quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Alma perdida

Devíamos estar chegando ao jardim da viúva, pois Mimito suspirou e se pôs a cantar, com a voz trêmula, as suas penas:

É preciso vinho para a castanha e mel para a noz,
Para o homem uma mulher e para a mulher um homem.

Zorba apertou o passo. Suas narinas fremiam. Parou, respirou profundamente e me olhou.
Então — disse, impaciente.
Vamos! — respondi secamente e me pus a andar mais depressa.
Zorba balançou a cabeça e rugiu alguma coisa que não entendi.
Assim que chegamos ao barracão, ele se sentou de pernas cruzadas, colocou o santuri sobre os joelhos e baixou a cabeça, mergulhado em meditação. Dir-se-ia que escutava canções inúmeras e que se esforçava para escolher uma, a mais bela ou a mais desesperada. Enfim escolheu, e entoou uma melodia queixosa. De tempos em tempos me olhava com o canto do olho. Sentia que tudo o que ele não podia ou não ousava dizer-me com palavras ele expressava agora com o santuri. Que eu estragava a minha vida, que a viúva e eu éramos dois insetos que não vivem senão um segundo sob o sol, e depois morrem para a eternidade. Nunca mais! Nunca mais!
Zorba se levantou de um pulo. Compreendeu subitamente que estava se cansando para nada. Apoiou-se à parede, acendeu um cigarro; aí, depois de um momento:
Patrão, vou confiar-lhe uma coisa que um hodja me disse um dia em Salônica. Vou confiá-la a você, mesmo que não sirva de nada:
Nessa época, eu era mascate na Macedônia. Ia de aldeia para vender carretéis, agulhas, vidas de santos, benjoim, pimenta do reino.
Tinha uma excelente voz, era um verdadeiro rouxinol. E você deve saber que as mulheres se deixam prender também pela voz. (E por que não se deixam prender, as miseráveis?) só Deus sabe o que tem nas entranhas! Você pode ser insosso, capenga, corcunda, mas se tem a voz doce e sabe cantar, você faz girar a cabeça delas.
Era mascate também em Salônica, e passava até nos bairros turcos. E, ao que parece, minha voz tinha encantado uma rica muçulmana a ponto de ela não poder dormir. Então, ela chamou um velho hodja e encheu-lhe a mão de medjididas. Aman (interjeição exprimindo súplica), disse-lhe ela, vá dizer ao mascate ghiaur que venha aqui, aman! Preciso vê-lo! Não aguento mais.
O hodja veio ao meu encontro: — olhe, jovem rumi — ele me disse, — vem comigo. — eu não vou não — respondendo-lhe. — onde quer me levar? — existe uma filha de paxá que é como a água fresca e que espera por você no quarto dela, jovem rumi, venha! — mas, eu sabia que matavam cristãos nos quarteirões turcos de noite. — não, eu não vou — digo eu. — você não teme a Deus, ghiaur? — por que não temeria? — porque, pequeno rumi, quem pode dormir com uma mulher e não o faz, comete um grande pecado. Quando uma mulher o chama para dividir seu leito, meu jovem, e você não vai, sua alma está perdida! Essa mulher suspirará no dia do juízo final, e esse suspiro, quem quer que você seja, e apesar das boas ações que praticou, jogará você no inferno!”
Zorba suspirou.
Se o inferno existe — disse ele, — eu vou para o inferno por causa disso. Por ter roubado, matado ou dormido com outras mulheres, não, não! Isso tudo não é nada. O bom Deus perdoa essas coisas. Mas vou para o inferno porque, naquela noite, uma mulher me esperou em sua cama e eu não fui...
Ele se levantou, acendeu o fogo, se pôs a cozinhar. Olhou-me com o canto dos olhos e sorriu desdenhosamente:
Não há pior surdo do que aquele que não quer escutar! — murmurou ele.
E, debruçando-se, pôs-se a soprar raivosamente a madeira úmida.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

Nenhum comentário:

Postar um comentário