Deve ter sido porque eu restaurei o velho
relógio Omega do meu pai, comprado em 1950, e o relojoeiro me disse
para, pelo amor de Deus!, não andar com ele na rua. Deve ter sido
por isso, pela insistência camicase em carregar meu pai de novo
pelas ruas da cidade, preso no pulso esquerdo, justo agora que começa
o agosto da comemoração do dia dos pais.
Deve ter sido por isso, saudade e medo,
só pode ter sido, que me veio a lembrança de um tempo em que meu
pavor infantil era não o de ladrões na esquina, mas o de morrer de
corrente de ar, uma ameaça que rondava as famílias, todas com
exemplos de entes queridos mortos numa daquelas lufadas assassinas
que entravam pela porta entreaberta e, babau, lá se ia aquela prima
bonitinha.
Ninguém morre mais de corrente de ar
como no agosto da minha infância. Os meninos hoje também não têm
mais espinhela caída, não usam emplastro Sabiá no peito e ninguém
lhes aplica mais, goela abaixo, uma colherada maligna de óleo de
fígado de bacalhau para aprimorar o desenvolvimento do físico e da
memória.
Eu não estou sentindo exatamente saudade
de nada disso, mas o pensamento parece uma coisa à-toa e, quem ouviu
Lupicínio sabe, como a gente avoa quando começa a pensar. O relógio
do meu velho e querido pai, brilhando de novo pós-restauro, foi-me
puxando de volta pelo pulso e, de repente, vai entender?!, tudo ficou
com um leve gosto achocolatado de Sustincau. Será que tinha?
Hoje, quatro de agosto, é dia do padre.
Acabei de ver tamanha bobagem num desses livros de cultura inútil e
normalmente não prestaria atenção na abobrinha. Mas, sei lá, deve
ter sido por causa do tempo Omega me levando de novo até as
sensações da infância e também pela mais completa ausência de
sentimento religioso que me permeia a alma herege no momento. Deve
ter sido pelo tique-taque dessas emoções disparadas por agosto que,
ao ver a palavra padre, imediatamente me veio não o
pelo-sinal-da-santa-cruz, mas alguma voz no fundo gritando o “último
lá é mulher do padre” - aquele momento decisivo em que saía todo
mundo correndo.
O pulso, que agora me pulsa com o mesmo
relógio que antes pulsava a autoridade do pai português, sabe que o
passado visto assim do alto, e cada vez mais de longe, é um grande
mentiroso. O Vigilante Rodoviário devia ser tristíssimo. Uma
infância dividida em pêra, uva, maçã, bola ou búlica pode dar a
impressão, hoje, de recender apenas a essência do sabonete
Cinta-Azul, aquele que carregava uma pedra de água-marinha no bojo
de alguns dos seus tabletes.
Mas e a cachumba? O mertiolate? O boletim
de notas? A priminha bonitinha te dizendo “não” antes de morrer?
A saudade é acrítica e nela tudo comove. Às vezes choramos apenas
pela mais sublime e básica das sensações, a de termos sobrevivido
às correntes de ar e aos jogos da memória.
Domingo desses, já com o Omega paterno
me servindo de bússola, fui parar no Museu do Pontal, em Vargem
Grande. Eu poderia narrar alguma coisa sobre a beleza da arte popular
nacional exposta ali, esculturas geniais do mestre Vitalino. O que me
impressionou mesmo no meio de todos aqueles bonequinhos de barro foi
a reprodução de uma cena que já me tinha sumido: a brincadeira de
carniça.
Era coisa de menino suburbano. Do mesmo
jeito que as meninas não passam mais o anel, não se joga mais
carniça. Eu desmentiria se alguém dissesse que a humanidade está
desse jeito por ter abandonado a carniça. Era tudo meio estúpido,
grosso. Aos quarentões de hoje peço apenas – não vou revelar
detalhes, rapazes, ficam entre nós – peço apenas um minuto de
silêncio pelos camaradas que se entusiasmaram com o capítulo de
molhar a caneta no tinteiro e nunca mais foram os mesmos.
Às vezes eu tenho a impressão que a
saudade, por mais água-marinha que se ponha no sabonete dela, não é
essa coisa toda que a gente sente e geme “ai como era bom”. Eu
estou passeando por ela, orgulhoso do Omega do portuga me dando corda
e passando o bastão da existência, com todos os seus compromissos e
horas marcadas para entregar a crônica ao editor. Mas não consigo
dizer, por mais que o garoto da outra rua me provoque com gritos de
“tá com medo tabaréu, tua linha é de carretel”, ninguém vai
me ouvir dizer que “aquilo sim”. A nostalgia é uma velhota sem
senso de ridículo. Havia o televizinho, o Jajá da Kibon, a
maria-fumaça feita com jornal, o “que time é teu”, os cadernos
Continental com o mapa do Brasil na capa e o hino na contra. Na rua,
eu ouvia “Marraio, feridô sou rei” e em casa Amália Rodrigues
baixava a bola, pré-dark, cantando que “tudo isso existe, tudo
isso é triste, tudo isso é fado”. Havia muito mais. O resto,
felizmente, vai ficando para muito antes de antes de ontem e eu
agradeço, sem dó, sem precisar me confessar ao padre, à corrente
de ar que pegou a memória sem camisa e, babau, matou a saudade.
O passado, quanto mais passado fica,
costuma parecer restaurado, muito mais bonito, como o relógio que me
encanta agora e serve de presente involuntário no dia dos pais.
Melhor assim. O Omega veio do tempo em que Waldir Amaral gritava nos
jogos de futebol do rádio o bordão testosterona, entre Freud e
Nenen Prancha, de “O relóóóóógio maaaaarca”. Ele veio do
tempo do “Papai sabe tudo”, a série da TV Tupi. Hoje a televisão
vende a imagem do “Papai sabe xongas”. É sempre um sujeito
perplexo como o Hommer Simpson. Não acho ruim, não acho que o pai
esteja em baixa porque lhe tiraram a capa de super-homem e a
autoridade inquestionável. A família desandou, mas, por favor, o
velho não tem culpa dessa. O meu era um personagem austero, como o
relógio que deixou de herança. Quase não ria, não abraçava,
sempre resguardado nos seus negócios. De noite, os filhos pediam a
bênção antes de dormir. Tocava um fado triste na vitrola.
Se não me falha a memória, se o elixir
de inhame e o xarope de alcatrão fizeram algum efeito, eram todos
assim. O pai-herói entregou o bastão ao pai-moleque e deu a missão
por cumprida. O relógio que me vai no pulso é apenas um rito de
passagem marcando o tempo presente – e não dói.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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