segunda-feira, 17 de maio de 2021

A cartilha das abelhas

A mulher da sombrinha vermelha tinha na carne uma educação exemplar. Aprendera na cartilha das abelhas, e de um tudo só retirava o mel, eu pensava. Sua boca só existia para o açúcar. O amargo, não soube em que lugar guardava. Duvidava da existência de uma vida inteiramente doce. Ela não sabia ler cartas, mas decifrava outros enigmas: um rosto triste, uma mão vazia, uma sombra no olhar. Fazia a saia dialogar com a blusa, a jarra conversar com as flores. Compreendia a solidão que o macarrão exigia. Dia de macarronada só comia macarronada. De tudo dispensava o supérfluo. Fazia do tomate rosas para decorar o arroz, em dia de festa.
Ah! O tomate. Quanto espanto ele me suscitava. Sua presença anunciava meu exílio. Um dia, por certo, eu deveria ser deportado, mesmo sem cometer crime. Nunca supus que carregaria comigo — vida afora — a imagem do tomate maduro preso entre seus dedos. Mas não recusei, jamais, a fatia que me tocava. Minha mãe anunciava que para viver era preciso engolir sapos. Mesmo gosmentos, ásperos, enrugados, é necessário deixá-los deslizar garganta abaixo, sem lastimar. Não há semelhança aparente entre o sapo e o tomate. Um vive, o outro vegeta.
O irmão mais velho aprendeu cedo a deixar-se conduzir pelo caminhão do pai. Sem carteira de motorista, escolhia as estradas secundárias. Viajava entre buracos e tropeços, entre caminhos de depressões. Por descuidos, ultrapassava quando a faixa era contínua. Identificava a diferença entre a vela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e as velas do motor. Devia sentir um desejo imenso de degustar o vidro do para-brisas. Por vezes, ele me convidava para tomar banho juntos, na bica do quintal, debaixo da água que chegava das montanhas. Nus, arrepiados pela água gelada, eu contemplava sua presença de homem e me acusava como apenas um menino, indefeso, cheio de medo do amor e do tomate.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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