sexta-feira, 23 de abril de 2021

Moça na chuva

Chovia, não direi a potes, mas a bules de chá, e a moça disse que ia dar uma circulada por aí.
Menina, com esse tempo e com esses tamancos? — a mãe estranhou.
Ora, mammy (este vocábulo é vernáculo de longa data), chuva é genial de transar na rua, morou?
Mãe, se não concorda, pior para ela. Mesmo assim, insistiu:
Bota ao menos um sapato fechado, pra não voltar com o calcanhar sujo de lama.
Calcanhar sujo é um barato!
Riu, tchauzinho, saiu. Moça na chuva: ficam mais bonitas na chuva, ar de andorinha assustada, pula aqui, desguia ali, molha menos do que homem, até nem molha. Há quem as confunda com um raio de sol. Moça é o sol da chuva, sentenciou o poeta Brandãozinho, dezoito anos, extasiado. O pai, amadurecido, corrige:
Moça é o sol, a lua, as estrelas e tudo mais que brilha.
Pai, você, hem?
Cale a boca, juvenil, e admire a luz brincando n’água.
As ruas cariocas desmentem a falta de rios no Rio de Janeiro. Quem disse que eles foram canalizados e correm sob nossos pés, nas entranhas da terra? É à altura dos sapatos, ou mais acima, que deslizam para o mar. E tem cachoeiras quase majestosas, despencando das construções, com a colaboração dos aparelhos de ar-condicionado, que não param nunca de chover. Lagos, lagoas, lagoinhas diversificam a paisagem fluvipluvial.
Veneza!
Quem exclamou, não sei. E não foi preso. A negra floresta dos guarda-chuvas entupimento, paralelo ao do trânsito. Automóvel no asfalto, guarda-chuva no ar: quem pode? Pode a garota de tamancos altíssimos, tamanqueando, tloque tloque tloque, nem precisa cantar ó abre alas que eu quero passar, as alas abrem-se para Moisés, tloque tloque, a chuva cai com especial requinte sobre a figurinha leve, tloque, molha suave, ou nem, tloque.
Nós, os encharcados, abençoamos a moça: que prodigiosa invenção. E antiga. As mais remotas pinturas a retratam. Pode usar tamanco, botina em forma de pata de elefante, de boca de jacaré, de torneira, de pneu, do diabo-que-te-carregue, é sempre a charmantérrima, parisiense, hindu, sergipana, esquimó. Para quem sabe ver. Há quem não saiba, os infelizes.
Foi fazer compras? Compra de quê? Do colar de primeiríssima necessidade, para combinar com a blusa que ela viu na revista e não encontrou na boutique? Do biquíni para quando fizer sol, pois quando fizer sol não haverá tempo de comprar biquíni? De outro tamanco? Ou não ia comprar nada, foi o assanhamento de sair na chuva, curtir a chuva, prazer que moleque descalço tem ao máximo, e os civilizados vão esquecendo?
Chuva mansa, chuva criadeira, chuva criança, essa gostosura. Vento que não levanta saia, não há mais saias, calça comprida que modela e revela, mas defende. Aljôfar lucilando no jeans ou na seda esticada, pingos que não querem escorrer, tão bacana ficar pendentes do corpo jovem móvel ágil. Estátuas nervosas na chuva, as moças tamanqueiam, e tloque e ritmo e tloque e ploque. Foi a lugar nenhum, rodou, andorinhou, volta para casa contente de não fazer nada, apenas se inseriu no contexto fluente da chuva, tomou parte na chuva, chuvisricou.
Esse tamanco imundo em cima do tapete! Esse calcanhar não-sei-que-diga! — a mãe indignada.
Mas que graça teria a vida sem tamanco bem grosso, de dois andares, sem chuva de vez em quando? Torço para chover esta manhã, do contrário ninguém vai gostar da crônica.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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