quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Transforme seu ambiente de trabalho

Historicamente, a branquitude desenvolveu métodos de manutenção do que seria politicamente correto em relação à pauta racial e à reserva de espaço para o “negro único”, o que é certamente uma de suas estratégias mais clássicas. Argumenta-se da seguinte forma: “Veja só, não somos racistas, temos o Fulano, que é negro, trabalhando em tal departamento e, inclusive, ele adora trabalhar aqui, não é mesmo, Fulano?”. E o Fulano, talvez para manter seu emprego, talvez por que aprendeu a reproduzir o discurso da empresa, concorda.
No entanto, pessoas negras não são todas iguais, e Fulano, por melhor que seja, não pode representar todos os negros. Dessa forma, é preciso romper com a estratégia do “negro único”: não basta ter uma pessoa negra para considerar que determinado espaço de poder foi “dedetizado contra o racismo”. A herança escravista faz com que o mundo do trabalho seja particularmente racista— o que também o torna um dos espaços em que a luta antirracista pode ser mais transformadora. A primeira etapa para isso é sempre questionar o statu quo: essa é a melhor maneira de não reproduzir as variadas formas de racismo nos ambientes de trabalho.
Se você tem ou trabalha numa empresa, algumas questões que você deve colocar são: Qual a proporção de pessoas negras e brancas em sua empresa? E como fica essa proporção no caso dos cargos mais altos? Como a questão racial é tratada durante a contratação de pessoal? Ou ela simplesmente não é tratada, porque esse processo deve ser “daltônico”? Há, na sua empresa, algum comitê de diversidade ou um projeto para melhorar esses números? Há espaço para um humor hostil a grupos vulneráveis? Perguntas desse tipo podem servir de guia para uma reavaliação do racismo nos ambientes de trabalho. Como diz a pesquisadora Joice Berth, a questão, para além de representatividade, é de proporcionalidade.
Para começar, pensemos nos processos de contratação. Se uma empresa está focada em quem cursou universidades de elite ou tem inglês fluente, isso pode significar que apenas pessoas privilegiadas poderão enviar seus currículos, pois sabemos que, no Brasil, estudar outro idioma ou fazer um intercâmbio não é acessível para todo mundo. Somente uma parcela privilegiada da sociedade tem acesso a isso. Além do mais, o pacto narcísico da branquitude — expressão desenvolvida por Cida Bento em sua tese de doutorado, usada para definir como pessoas brancas anuem entre si para a manutenção de privilégios — colabora com a exclusão de outros grupos nas indicações de trabalho.
Uma pesquisa do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) — organização indispensável para a luta antirracista, criada por Cida Bento, em 1990 —, em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, apontou que pessoas negras não somam 1% entre advogados e sócios de escritórios de advocacia. Entre estagiários, não chega a 10%. O estudo, de 2019, ouviu 3624 pessoas em nove das maiores bancas de São Paulo e demonstra como os números refletem a necessidade de discutir desigualdades, oportunidades e diversidade no mercado de trabalho.
Se quisermos pensar essa questão pelo viés econômico, vale lembrar que uma equipe diversificada aumenta seu potencial produtivo: segundo estudiosos do tema, como Reinaldo Bulgarelli, um ambiente diverso estimula a criatividade.
A baixa presença de pessoas negras no ambiente de trabalho, ou mesmo distantes de cargos de gerência, pode deixar o espaço altamente suscetível a violências racistas. Em um caso recente, por exemplo, a filial brasileira de uma empresa norte-americana de software promoveu um baile à fantasia como celebração de final de ano, oferecendo uma premiação para a melhor fantasia, no valor de 3 mil reais. Um funcionário, certo de que seria engraçado, optou pela representação racista de um homem negro sexualizado, com um órgão genital grande, uma imagem que circulava na época entre grupos de WhatsApp. A foto de sua fantasia, que ficou em quarto lugar no concurso, chegou à sede norte-americana, que demitiu o empregado. O gerente da área em que ele trabalhava disse que a demissão havia sido exagerada, o que o fez ser demitido também. Então, o presidente da filial brasileira defendeu os dois, dizendo se tratar de uma “grande brincadeira”. Resultado: também foi demitido. O que é notável nesse episódio é como o caso foi conduzido e a grande repercussão, mas a agressão propriamente dita é, infelizmente, apenas uma variante das muitas formas de violência a que pessoas negras são expostas ainda hoje nos ambientes de trabalho.
A experiência internacional é rica em exemplos que podem servir de inspiração. Na Noruega, todas as empresas nacionais destinam 40% dos assentos em conselhos de administração para mulheres. A proposta veio de um parlamentar do Partido Conservador, com o argumento: “Se a gente não pensasse em políticas de reparação e equidade, só contrataria os homens com os quais a gente joga golfe no domingo”. De fato, se só convivemos com pessoas de um determinado grupo ou classe social, acreditamos que só aquelas pessoas possuem capacidade para determinados cargos, relegando outros grupos a lugares predeterminados, como se não fossem sujeitos capazes. O que esse político norueguês coloca é a importância de questionarem desigualdades.
Devemos nos perguntar: quantos talentos o Brasil perde todos os dias por causa do racismo? A situação é ainda mais grave para mulheres negras, que são muitas vezes destinadas ao subemprego: quantas físicas, biólogas, juízas, sociólogas etc. estamos perdendo? Políticas que obrigam as empresas a pensar e criar ações antirracistas poderiam reverter esse quadro.
No Brasil, a Lei de Cotas para o Serviço Público Federal visa diminuir desigualdades. Declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2017, ficou estipulado que

a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente.

O racismo assume diversas dimensões num ambiente de trabalho, o que demanda análise constante das práticas corporativas. Por causa disso, diversas empresas têm buscado consultorias especializadas para rever sua política de diversidade, preocupadas em se atualizar em relação aos novos marcos civilizatórios. Isso é resultado do trabalho de organizações negras como o Ceert, que lutam há décadas para introduzirem essas questões urgentes no mercado de trabalho. Há dezenas de consultorias de diversidade atuando nas várias regiões do Brasil. Procure conhecer mais sobre elas, informe-se sobre o trabalho do Ceert, introduza o tema na empresa em que trabalha—assim você contribui com um ambiente mais diverso, democrático e produtivo.

Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista

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