sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Quem é você, Luzia?


É preciso um esforço brutal de imaginação para tentar entender o significado da chegada dos primeiros Homo sapiens ao pedaço de terra firme que, dezenas de milhares de anos mais tarde, seria apelidado de continente americano. Nenhum ser humano vivo hoje jamais chegou sequer perto de passar por uma experiência parecida. Nossos descendentes, tanto os do século XXII quanto os do futuro longínquo, tampouco poderão se gabar de façanha semelhante, a não ser que achem algum planeta tão fervilhante de vida quanto o nosso fora do Sistema Solar e consigam cruzar anos-luz de abismos cósmicos para botar os pés em seu solo. Depois da chegada às Américas, a nossa espécie invadiu ilhas antes desabitadas e explorou a Antártida, mas pouquíssima coisa se compara à aventura dos que pisaram aqui pela primeira vez. Os europeus chamariam a América de “Novo Mundo” e, no fim da Era do Gelo, este continente, o último a ser colonizado por seres humanos, era de fato um mundo novo.
Tive um vislumbre muito tênue do que passou pela cabeça das pessoas que, há cerca de 15 mil anos, encararam essa aventura quando me acocorei no interior abafado da gruta Cuvieri, numa tarde ensolarada e seca do mês de julho de 2002. Duvido que você consiga achar esse pedacinho rochoso do Brasil Central no Google Maps, mas posso garantir que ele está lá: a uns 50 quilômetros de Belo Horizonte, perto dos municípios de Matozinhos, Pedro Leopoldo e Lagoa Santa (MG). Seus pequenos corredores naturais estão repletos de mocós (roedores típicos desses ambientes rochosos), e seus três abismos, que só podem ser visitados com a ajuda de equipamento de alpinismo, são como valas comuns para incontáveis bichos que foram morrendo na mata circundante ao longo dos séculos.
Foi num desses abismos que a equipe coordenada pelo bio-antropólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da USP, desenterrou o bicho que emprestou seu nome à gruta: a Catonyx cuvieri, uma preguiça-gigante, do tamanho de um bezerrão (que deve ter pesado uns 200 quilos quando adulta), com garras afiadas como as de seus parentes nanicos que vivem em árvores até hoje, mas, diferentemente deles, de hábitos terrestres. Num ambiente apertado, abafado e um tantinho perigoso como aquele, jornalista querendo entrevistar pesquisador só atrapalha, de modo que, para me sentir menos inútil, acabei me voluntariando para carregar o fêmur (osso da coxa) da finada monstra até o lado de fora da caverna. Antes de vir para minhas mãos, aquele pernil foi acondicionado em plástico-bolha e colocado cuidadosamente sobre uma bandeja. De fato, parecia vagamente um osso de boi adulto, de uma robustez inesperada para um fragmento de anatomia que tinha passado tantos milênios no fundo da gruta, recebendo sobre si todo santo ano, na época das chuvas, as enxurradas do barro vermelho característico da região, além dos cadáveres da fauna mais recente de Minas Gerais, bichos como antas e veados, por exemplo.
Preguiças-gigantes já seriam suficientemente esquisitas e impressionantes — a maior delas a dar o ar de sua graça no território brasileiro de então, a Eremotherium laurillardi, tinha tamanho equivalente ao de um elefante moderno —, mas estavam longe de ser as únicas criaturas inusitadas do interior do Brasil quando os seres humanos começaram a aparecer por aqui. Há uns 15 mil anos, as onças já existiam, mas precisavam disputar presas com o Smilodon populator, um dente-de-sabre ligeiramente maior que os leões de hoje. Aliás, por favor, evite colocar a palavra “tigre” na frente do nome do bicho: de tigre ele não tinha nada, já que descendia de um grupo cujo parentesco com os felinos modernos é distante. No quesito superpredadores, havia ainda ursos-de-cara-curta, parentes muito mais parrudos e ferozes do atual urso-de-óculos, um bicho dos Andes com cara de bonachão e meros 150 quilos. Calcula-se que uma espécie argentina de urso-de-cara-curta do Pleistoceno pesava dez vezes isso.
O vasto cardápio de tais carnívoros tinha como itens mais indigestos (ou, pelo menos, mais difíceis de fatiar) os gliptodontes, tatus de armadura arredondada e rígida com tamanho equivalente ao de um Fusca; as macrauquênias, popularmente comparadas a lhamas de tromba, mas sem nenhum parentesco próximo com as lhamas de verdade; os toxodontes, que lembravam uma mistura de rinocerontes e hipopótamos; e parentes remotos dos elefantes, os mastodontes ou gonfotérios, donos de trombas tão sofisticadas quanto as de seus primos de hoje da África e da Ásia. É bem possível, aliás, que algum tipo de elefante propriamente dito, pertencente ao mesmo gênero que a espécie indiana, tenha andado pela Amazônia nessa época — é o que indica um único dente do bicho achado em Rondônia alguns anos atrás.
