É preciso um esforço brutal de
imaginação para tentar entender o significado da chegada dos
primeiros Homo sapiens ao pedaço de terra firme que, dezenas
de milhares de anos mais tarde, seria apelidado de continente
americano. Nenhum ser humano vivo hoje jamais chegou sequer perto de
passar por uma experiência parecida. Nossos descendentes, tanto os
do século XXII quanto os do futuro longínquo, tampouco poderão se
gabar de façanha semelhante, a não ser que achem algum planeta tão
fervilhante de vida quanto o nosso fora do Sistema Solar e consigam
cruzar anos-luz de abismos cósmicos para botar os pés em seu solo.
Depois da chegada às Américas, a nossa espécie invadiu ilhas antes
desabitadas e explorou a Antártida, mas pouquíssima coisa se
compara à aventura dos que pisaram aqui pela primeira vez. Os
europeus chamariam a América de “Novo Mundo” e, no fim da Era do
Gelo, este continente, o último a ser colonizado por seres humanos,
era de fato um mundo novo.
Tive um vislumbre muito tênue do que
passou pela cabeça das pessoas que, há cerca de 15 mil anos,
encararam essa aventura quando me acocorei no interior abafado da
gruta Cuvieri, numa tarde ensolarada e seca do mês de julho de 2002.
Duvido que você consiga achar esse pedacinho rochoso do Brasil
Central no Google Maps, mas posso garantir que ele está lá: a uns
50 quilômetros de Belo Horizonte, perto dos municípios de
Matozinhos, Pedro Leopoldo e Lagoa Santa (MG). Seus pequenos
corredores naturais estão repletos de mocós (roedores típicos
desses ambientes rochosos), e seus três abismos, que só podem ser
visitados com a ajuda de equipamento de alpinismo, são como valas
comuns para incontáveis bichos que foram morrendo na mata
circundante ao longo dos séculos.
Foi num desses abismos que a equipe
coordenada pelo bio-antropólogo Walter Neves, do Laboratório de
Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da USP, desenterrou o bicho
que emprestou seu nome à gruta: a Catonyx cuvieri, uma
preguiça-gigante, do tamanho de um bezerrão (que deve ter pesado
uns 200 quilos quando adulta), com garras afiadas como as de seus
parentes nanicos que vivem em árvores até hoje, mas, diferentemente
deles, de hábitos terrestres. Num ambiente apertado, abafado e um
tantinho perigoso como aquele, jornalista querendo entrevistar
pesquisador só atrapalha, de modo que, para me sentir menos inútil,
acabei me voluntariando para carregar o fêmur (osso da coxa) da
finada monstra até o lado de fora da caverna. Antes de vir para
minhas mãos, aquele pernil foi acondicionado em plástico-bolha e
colocado cuidadosamente sobre uma bandeja. De fato, parecia vagamente
um osso de boi adulto, de uma robustez inesperada para um fragmento
de anatomia que tinha passado tantos milênios no fundo da gruta,
recebendo sobre si todo santo ano, na época das chuvas, as
enxurradas do barro vermelho característico da região, além dos
cadáveres da fauna mais recente de Minas Gerais, bichos como antas e
veados, por exemplo.
Preguiças-gigantes já seriam
suficientemente esquisitas e impressionantes — a maior delas a dar
o ar de sua graça no território brasileiro de então, a
Eremotherium laurillardi, tinha tamanho equivalente ao de um
elefante moderno —, mas estavam longe de ser as únicas criaturas
inusitadas do interior do Brasil quando os seres humanos começaram a
aparecer por aqui. Há uns 15 mil anos, as onças já existiam, mas
precisavam disputar presas com o Smilodon populator, um
dente-de-sabre ligeiramente maior que os leões de hoje. Aliás, por
favor, evite colocar a palavra “tigre” na frente do nome do
bicho: de tigre ele não tinha nada, já que descendia de um grupo
cujo parentesco com os felinos modernos é distante. No quesito
superpredadores, havia ainda ursos-de-cara-curta, parentes muito mais
parrudos e ferozes do atual urso-de-óculos, um bicho dos Andes com
cara de bonachão e meros 150 quilos. Calcula-se que uma espécie
argentina de urso-de-cara-curta do Pleistoceno pesava dez vezes
isso.
O vasto cardápio de tais carnívoros
tinha como itens mais indigestos (ou, pelo menos, mais difíceis de
fatiar) os gliptodontes, tatus de armadura arredondada e rígida com
tamanho equivalente ao de um Fusca; as macrauquênias, popularmente
comparadas a lhamas de tromba, mas sem nenhum parentesco próximo com
as lhamas de verdade; os toxodontes, que lembravam uma mistura de
rinocerontes e hipopótamos; e parentes remotos dos elefantes, os
mastodontes ou gonfotérios, donos de trombas tão sofisticadas
quanto as de seus primos de hoje da África e da Ásia. É bem
possível, aliás, que algum tipo de elefante propriamente dito,
pertencente ao mesmo gênero que a espécie indiana, tenha andado
pela Amazônia nessa época — é o que indica um único dente do
bicho achado em Rondônia alguns anos atrás.
