Chovia, não direi a potes, mas a bules
de chá, e a moça disse que ia dar uma circulada por aí.
— Menina, com esse tempo e com esses
tamancos? — a mãe estranhou.
— Ora, mammy (este vocábulo é
vernáculo de longa data), chuva é genial de transar na rua, morou?
Mãe, se não concorda, pior para ela.
Mesmo assim, insistiu:
— Bota ao menos um sapato fechado, pra
não voltar com o calcanhar sujo de lama.
— Calcanhar sujo é um barato!
Riu, tchauzinho, saiu. Moça na chuva:
ficam mais bonitas na chuva, ar de andorinha assustada, pula aqui,
desguia ali, molha menos do que homem, até nem molha. Há quem as
confunda com um raio de sol. Moça é o sol da chuva, sentenciou o
poeta Brandãozinho, dezoito anos, extasiado. O pai, amadurecido,
corrige:
— Moça é o sol, a lua, as estrelas e
tudo mais que brilha.
— Pai, você, hem?
— Cale a boca, juvenil, e admire a luz
brincando n’água.
As ruas cariocas desmentem a falta de
rios no Rio de Janeiro. Quem disse que eles foram canalizados e
correm sob nossos pés, nas entranhas da terra? É à altura dos
sapatos, ou mais acima, que deslizam para o mar. E tem cachoeiras
quase majestosas, despencando das construções, com a colaboração
dos aparelhos de ar-condicionado, que não param nunca de chover.
Lagos, lagoas, lagoinhas diversificam a paisagem fluvipluvial.
— Veneza!
Quem exclamou, não sei. E não foi
preso. A negra floresta dos guarda-chuvas entupimento, paralelo ao do
trânsito. Automóvel no asfalto, guarda-chuva no ar: quem pode? Pode
a garota de tamancos altíssimos, tamanqueando, tloque tloque tloque,
nem precisa cantar ó abre alas que eu quero passar, as alas abrem-se
para Moisés, tloque tloque, a chuva cai com especial requinte sobre
a figurinha leve, tloque, molha suave, ou nem, tloque.
Nós, os encharcados, abençoamos a moça:
que prodigiosa invenção. E antiga. As mais remotas pinturas a
retratam. Pode usar tamanco, botina em forma de pata de elefante, de
boca de jacaré, de torneira, de pneu, do diabo-que-te-carregue, é
sempre a charmantérrima, parisiense, hindu, sergipana, esquimó.
Para quem sabe ver. Há quem não saiba, os infelizes.
Foi fazer compras? Compra de quê? Do
colar de primeiríssima necessidade, para combinar com a blusa que
ela viu na revista e não encontrou na boutique? Do biquíni para
quando fizer sol, pois quando fizer sol não haverá tempo de comprar
biquíni? De outro tamanco? Ou não ia comprar nada, foi o
assanhamento de sair na chuva, curtir a chuva, prazer que moleque
descalço tem ao máximo, e os civilizados vão esquecendo?
Chuva mansa, chuva criadeira, chuva
criança, essa gostosura. Vento que não levanta saia, não há mais
saias, calça comprida que modela e revela, mas defende. Aljôfar
lucilando no jeans ou na seda esticada, pingos que não querem
escorrer, tão bacana ficar pendentes do corpo jovem móvel ágil.
Estátuas nervosas na chuva, as moças tamanqueiam, e tloque e ritmo
e tloque e ploque. Foi a lugar nenhum, rodou, andorinhou, volta para
casa contente de não fazer nada, apenas se inseriu no contexto
fluente da chuva, tomou parte na chuva, chuvisricou.
— Esse tamanco imundo em cima do
tapete! Esse calcanhar não-sei-que-diga! — a mãe indignada.
Mas que graça teria a vida sem tamanco
bem grosso, de dois andares, sem chuva de vez em quando? Torço para
chover esta manhã, do contrário ninguém vai gostar da crônica.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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