Tamanha diversidade de mamíferos de grande porte, com dezenas de bichos endêmicos — ou seja, que só existem numa região específica do planeta, e em nenhum outro lugar —, era única no mundo, superando até a da África. Uma conjunção especialmente favorável de fatores geológicos e evolutivos explica essa festa da biodiversidade. Em primeiro lugar, durante dezenas de milhões de anos, a começar pela parte final da Era dos Dinossauros, a América do Sul virou uma gigantesca ilha, separada de todos os demais continentes pelo recém-nascido oceano Atlântico (e pelo Pacífico também, claro). Essa separação aconteceu quando a história dos mamíferos placentários (cujos fetos são protegidos e nutridos por uma placenta, como os nossos) ainda estava no comecinho. Vem daí o fato de que muitas linhagens únicas se desenvolveram do lado de cá do oceano, como é o caso das preguiças, dos tatus, das macrauquênias e dos toxodontes, bichos legitimamente made in South America. Ainda não sabemos exatamente bem como, mas o isolamento foi brevemente rompido há uns 40 milhões de anos, talvez graças a cadeias de ilhas dispostas entre o nosso litoral e o africano, que permitiram a chegada de alguns roedores e macacos primitivos da África Ocidental a estas praias. Sem eles, não teríamos capivaras, porquinhos-da-índia, micos-leões ou bugios. Parece conversa de pescador, mas o fato é que alguns animais são capazes de sobreviver a longas travessias oceânicas, às vezes arrastados por tempestades em pedaços de terra flutuante. Isso é mais fácil de acontecer com répteis, criaturas de metabolismo naturalmente lento, que chegam a sobreviver meses sem comida ou água, mas não é impossível com mamíferos. Nesses casos, basta que uma única fêmea grávida sobreviva à jornada para que uma nova população seja fundada do outro lado do oceano, e a partir daí a evolução faz o resto do serviço.
Após a aventura da dobradinha primatas-roedores, a megailha sul-americana passou tanto tempo sozinha que parecia estar destinada a se deitar eternamente em berço esplêndido, como diz o hino. Doce ilusão: forças vulcânicas lentamente cimentavam uma ponte de terra entre nosso continente “perdido” e a América do Norte. Os detalhes desse processo ainda precisam ser totalmente elucidados (esta é uma frase que, devo adverti-lo, você vai cansar de ver neste livro), mas o certo é que a formação da superponte já estava concluída uns três milhões de anos atrás. Do solo norte-americano veio uma torrente de invasores: felídeos e canídeos (ou cães e gatos, se você quiser simplificar) de todos os formatos e tamanhos, ursos, antas, dentes-de-sabre, mastodontes, veados e cavalos — a lista está longe de ser exaustiva. Muitas espécies endêmicas sul-americanas sumiram nesse troca-troca maluco, provavelmente acuadas até a extinção, mais ou menos como lojinhas do interior, desacostumadas à competição, podem acabar indo à falência quando um hipermercado barateiro e com grande variedade de produtos chega à cidade. Outras formas de vida típicas do antigo continente-ilha, porém, conseguiram transformar a crise em oportunidade e até invadiram as terras ao norte, como é o caso das próprias preguiças-gigantes.
O Novo Mundo que se abria diante dos olhos dos Homo sapiens pioneiros, portanto, era um mundo moldado pelo Grande Intercâmbio Faunístico (ou GIF, se você quiser encurtar), como ficou conhecido entre os especialistas o troca-troca de espécies entre as duas grandes Américas — digo isso sem nenhum desrespeito à América Central, é claro, mas acontece que esta surgiu justamente como o corredor pelo qual os protagonistas desse processo passavam. Colocar os olhos no Novo Mundo pela primeira vez deve ter sido de tirar o fôlego. Embora os humanos pioneiros já tivessem encontrado grandes felinos, cavalos e ursos em outros continentes, nada havia de semelhante a superpreguiças ou gliptodontes fora das Américas. É aqui que chegamos ao ponto central deste capítulo: quem, afinal, terão sido os donos desses olhos assombrados? Como vieram parar aqui e de que jeito viviam? E, aliás, por que a fauna monstruosa e exuberante que encontraram acabou se escafedendo? Para responder decentemente a essas perguntas, tudo indica que um dos melhores caminhos é prestar atenção ao que dizem as rochas e os fósseis achados no complexo pré-histórico onde fica a gruta Cuvieri, a região mineira de Lagoa Santa. A história é complicada e seu final ainda está longe de ser escrito, mas pelo menos já tem protagonista. Trata-se de uma moça azarada de 11,5 mil anos de idade, sem nem uma cova rasa para chamar de sua, que a posteridade viria a apelidar de Luzia.

Reinaldo José Lopes, in 1499: o Brasil antes de Cabral

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