Para meu azar, o pé começou a doer no
caminho, e quando resolvi parar para ajeitar o calçado vi que estava
inchado. Cheguei mancando à casa de Maria Cabocla. A primeira coisa
que me saltou aos olhos foram duas garrafas de cachaça jogadas em um
canto da sala. Havia roupa suja, restos de comida no prato em cima da
mesa e uma grande quantidade de moscas, fiéis companheiras a viverem
das nossas sobras, talvez aguardando a hora em que nossos corpos
poderiam também lhes servir de alimento. Aliás, não precisavam nem
de nossos corpos totalmente mortos: bastava uma ferida aberta para
abrigarem suas larvas. Sabíamos bem como viviam. Havia períodos do
ano em que o zumbindo era tão intenso que eu dormia e acordava as
escutando. Talvez se desaparecessem ou silenciassem perceberíamos de
imediato que algo estranho acontecia à nossa volta.
As paredes se erodiam, com buracos que
permitiam ver o outro lado. Ajudei a reunir as crianças para o
banho, enquanto eu mesma cuidava também de lavar pratos, copos e
vasilhames que estavam ao redor da mesa ou dispostos em pilhas no
chão. Era uma tarde fresca, nublada, mas que com o avançar das
horas tornava o semblante de Maria Cabocla tenso, como se se
aproximasse uma inevitável tempestade. Por várias vezes ela disse
que estava tudo bem, pediu para que fosse embora. Resisti. Me metia a
arrumar as coisas, a ajeitar algo que estava fora do lugar ou a
consertar qualquer coisa quebrada. Não sei o que me aconteceu com
aquela total ausência de medo. Talvez fosse a morte de Tobias, a
solidão em que havia me encerrado. Talvez fosse a lembrança de
Donana, as conversas que escutava escondida sobre sua valentia.
Talvez fossem os percalços que vivi até aqui, mesmo sem ter
completado vinte anos. Ou o desejo de defender a mulher Maria, eu
sabia bem o que era aquele desprezo; embora Tobias nunca tenha me
triscado a mão, ainda lembrava de seus insultos e de toda a revolta
que me crescia no peito. Queria crer que faltava a Maria Cabocla um
traço de bravura para enfrentar o marido. Quando percebesse que ela
não o temia e poderia ferir do mesmo jeito que ele fazia sempre,
pensaria duas vezes antes de levantar a mão de novo para qualquer
gesto de violência.
A noite desceu lenta e eu preparei
batata-doce e café para as crianças comerem. O ar fresco invadiu a
casa que permanecia com portas e janelas abertas, apesar da invasão
de mosquitos que abatíamos entre as palmas das mãos. Maria Cabocla
acendeu o único candeeiro, o cheiro de querosene queimado foi se
misturando ao frescor que adentrava a casa. Ela havia me dito, tempos
atrás, que não tinha chegado aos trinta anos, mas parecia ter bem
mais. Tinha muitos fios brancos entre o cabelo liso que parava na
altura dos ombros. Seu rosto sempre reluzia à oleosidade do próprio
corpo, o brilho se tornava mais intenso entre a luz e a sombra
projetadas pelo candeeiro. Olhava as crianças ao redor da mãe, às
vezes ficavam à minha volta tentando fazer com que participasse de
suas brincadeiras. Brincavam de casa e escola, de roça e de caça, e
eu olhava saudosa, recordando minha infância na beira do rio Utinga,
entre bonecas de sabugo de milho e enxotando chupins dos campos de
arroz. Algumas das crianças pareciam com a mãe, outras com o pai,
mas todas, sem distinção, carregavam as marcas de abandono: barriga
grande, corpo frágil, e, principalmente, tristeza e medo que
recendiam em seus olhos pela rotina de violência que tinham na
própria casa.
Depois que as crianças dormiram fiquei
com Maria Cabocla na sala, de portas fechadas, escutando suas
conversas sobre a vida antes de Água Negra. “Já nasci cativa.
Numa fazenda. Assim como você”, me disse, mexendo numa caixa que
tinha restos de tecido, linha, agulha, e alguns poucos fuxicos de
cores distintas. “Mas meu pai andava como cigano, andava de um lado
para o outro em busca de trabalho e condição melhor para criar os
filhos”, continuava a dizer sem olhar para mim. “Antes daqui vivi
em seis fazendas diferentes, por isso também não sei ler e
escrever.” Retirou três peças de tecidos redondos do tamanho da
palma de sua mão e deitou sobre seu colo, procurando linha e agulha
para começar a alinhavar as peças até que parecessem botões de
flor. “Por mim não morava mais em fazenda, não, debaixo do
cabresto de ninguém”, aproximou a agulha bem perto dos olhos para
tentar enfiar a linha, “mas Aparecido é incutido com roça e veio
pedir ao dono daqui pra vir morar, bem nesse tempo da última seca”.
