sábado, 23 de outubro de 2021

A jaqueta

Não era uma jaqueta muito branca, mas branca o bastante, disso não resta dúvida, como se revela a seguir.
Eis como cheguei a ela.
Com nossa fragata ancorada em Callao, na costa peruana — último porto no Pacífico —, vi-me sem um “grego”, ou sobretudo de marinheiro. Como nos aproximávamos do fim de um cruzeiro de três anos, já não era possível comprar gabões com o comissário do almoxarife, e, tendo o navio por destino o cabo Horn, um substituto fazia-se indispensável. Empenhei-me dias a fio, então, na manufatura de um traje estapafúrdio, de invenção minha, para abrigar-me do clima intratável que logo se nos assomaria.
Não era mais do que uma blusa de uniforme, ou, para ser mais específico, um camisolão de brim branco, que, estendido sobre o convés, dobrei em dois na altura do peito e, produzindo uma extensão da abertura da gola, rasguei de cima a baixo — exatamente como se abririam os cadernos da mais recente novidade literária. Feito o corte, operou-se uma metamorfose a transcender quaisquer das relatadas por Ovídio. Pois, de súbito, fez-se do camisolão um casaco! Casaco, evidentemente, bem peculiar; de barra larga, digna de um quacre; gola caída e sem firmeza; um volume deselegante na altura dos punhos; e branco, claro, branco como uma mortalha. Posteriormente, ele quase se provou digno de tal comparação, como verá o leitor que seguir adiante.
Mas, valha-me Deus, amigo, que paletó de verão é esse capaz de enfrentar as intempéries do cabo Horn? Ele passaria muito bem por um elegante traje de linho branco; fato, contudo, é que as pessoas quase que universalmente usam o linho próximo à pele.
Exato; e esse foi um pensamento que muito logo me ocorreu; pois não tinha eu qualquer pretensão de fazer a travessia do cabo Horn em mangas de camisa; pois isso não seria diferente de atravessá-lo, literalmente, a mastro nu.
Assim, com artigos de inúmera procedência à guisa de remendo — meias usadas, pernas de calças velhas e objetos que tais —, revesti e preenchi o interior de minha jaqueta, até que toda ela se mostrasse firme e almofadada como o gibão forrado de algodão e à prova de adagas que Jaime, o rei inglês, vestia; e não se tem notícia de cota de malha ou bocassim mais forte e resistente.
Até aqui, tudo bem; mas, por favor, Jaqueta Branca, me diga: como imagina suportar a chuva e a umidade nesse seu “grego”? Você não está comparando esse chumaço de remendos a uma gabardina, está? Ou querendo dizer que esse estambre todo é à prova d’água?
Não, caro amigo; e eis aí o diacho do problema. À prova d’água ele não era — não mais do que uma esponja. Na verdade, foi tal a displicência com que forrei minha jaqueta que, durante as borrascas, eu me tornava um absorvente universal, secando até a amurada em que me encostava! Em dias úmidos, meus cruéis companheiros chegavam a se esfregar em mim, tão poderosa era a atração capilar entre minha infeliz jaqueta e toda e qualquer gota. Eu pingava como pinga um peru que assa; e mesmo muito tempo depois das tempestades, com o sol mostrando-nos o rosto, ainda caminhava debaixo de uma névoa escocesa. Enquanto para os demais fizesse tempo bom, para mim ele estava sempre carregado.
Eu? Ah, pobre de mim! Ensopada e pesada, que fardo era carregar aquela jaqueta por toda parte, principalmente quando me mandavam para o topo do mastro; arrastando-me ao alto, pouco a pouco, como se estivesse içando uma âncora. Não havia tempo para tirá-la e torcê-la na chuva; não se permitia atraso ou hesitação. Não, isso não; para cima, gordo ou magro, Lambert ou Edson, não importa o peso que carregue. E assim, por intermédio de minha própria pessoa e sem ferir as leis da natureza, foram muitas as chuvas que reascenderam aos céus.
Mas que fique bem claro: fui terrivelmente frustrado na tentativa de levar a cabo meu projeto original para a jaqueta. Minha intenção era torná-la totalmente impermeável com uma demão de tinta. O amargo destino, porém, sempre se abate sobre nós, desafortunados. Tanta havia sido a tinta roubada pelos marinheiros para calafetar calças de serviço e chapéus de lona que, quando eu, um homem honesto, terminei de forrar a jaqueta, os potes de tinta tinham sido proibidos e colocados sob estrita vigilância de chave e cadeado.
Dá uma olhada, Jaqueta Branca, não sobrou uma gota”, eis o que disse o velho Pincel, capitão do paiol de tintas.
Assim, portanto, era minha jaqueta: bem remendada, acolchoada e porosa; e, sob a noite escura, brilhante em sua alvura como a Dama Branca d’Avenel!

Herman Melville, in Jaqueta branca

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