1. SENHOR DOUTOR, LHE COMEÇO
Eu somos tristes. Não me engano, digo
bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou
sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos
tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso,
quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças,
mas de existências.
A minha mulher matei, dizem. Na vida
real, matei uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe quando
vi que ela não tinha voz, morria sem queixar. Que bicho saiu dela,
mudo, através do intervalo do corpo?
O senhor, doutor das leis, me pediu de
escrever a minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia. Isto que
eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para me defender.
Enquanto nem me conhece. O meu sofrimento lhe interessa, doutor? Não
me importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar, isto-isto, mas
já não quero nada, não quero sair nem ficar. Seis anos que estou
aqui preso chegaram para desaprender a minha vida. Agora, doutor,
quero só ser moribundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco.
Fico nas metades. Moribundo. Está-me a rir de mim?
Explico: os moribundos tudo são
permitidos. Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles antecipam,
pré-falecidos. O moribundo insulta-nos? Perdoamos, com certeza.
Cagam nos lençóis, cospem no prato? Limpamos, sem mais nada.
Arranja lá uma maneira, senhor doutor. Desarasca lá uma maneira de
eu ficar moribundo, submorto.
Afinal, estou aqui na prisão porque me
destinei prisioneiro. Nada, não foi ninguém que queixou. Farto de
mim, me denunciei. Entreguei-me eu mesmo. Devido, talvez, o cansaço
do tempo que não vinha. Posso esperar, nunca consigo nada. O futuro
quando chega não me encontra. Onde estou, afinal eu? O lugar da
minha vida não é esse tempo?
Deixo os pensamentos, vou direto na
história. Começo no meu cunhado Bartolomeu. Aquela noite que ele me
veio procurar, foi onde iniciaram desgraças.
2. ASAS NO CHÃO, BRASAS NO CÉU
A luz emagrecia. Restava só um copo de
cu. Em casa do meu cunhado Bartolomeu preparava-se o fim do dia. Ele
espreitou a palhota: a mulher, mexedora, agitava as últimas sombras
do xipefo. A mulher deitava mas Bartolomeu estava inquieto. O
adormecimento demorou de vir. Lá fora um mocho piava desgraças. A
mulher não ouviu o pássaro que avisa a morte, já dormia entregue
ao corpo. Bartolomeu falou-se:
— Vou fazer o chá: talvez bom para
eu garrar maneira de dormir.
O lume estava ainda a arder. Tirou um pau
de lenha e soprou nele. Sacudiu dos olhos as migalhas do fogo. Na
atrapalhação deixou a lenha acesa cair nas costas da mulher. O
grito que ela deu, nunca ninguém ouviu. Não era som de gente, era
grito de animal. Voz de hiena, com certeza. Bartolomeu saltou no
susto: estou casado com quem, afinal? Uma nóii? (Nóii:
feiticeira) Essas mulheres que noite transformam em animais e
circulam no serviço da feitiçaria?
A mulher, na frente da aflição dele,
rastejava a sua dor queimada. Como um animal. Raio da minha vida,
pensou Bartolomeu. E fugiu de casa. Atravessou a aldeia, rápido,
para me contar. Chegou a minha casa, os cães agitaram. Entrou sem
bater, sem licenças. Contou-me o sucedido assim como agora estou a
escrever. Desconfiei, no início. Bêbado, talvez o Bartolomeu trocou
as lembranças. Cheirei o hálito da sua queixa. Não arejava bebida.
Era verdade, então. Bartolomeu repetia a história duas, três,
quatro vezes. Eu ouvia aquilo e pensava: e se a minha mulher também
é uma igual? Se é uma nóii, também?
Depois de Bartolomeu sair, a ideia me
prendia os pensamentos. E se eu, sem saber, vivia com uma
mulher-animal? Se lhe amei, então troquei a minha boca com um
focinho. Como aceitar desculpas da troca? Lugar de animal é na
esteira, algum dia? Bichos vivem e revivem nos currais, para lá dos
arames. Se essa mulher, fidaputa, me enganou, fui eu que animalei. Só
havia uma maneira de provar se Carlota Gentina, minha mulher, era ou
não uma nóii. Era surpreender-lhe com um sofrimento, uma dor funda.
Olhei em volta e vi a panela com água a ferver. Levantei e reguei o
corpo dela com fervuras. Esperei o grito mas não veio. Não veio,
mesmo. Ficou assim, muda, chorando sem soltar barulho. Era um
silêncio enroscado, ali na esteira. Todo o dia seguinte, não mexeu.