Ela desfiava as lembranças como uma reza
estranha e antiga, comum a todos os que em algum momento chegaram em
romaria à Água Negra e tantas outras fazendas de que temos
notícias. “Quando cheguei aqui achava que essa era a Fazenda Boa
Sorte, veja só”, disse, rindo quase sem vontade, “ele vivia
falando nessa Boa Sorte, que tinha terra boa, que tinha casa boa para
os trabalhadores, mas a gente veio parar aqui que não tinha nada de
diferente de outros lugares que passamos e que de ‘boa sorte’ não
tem nada. Quando me juntei com Aparecido eu tinha quatorze anos”,
levantou para pegar mais uma caneca de café, “Você quer mais
café?”, perguntou olhando para mim, esperando que me manifestasse
pelos gestos que já lhe eram familiares. “Ele não bebia, não.
Era um homem bom. Mas a bebida agora desgraçou com ele”, colocou
uma caneca cheia na pequena mesa em que me apoiava, “Já pedi que
ele conversasse com compadre Zeca para receitar garrafada, mas ele
não quis”.
Sem conseguir se concentrar nos fuxicos
que pretendia fazer, que talvez tentasse fazer àquela hora para
aliviar a inquietação que consumia seu corpo, Maria Cabocla colocou
a pequena caixa de lado e se dirigiu a mim. Mesmo na penumbra da casa
mal iluminada pelo pequeno candeeiro, vi suas mãos trêmulas,
nodosas, se aproximarem de minha cabeça.
“E você que ficou viúva... que
tristeza pode ser ficar desamparada, mas deve ser melhor que ficar
como eu estou”, disse retirando o lenço de minha cabeça, quando
senti uma onda quente percorrer o interior de meu peito. Passou a mão
sobre meu cabelo crespo, deixando que seus dedos se emaranhassem
nele. Senti um conforto que nunca havia sentido com o toque de
qualquer pessoa. Poucas vezes deitei no colo de Donana ou de minha
mãe para que fizessem o que Maria me fazia agora. Recendia um cheiro
de água doce, que bem conhecia, de seus poros. “Seu cabelo é
muito preto, Belonísia. Nunca te vejo sem lenço.” Sem que
voltasse meus olhos para encontrar os seus, deixei que ela afundasse
as mãos em mim. Parou. Foi ao quarto para pegar algo. Passou a
trançar o meu cabelo escorando o pente que desembaraçava os fios e
fazia tranças rentes ao couro cabeludo. Por um instante fechei os
olhos para sentir melhor as pontas de seus dedos, que alternavam
voltas entre falas e silêncios preenchidos apenas por sua respiração
ofegante, em contraste com a minha, que estava cada vez mais lenta,
como se me preparasse para dormir. Quando terminou o penteado eu
estava quase cochilando e senti o calor de seu corpo próximo à
minha cabeça. Levei minhas mãos para sentir as formas do cabelo, já
que não havia espelho, e sem querer encontrei a sua pele áspera.
Caminhos se formaram no alto de minha cabeça e pareciam se moldar
com a quentura que percorria meu corpo.
Durante muito tempo depois daquela noite,
fechei os olhos para tentar sentir de novo Maria Cabocla. “Você
deve estar cansada, deite um pouco na cama. Vou ficar acordada, não
consigo dormir”, disse quando seguia para guardar o pente. Dobrei
meu lenço e o pus na sacola onde estava a faca, o que me fez lembrar
que precisava de retirar as batatas que havia trazido. Tentei
resistir por algum tempo, mas depois aceitei. “Pode ficar
despreocupada”, me disse, “deite aqui do lado que eu deito,
porque Tião tem mal dormir”, disse ajeitando as pernas do menino e
das duas meninas que dormiam em sua cama, “se o homem chegar, te
acordo”.
Senti o cheiro de água doce no lençol
que recobria a cama e por muito tempo resisti ao sono, tentando
acalmar o interior de meu corpo que ainda pulsava vivo ao afeto que
havia recebido. Quando finalmente me dobrei ao repouso, sonhei com
Tobias, que me olhava de longe, e eu tentava me afastar dele. Subia
cansada pelas encostas do vale, mas me deparava com uma cerca
brilhante. Tentava escapar por outro lado e via mais cerca. Quando me
afastava, vi a mata queimar. Depois que tudo virou cinza, sem que
nada me acontecesse, me percebi encurralada sem saída. O cabo de
marfim da faca de Donana aparecia quando tentava voltar para o rio.
Bibiana e Severo surgiam em minha frente, mas não conseguiam me ver.
Chamava por eles, minha voz era alta, mas ainda assim não me ouviam.
Quando retirava a faca da terra o chão começava a se abrir,
dividido, e o buraco os engolia sem que se dessem conta.
Acordei alarmada e com a respiração
ofegante. Levantei da cama, era quase dia, e encontrei Maria Cabocla
cochilando sentada próxima à porta, vigiando para que o marido não
me surpreendesse deitada em sua cama. Retornei para minha casa ainda
no sereno da madrugada, precisava alimentar os bichos. Segui pelo
caminho, preocupada, mas sabia que se algo acontecesse Maria ou os
meninos dariam um jeito para pedir a minha ajuda.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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