sexta-feira, 21 de maio de 2021

A cartilha das abelhas

O irmão mais velho aprendeu cedo a deixar-se conduzir pelo caminhão do pai. Sem carteira de motorista, escolhia as estradas secundárias. Viajava entre buracos e tropeços, entre caminhos de depressões. Por descuidos, ultrapassava quando a faixa era contínua. Identificava a diferença entre a vela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e as velas do motor. Devia sentir um desejo imenso de degustar o vidro do para-brisas. Por vezes, ele me convidava para tomar banho juntos, na bica do quintal, debaixo da água que chegava das montanhas. Nus, arrepiados pela água gelada, eu contemplava sua presença de homem e me acusava como apenas um menino, indefeso, cheio de medo do amor e do tomate.
Sete. A irmã mais velha passou a bordar lençóis, fronhas, toalhas. Todo enxoval construído em ponto de cruz. Só tramava a primeira letra de seu nome. O noivo andava escondido em seu desejo. Não dar palavras ao desejo é ocultá-lo na solidão. No segundo tempo, e bem depois, outra letra veio abraçar o seu nome. Casou. Foi morar longe e nunca mais bordou. Ventilavam notícias de seu marido, agora, sua cruz. Desde sempre suspeitei — por recusar a certeza — que ela casara fugindo do tomate, sem considerar o amor. Ah! Vou esconder meu amor, para sempre — eu suspeitava.
Ela esfregava a roupa na pedra do tanque. Sua raiva arrancava as manchas de terra, as nódoas de bananeira, as sujeiras de carvão. Não cantava. Lastimava pela quantidade de panos, pelo gasto com o sabão, pelo desperdício das águas. Ensaboava com tamanho empenho e músculo, se esquecendo de reparar nas espumas, semelhantes aos suspiros da mãe, assados em forno brando. Seus olhos só viam o sujo. Não aprendeu — com a mulher da sombrinha vermelha — a ler na cartilha das abelhas.
Seu remédio era o canto. Recostada na cabeceira da cama, debaixo do crucifixo, a mãe exorcizava a dor. E as canções de despedidas, de amores perdidos, de momentos partidos, preenchiam o silêncio. E mudos, com os pensamentos encharcados de perguntas, os filhos escutavam os gemidos em forma de música e aprendiam a cantar. O pai, atracado na porta, sem âncoras, espiava o horizonte e respirava o cheiro do álcool, agora desinfetando a pele rugosa para doloridas injeções.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

Nenhum comentário:

Postar um comentário