Carlota, a coitada, era só um nome deitado. Nome sem pessoa: só um
sono demorado no corpo. Sacudi-lhe nos ombros:
— Carlota, porquê não mexes? Se
sofres, porquê não gritas?
Mas a morte uma guerra de enganos. As
vitórias são só derrotas adiadas. A vida enquanto tem vontade vai
construindo a pessoa. Era isso que Carlota precisava: a mentira de
uma vontade. Brinquei de criança para fazer-lhe rir. Saltei como
gafanhoto em volta da esteira. Choquei com as latas, entornei o
barulho sobre mim. Nada. Os olhos dela estavam amarrados na
distância, olhando o lado cego do escuro. Só eu me ria, embrulhado
nas panelas. Me levantei, sufocado no riso e saí para estourar
gargalhadas loucas lá fora. Gargalhei até cansar. Depois, aos
poucos, fiquei vencido por tristezas, remorsos antigos.
Voltei para dentro e pensei que ela havia
de gostar ver o dia, elasticar as pernas. Trouxe-lhe para fora. Era
tão leve que o sangue dela devia ser só poeira vermelha. Sentei
Carlota virada para o poente. Deixei o fresco tapar o seu corpo. Ali,
sentada no quintal, morreu Carlota Gentina, minha mulher. Não notei
logo aquela sua morte. S vi pela lágrima dela que parara nos olhos.
Essa lágrima era já água da morte.
Fiquei a olhar a mulher estendida no
corpo dela. Olhei os pés, rasgados como o chão da terra. Tanto
andaram nos carreiros que ficaram irmãos da areia. Os pés dos
mortos são grandes, crescem depois do falecimento. Enquanto media a
morte de Carlota eu me duvidava: que doença era aquela sem inchaço
nem gemidos Água quente pode parar assim a idade de uma pessoa?
Conclusão que tirei dos pensamentos: Carlota Gentina era um pássaro,
desses que perdem voz nos contravento.
3. SONHOS DA ALMA ACORDARAM-ME DO CORPO
Sonhei-lhe. Ela estava no quintal,
trabalhando no pilão. Pilava sabe o quê? Água. Pilava água. Não,
não era milho, nem mapira, nem o quê. Água, grãos do céu.
Aproximei. Ela cantava uma canção
triste, parecia que estava a adormecer a si própria. Perguntei a
razão daquele trabalho.
— Estou a pilar.
— Esses são grãos?
— São tuas lágrimas, marido.
Foi então: vi que ali, naquele pilão,
estava a origem do meu sofrimento. Pedi que parasse mas a minha voz
deixou de se ouvir. Ficou cega a minha garganta. Só aquele
tunc-tunc-tunc do pilão sempre batendo, batendo, batendo. Aos
poucos, fui vendo que o barulho me vinha do peito, era o coração me
castigando. Invento? Inventar, qualquer pode. Mas eu daqui da cela só
vejo as paredes da vida. Posso sentir um sonho, perfume passante.
Agarrar não posso. Agora, já troquei minha vida por sonhos. Não
foi só esta noite que sonhei com ela. A noite antepassada, doutor,
até chorei. Foi porque assisti minha morte. Olhei no corredor e vi
sangue, um rio dele. Era sangue órfão. Sem o pai que era o meu
braço cortado. Sangue detido como o dono. Condenado. Não lembro
como cortei. Tenho memória escura, por causa dessas tantas noites
que bebi.
E sabe, nesse tal sonho, quem salvou o
meu sangue espalhado? Foi ela. Apanhou o sangue com as suas mãos
antigas. Limpou aquele sangue, tirou a poeira, carinhosa. Juntou os
pedaços e ensinou-lhes o caminho para regressar ao meu corpo. Depois
ela me chamou com esse nome que eu tenho e que já esqueci, porque
ninguém me chama. Sou um número, em mim uso algarismos não letras.
O senhor me pediu para confessar
verdades. Está certo, matei-lhe. Foi crime? Talvez, se dizem. Mas eu
adoeço nessa suspeita. Sou um vivo, não desses que enterra as
lembranças. Esses têm socorro do esquecimento. A morte não
afasta-me essa Carlota. Agora, já sei: os mortos nascem todos no
mesmo dia. Só os vivos têm datas separadas. Carlota voou? Daquela
vez que lhe entornei água foi na mulher ou no pássaro? Quem pode
saber? O senhor pode?
Uma coisa eu tenho máxima certeza: ela
ficou, restante, por fora do caixão. Os que choravam no enterro
estavam cegos. Eu ria. É verdade, ria. Porque dentro do caixão que
choravam não havia nada. Ela fugira, salva nas asas. Me viram rir
assim, não zangaram. Perdoaram-me. Pensaram que eram essas
gargalhadas que não são contrárias da tristeza. Talvez eram
soluços enganados, suor do sofrimento. E rezavam. Eu não, não
podia. Afinal, não era uma morta falecida que estava ali.
