.
O velho não tocou em nenhuma parede. Não retirou nenhuma forquilha. O tempo se incumbiu de desmanchar a casa antiga. Sem abrigar mais nossas vidas, parecia se deteriorar numa urgência própria da natureza que a envolvia. A cada chuva forte uma parede desmoronava e, por fim, o vento completou sua luta. A parede de terra, do barro que era o chão de Água Negra, voltou a ser terra de novo. Nasceram ervas e flores minúsculas em meio à umidade que surgia com o orvalho e com a chuva que caía quando era da vontade dos santos. Fiquei atenta a tudo o que acontecia, sabia que nada retornaria. Olhei com certo encantamento o tempo caminhando, indomável como um cavalo bravio.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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