domingo, 15 de agosto de 2021

Torto Arado | 12

Para meu azar, o pé começou a doer no caminho, e quando resolvi parar para ajeitar o calçado vi que estava inchado. Cheguei mancando à casa de Maria Cabocla. A primeira coisa que me saltou aos olhos foram duas garrafas de cachaça jogadas em um canto da sala. Havia roupa suja, restos de comida no prato em cima da mesa e uma grande quantidade de moscas, fiéis companheiras a viverem das nossas sobras, talvez aguardando a hora em que nossos corpos poderiam também lhes servir de alimento. Aliás, não precisavam nem de nossos corpos totalmente mortos: bastava uma ferida aberta para abrigarem suas larvas. Sabíamos bem como viviam. Havia períodos do ano em que o zumbindo era tão intenso que eu dormia e acordava as escutando. Talvez se desaparecessem ou silenciassem perceberíamos de imediato que algo estranho acontecia à nossa volta.
As paredes se erodiam, com buracos que permitiam ver o outro lado. Ajudei a reunir as crianças para o banho, enquanto eu mesma cuidava também de lavar pratos, copos e vasilhames que estavam ao redor da mesa ou dispostos em pilhas no chão. Era uma tarde fresca, nublada, mas que com o avançar das horas tornava o semblante de Maria Cabocla tenso, como se se aproximasse uma inevitável tempestade. Por várias vezes ela disse que estava tudo bem, pediu para que fosse embora. Resisti. Me metia a arrumar as coisas, a ajeitar algo que estava fora do lugar ou a consertar qualquer coisa quebrada. Não sei o que me aconteceu com aquela total ausência de medo. Talvez fosse a morte de Tobias, a solidão em que havia me encerrado. Talvez fosse a lembrança de Donana, as conversas que escutava escondida sobre sua valentia. Talvez fossem os percalços que vivi até aqui, mesmo sem ter completado vinte anos. Ou o desejo de defender a mulher Maria, eu sabia bem o que era aquele desprezo; embora Tobias nunca tenha me triscado a mão, ainda lembrava de seus insultos e de toda a revolta que me crescia no peito. Queria crer que faltava a Maria Cabocla um traço de bravura para enfrentar o marido. Quando percebesse que ela não o temia e poderia ferir do mesmo jeito que ele fazia sempre, pensaria duas vezes antes de levantar a mão de novo para qualquer gesto de violência.
A noite desceu lenta e eu preparei batata-doce e café para as crianças comerem. O ar fresco invadiu a casa que permanecia com portas e janelas abertas, apesar da invasão de mosquitos que abatíamos entre as palmas das mãos. Maria Cabocla acendeu o único candeeiro, o cheiro de querosene queimado foi se misturando ao frescor que adentrava a casa. Ela havia me dito, tempos atrás, que não tinha chegado aos trinta anos, mas parecia ter bem mais. Tinha muitos fios brancos entre o cabelo liso que parava na altura dos ombros. Seu rosto sempre reluzia à oleosidade do próprio corpo, o brilho se tornava mais intenso entre a luz e a sombra projetadas pelo candeeiro. Olhava as crianças ao redor da mãe, às vezes ficavam à minha volta tentando fazer com que participasse de suas brincadeiras. Brincavam de casa e escola, de roça e de caça, e eu olhava saudosa, recordando minha infância na beira do rio Utinga, entre bonecas de sabugo de milho e enxotando chupins dos campos de arroz. Algumas das crianças pareciam com a mãe, outras com o pai, mas todas, sem distinção, carregavam as marcas de abandono: barriga grande, corpo frágil, e, principalmente, tristeza e medo que recendiam em seus olhos pela rotina de violência que tinham na própria casa.
Depois que as crianças dormiram fiquei com Maria Cabocla na sala, de portas fechadas, escutando suas conversas sobre a vida antes de Água Negra. “Já nasci cativa. Numa fazenda. Assim como você”, me disse, mexendo numa caixa que tinha restos de tecido, linha, agulha, e alguns poucos fuxicos de cores distintas. “Mas meu pai andava como cigano, andava de um lado para o outro em busca de trabalho e condição melhor para criar os filhos”, continuava a dizer sem olhar para mim. “Antes daqui vivi em seis fazendas diferentes, por isso também não sei ler e escrever.” Retirou três peças de tecidos redondos do tamanho da palma de sua mão e deitou sobre seu colo, procurando linha e agulha para começar a alinhavar as peças até que parecessem botões de flor. “Por mim não morava mais em fazenda, não, debaixo do cabresto de ninguém”, aproximou a agulha bem perto dos olhos para tentar enfiar a linha, “mas Aparecido é incutido com roça e veio pedir ao dono daqui pra vir morar, bem nesse tempo da última seca”.