Muito-muito era um silêncio na forma de bicho.
4. VOU APRENDER A SER ÁRVORE
De escrever me cansei das letras. Vou
ultimar aqui. Já não preciso defesa, doutor. Não quero. Afinal das
contas, sou culpado. Quero ser punido, não tenho outra vontade. Não
por crime mas por meu engano. Explicarei no final qual esse engano.
Há seis anos me entreguei, prendi-me sozinho. Agora, próprio eu me
condeno.
De tudo estou agradecido, senhor doutor.
Levei seu tempo, só de graça. O senhor me há-de chamar de burro.
Já sei, aceito. Mas, peço desculpa, se faz favor: o senhor, sabe o
que da minha pessoa? Não sou como outros: penso o que aguento, não
o que preciso. O que desconsigo não é de mim. Falha de Deus, não
minha. Porquê Deus não nos criou já feitos? Completos, como foi
nascido um bicho a quem só falta o crescimento. Se Deus nos fez
vivos porque não deixou sermos donos da nossa vida?
Assim, mesmo brancos somos pretos.
Digo-lhe, com respeito. Preto o senhor também. Defeito da raça dos
homens, esta nossa de todos. Nossa voz, cega e rota, já não manda.
Ordens só damos nos fracos: mulheres e crianças. Mesmo esses
começam a demorar nas obediências. O poder de um pequeno fazer os
outros mais pequenos, pisar os outros como ele próprio é pisado
pelos maiores. Rastejar é o serviço das almas. Costumadas ao chão
como que podem acreditar no céu?
Descompletos somos, enterrados
terminamos. Vale a pena ser planta, senhor doutor. Mesmo vou aprender
a ser árvore. Ou talvez pequena erva porque árvore aqui dentro não
dá. Porque os baloii (Baloii: feiticeiros, deitadores de sorte
{plural de nóii}) não tentam de ser plantas, verde-sossegadas?
Assim, eu não precisava matar Carlota. Só lhe desplantava, sem
crime, sem culpa.
Só tenho medo de uma coisa: de frio.
Toda a vida sofri do frio. Tenho paludismo não é no corpo, é na
alma. O calor pode apertar: sempre tenho tremuras. O Bartolomeu, meu
cunhado, costumava dizer: “fora de casa sempre faz frio.” Está
certo. Mas eu, doutor, que casa eu tive? Nenhuma. Terra nua, sem aqui
nem onde. Num lugar assim, sem chegada nem viagem, preciso aprender
espertezas. Não dessas que avançam na escola. Esperteza redonda,
esperteza sem trabalho certo nem contrato com ninguém.
Nesta carta última o senhor me vê
assim, desistido. Porquê estou assim? Porque o Bartolomeu me visitou
hoje e me contou tudo como se passou. No enfim, compreendi o meu
engano. Bartolomeu me concluiu: afinal a sua mulher, minha cunhada,
não era uma nóii. Isso ele confirmou umas tantas noites. Espreitava
de vigia para saber se a mulher dele tinha ou não outra ocupação
nocturna. Nada, não tinha.
Nem gatinhava, nem passarinhava. Assim,
Bartolomeu provou o estado de pessoa da sua esposa.
Então, pensei. Se a irmã da minha
mulher não era nóii, a minha mulher também não era. O feitiço
mal de irmãs, doença das nascenças. Mas eu como podia adivinhar
sozinho? Não podia, doutor.
Sou filho do meu mundo. Quero ser julgado
por outras leis, devidas da minha tradição. O meu erro não foi
matar Carlota. Foi entregar a minha vida a este seu mundo que não
encosta com o meu. Lá, no meu lugar, me conhecem. Lá podem decidir
das minhas bondades. Aqui, ninguém. Como posso ser defendido se não
arranjo entendimento dos outros? Desculpa, senhor doutor: justiça só
pode ser feita onde eu pertenço. Só eles sabem que, afinal, eu não
conhecia que Carlota Gentina não tinha asas para voar.
Agora já é tarde. Só reparo o tempo
quando já passou. Sou um cego que vê muitas portas. Abro aquela que
está mais perto. Não escolho, tropeço a mão no fecho. Minha vida
não é um caminho. É uma pedra fechada à espera de ser areia. Vou
entrando nos grãos do chão, devagarinho. Quando me quiserem
enterrar já eu serei terra. Já que não tive vantagem na vida, esse
ser o privilégio da minha morte.
Mia Couto, in Vozes anoitecidas
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