sexta-feira, 23 de abril de 2021

Henry James, Daisy Miller

 


Daisy Miller saiu em revista em 1878 e, como livro, em 1879. Foi uma das raras narrativas (talvez a única) de Henry James da qual se pode dizer que teve logo um sucesso popular. Certamente na sua obra, toda ela sob o signo da evasiva, do não dito, de um esquivar-se contínuo, ele se apresenta como um dos textos mais claros, com uma personagem de moça cheia de vida, que explicitamente aspira a simbolizar a falta de preconceitos e a inocência da jovem América. Contudo, é um conto não menos misterioso que outros desse autor introvertido, inteiramente tecido como é pelos temas que se apresentam, sempre entre sombra e luz, ao longo de toda a obra.
Como muitos dos contos e romances de James, Daisy Miller se passa na Europa, e a Europa é também aqui pedra de toque com que a América se confronta. Uma América reduzida a um specimen sintético: a colônia dos felizes turistas norte-americanos na Suíça e em Roma, aquele mundo ao qual Henry James pertenceu nos anos da juventude, de costas para a terra nativa e antes de se enraizar na ancestral pátria britânica.
Distanciados da própria sociedade e das razões práticas que ditam as normas do comportamento, imersos numa Europa que representa tanto uma sugestão de cultura e nobreza quanto um mundo promíscuo e meio infecto do qual convém manter distância, esses americanos de James são prisioneiros de uma insegurança que os faz redobrar a severidade puritana, a salvaguarda das conveniências. Winterbourne, o jovem americano que estuda na Suíça, está destinado — palavras de sua tia — a cometer erros porque vive na Europa há muito tempo e não sabe mais distinguir os patriotas “de bem” dos de baixa extração. Mas essa incerteza sobre a própria identidade social é de todos eles — esses exilados voluntários em que James se espelha —, sejam rigoristas (stiff ) ou emancipados. O rigorismo — americano ou europeu — é representado pela tia de Winterbourne, que não por acaso decidiu morar na Genebra calvinista, e por mrs. Walker, que é um pouco a contrapartida da tia, imersa na mais indolente atmosfera romana. Os emancipados são a família Miller, expeditamente à deriva numa peregrinação europeia imposta a eles como dever cultural inerente ao seu status: uma América provinciana, talvez de novos milionários de origem plebeia, exemplificada em três personagens, mãe meio acabada, rapazote petulante e bela moça que, forte somente com sua barbárie e espontaneidade vital, é a única que consegue realizar-se como personalidade moral autônoma, construindo-se alguma liberdade embora precária.
Winterbourne percebe tudo isso, mas boa parte dele (e de James) é subserviente aos tabus sociais e ao espírito de casta, e sobretudo boa parte dele (e James por inteiro) tem medo da vida (leia-se: das mulheres). Não obstante, no princípio e no fim, seja feita referência a uma relação do jovem com uma dama estrangeira de Genebra, bem no meio da novela o medo de Winterbourne perante a perspectiva de um verdadeiro confronto com o outro sexo é claramente explicitado; e na personagem podemos reconhecer um autorretrato juvenil de Henry James e da sua nunca desmentida sexofobia.
Aquela indefinida presença que era para James o “mal” — vagamente relacionada com a sexualidade pecaminosa ou mais visivelmente representada pela ruptura de uma barreira de classe — exerce sobre ele um horror misturado com atração. O ânimo de Winterbourne — isto é, aquela construção sintática feita de hesitações, adiamentos e autoironia, característica das paisagens introspectivas de James — acha-se dividido: uma parte dele confia ardentemente na “inocência” de Daisy para decidir-se a admitir estar enamorado (e será a prova post-mortem dessa inocência que o reconciliará com ela, hipócrita que é), ao passo que a outra parte de si mesmo espera reconhecer nela uma criatura degradada e inferior, com a qual é lícito “faltar ao respeito”. (E isso não parece de fato ser motivado pelo impulso dele em “faltar-lhe com o respeito”, mas talvez só pela satisfação em pensá-la como tal.)
O mundo do “mal” que disputa a alma de Daisy é representado primeiro pelo mordomo Eugenio, depois pelo valente senhor Giovanelli, romano, caçador de dotes, ou melhor, por toda a cidade de Roma, com seus mármores, musgos e miasmas portadores de malária. O pior veneno das intrigas com que os americanos da Europa castigam a família Miller é uma alusão contínua e obscura ao mordomo que viaja com eles e que — na ausência de mr. Miller — exerce uma autoridade não bem definida sobre mãe e filha. Os leitores de A outra volta do parafuso sabem quanto o mundo dos empregados domésticos pode encarnar para James a presença informe do “mal”. Mas esse mordomo (o termo inglês é mais preciso e não tem um correspondente italiano: courier, isto é, o serviçal que acompanha os patrões nas grandes viagens e a quem cabe a organização de seus deslocamentos e estadas) poderia ser também exatamente o oposto (pelo pouco que se vê), ou seja, o único na família que representa a autoridade moral paterna e o respeito pelas conveniências. O sacrilégio talvez consista justamente só nisso: em ter substituído a imagem do pai pela de um homem de classe inferior. Já o fato de ter um nome italiano prepara para o pior: veremos que a permanência na Itália da família Miller não passa de uma descida aos infernos (igualmente letal embora menos fatal que a do professor Aschenbach em Veneza, no conto que Thomas Mann escreverá 35 anos depois).
À diferença da Suíça, Roma não pode inspirar autocontrole às jovens americanas só com a força da paisagem, das tradições protestantes e da sociedade austera. O passeio das carruagens pelo Pincio é um turbilhão de intrigas em meio ao qual não se sabe se a honra das moças americanas deve ser salvaguardada para não se fazer má figura com marqueses e condes romanos (as herdeiras do Middle West começam a ambicionar os brasões) ou para não se atolar no pântano da promiscuidade com uma raça inferior. Essa presença de um perigo, mais ainda que no cerimonioso senhor Giovanelli (que também ele, como Eugenio, poderia ser uma garantia da virtude de Daisy, se não fosse pelas origens obscuras), se identifica numa personagem muda, mas nem por isso menos determinante no mecanismo da narrativa: a malária.
Sobre a Roma do século XIX caem à noite as exalações mortíferas dos pântanos circundantes: eis o “perigo”, alegoria de qualquer outro perigo possível, a febre perniciosa pronta a ceifar as moças que saem à noite sozinhas ou mal acompanhadas. (Ao passo que andar de barco nas assépticas águas do Lemano não teria apresentado tais riscos.) À malária, obscura divindade mediterrânea, é sacrificada Daisy Miller, a quem nem o puritanismo dos compatriotas nem o paganismo dos nativos haviam conseguido dobrar, e que justamente por isso é condenada, por todos, ao holocausto bem no meio do Coliseu, onde os miasmas noturnos se adensam envolventes e impalpáveis como as frases nas quais James parece sempre prestes a dizer algo que não diz.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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