Ela desfiava as lembranças como uma reza estranha e antiga, comum a todos os que em algum momento chegaram em romaria à Água Negra e tantas outras fazendas de que temos notícias. “Quando cheguei aqui achava que essa era a Fazenda Boa Sorte, veja só”, disse, rindo quase sem vontade, “ele vivia falando nessa Boa Sorte, que tinha terra boa, que tinha casa boa para os trabalhadores, mas a gente veio parar aqui que não tinha nada de diferente de outros lugares que passamos e que de ‘boa sorte’ não tem nada. Quando me juntei com Aparecido eu tinha quatorze anos”, levantou para pegar mais uma caneca de café, “Você quer mais café?”, perguntou olhando para mim, esperando que me manifestasse pelos gestos que já lhe eram familiares. “Ele não bebia, não. Era um homem bom. Mas a bebida agora desgraçou com ele”, colocou uma caneca cheia na pequena mesa em que me apoiava, “Já pedi que ele conversasse com compadre Zeca para receitar garrafada, mas ele não quis”.
Sem conseguir se concentrar nos fuxicos que pretendia fazer, que talvez tentasse fazer àquela hora para aliviar a inquietação que consumia seu corpo, Maria Cabocla colocou a pequena caixa de lado e se dirigiu a mim. Mesmo na penumbra da casa mal iluminada pelo pequeno candeeiro, vi suas mãos trêmulas, nodosas, se aproximarem de minha cabeça.
E você que ficou viúva... que tristeza pode ser ficar desamparada, mas deve ser melhor que ficar como eu estou”, disse retirando o lenço de minha cabeça, quando senti uma onda quente percorrer o interior de meu peito. Passou a mão sobre meu cabelo crespo, deixando que seus dedos se emaranhassem nele. Senti um conforto que nunca havia sentido com o toque de qualquer pessoa. Poucas vezes deitei no colo de Donana ou de minha mãe para que fizessem o que Maria me fazia agora. Recendia um cheiro de água doce, que bem conhecia, de seus poros. “Seu cabelo é muito preto, Belonísia. Nunca te vejo sem lenço.” Sem que voltasse meus olhos para encontrar os seus, deixei que ela afundasse as mãos em mim. Parou. Foi ao quarto para pegar algo. Passou a trançar o meu cabelo escorando o pente que desembaraçava os fios e fazia tranças rentes ao couro cabeludo. Por um instante fechei os olhos para sentir melhor as pontas de seus dedos, que alternavam voltas entre falas e silêncios preenchidos apenas por sua respiração ofegante, em contraste com a minha, que estava cada vez mais lenta, como se me preparasse para dormir. Quando terminou o penteado eu estava quase cochilando e senti o calor de seu corpo próximo à minha cabeça. Levei minhas mãos para sentir as formas do cabelo, já que não havia espelho, e sem querer encontrei a sua pele áspera. Caminhos se formaram no alto de minha cabeça e pareciam se moldar com a quentura que percorria meu corpo.
Durante muito tempo depois daquela noite, fechei os olhos para tentar sentir de novo Maria Cabocla. “Você deve estar cansada, deite um pouco na cama. Vou ficar acordada, não consigo dormir”, disse quando seguia para guardar o pente. Dobrei meu lenço e o pus na sacola onde estava a faca, o que me fez lembrar que precisava de retirar as batatas que havia trazido. Tentei resistir por algum tempo, mas depois aceitei. “Pode ficar despreocupada”, me disse, “deite aqui do lado que eu deito, porque Tião tem mal dormir”, disse ajeitando as pernas do menino e das duas meninas que dormiam em sua cama, “se o homem chegar, te acordo”.
Senti o cheiro de água doce no lençol que recobria a cama e por muito tempo resisti ao sono, tentando acalmar o interior de meu corpo que ainda pulsava vivo ao afeto que havia recebido. Quando finalmente me dobrei ao repouso, sonhei com Tobias, que me olhava de longe, e eu tentava me afastar dele. Subia cansada pelas encostas do vale, mas me deparava com uma cerca brilhante. Tentava escapar por outro lado e via mais cerca. Quando me afastava, vi a mata queimar. Depois que tudo virou cinza, sem que nada me acontecesse, me percebi encurralada sem saída. O cabo de marfim da faca de Donana aparecia quando tentava voltar para o rio. Bibiana e Severo surgiam em minha frente, mas não conseguiam me ver. Chamava por eles, minha voz era alta, mas ainda assim não me ouviam. Quando retirava a faca da terra o chão começava a se abrir, dividido, e o buraco os engolia sem que se dessem conta.
Acordei alarmada e com a respiração ofegante. Levantei da cama, era quase dia, e encontrei Maria Cabocla cochilando sentada próxima à porta, vigiando para que o marido não me surpreendesse deitada em sua cama. Retornei para minha casa ainda no sereno da madrugada, precisava alimentar os bichos. Segui pelo caminho, preocupada, mas sabia que se algo acontecesse Maria ou os meninos dariam um jeito para pedir a minha ajuda.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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