Tamanha diversidade de mamíferos de
grande porte, com dezenas de bichos endêmicos — ou seja, que só
existem numa região específica do planeta, e em nenhum outro lugar
—, era única no mundo, superando até a da África. Uma conjunção
especialmente favorável de fatores geológicos e evolutivos explica
essa festa da biodiversidade. Em primeiro lugar, durante dezenas de
milhões de anos, a começar pela parte final da Era dos Dinossauros,
a América do Sul virou uma gigantesca ilha, separada de todos os
demais continentes pelo recém-nascido oceano Atlântico (e pelo
Pacífico também, claro). Essa separação aconteceu quando a
história dos mamíferos placentários (cujos fetos são protegidos e
nutridos por uma placenta, como os nossos) ainda estava no comecinho.
Vem daí o fato de que muitas linhagens únicas se desenvolveram do
lado de cá do oceano, como é o caso das preguiças, dos tatus, das
macrauquênias e dos toxodontes, bichos legitimamente made in
South America. Ainda não sabemos exatamente bem como, mas o
isolamento foi brevemente rompido há uns 40 milhões de anos, talvez
graças a cadeias de ilhas dispostas entre o nosso litoral e o
africano, que permitiram a chegada de alguns roedores e macacos
primitivos da África Ocidental a estas praias. Sem eles, não
teríamos capivaras, porquinhos-da-índia, micos-leões ou bugios.
Parece conversa de pescador, mas o fato é que alguns animais são
capazes de sobreviver a longas travessias oceânicas, às vezes
arrastados por tempestades em pedaços de terra flutuante. Isso é
mais fácil de acontecer com répteis, criaturas de metabolismo
naturalmente lento, que chegam a sobreviver meses sem comida ou água,
mas não é impossível com mamíferos. Nesses casos, basta que uma
única fêmea grávida sobreviva à jornada para que uma nova
população seja fundada do outro lado do oceano, e a partir daí a
evolução faz o resto do serviço.
Após a aventura da dobradinha
primatas-roedores, a megailha sul-americana passou tanto tempo
sozinha que parecia estar destinada a se deitar eternamente em berço
esplêndido, como diz o hino. Doce ilusão: forças vulcânicas
lentamente cimentavam uma ponte de terra entre nosso continente
“perdido” e a América do Norte. Os detalhes desse processo ainda
precisam ser totalmente elucidados (esta é uma frase que, devo
adverti-lo, você vai cansar de ver neste livro), mas o certo é que
a formação da superponte já estava concluída uns três milhões
de anos atrás. Do solo norte-americano veio uma torrente de
invasores: felídeos e canídeos (ou cães e gatos, se você quiser
simplificar) de todos os formatos e tamanhos, ursos, antas,
dentes-de-sabre, mastodontes, veados e cavalos — a lista está
longe de ser exaustiva. Muitas espécies endêmicas sul-americanas
sumiram nesse troca-troca maluco, provavelmente acuadas até a
extinção, mais ou menos como lojinhas do interior, desacostumadas à
competição, podem acabar indo à falência quando um hipermercado
barateiro e com grande variedade de produtos chega à cidade. Outras
formas de vida típicas do antigo continente-ilha, porém,
conseguiram transformar a crise em oportunidade e até invadiram as
terras ao norte, como é o caso das próprias preguiças-gigantes.
O Novo Mundo que se abria diante dos
olhos dos Homo sapiens pioneiros, portanto, era um mundo moldado pelo
Grande Intercâmbio Faunístico (ou GIF, se você quiser encurtar),
como ficou conhecido entre os especialistas o troca-troca de espécies
entre as duas grandes Américas — digo isso sem nenhum desrespeito
à América Central, é claro, mas acontece que esta surgiu
justamente como o corredor pelo qual os protagonistas desse processo
passavam. Colocar os olhos no Novo Mundo pela primeira vez deve ter
sido de tirar o fôlego. Embora os humanos pioneiros já tivessem
encontrado grandes felinos, cavalos e ursos em outros continentes,
nada havia de semelhante a superpreguiças ou gliptodontes fora das
Américas. É aqui que chegamos ao ponto central deste capítulo:
quem, afinal, terão sido os donos desses olhos assombrados? Como
vieram parar aqui e de que jeito viviam? E, aliás, por que a fauna
monstruosa e exuberante que encontraram acabou se escafedendo? Para
responder decentemente a essas perguntas, tudo indica que um dos
melhores caminhos é prestar atenção ao que dizem as rochas e os
fósseis achados no complexo pré-histórico onde fica a gruta
Cuvieri, a região mineira de Lagoa Santa. A história é complicada
e seu final ainda está longe de ser escrito, mas pelo menos já tem
protagonista. Trata-se de uma moça azarada de 11,5 mil anos de
idade, sem nem uma cova rasa para chamar de sua, que a posteridade
viria a apelidar de Luzia.
Reinaldo José Lopes, in 1499: o Brasil antes de Cabral
Nenhum comentário:
Postar um comentário