Outro dia, fulano ia pela calçada…
Minto. Evidentemente, não ia pela
calçada, lugar por onde não se vai nem vem, a menos que se possua
carro, e esta utilidade não figura em sua declaração de bens ao
Imposto de Renda.
Fulano ia pois pela rua, lugar hoje mais
propício ao pedestre…
Outra mentira. Como se a rua houvesse
tomado o papel da calçada, depois que a calçada tomou o papel da
rua. Ora, todos sabemos que calçada e rua são a mesma coisa, na
cidade moderna, e essa coisa é defesa ao cidadão imotorizado.
Portanto, Fulano não ia por lugar algum,
mas este é outro beliscão à verdade, pois dessa ou daquela
maneira, sem ser em terra ou no ar, não se sabe como, nem adianta
saber, as pessoas continuam indo, andando, providenciando, vivendo.
Milagre dos tempos. Eu vou, tu vais, ele
vai. Não há lugar para ninguém, fora de casa; contudo, inventamos
lugar — inventar é a solução — e seguimos para nossos
negócios, nossos amores, nossas vadiações, nosso tudo e mais
alguma coisa.
Ia portanto Fulano — e peço que não
me interrompam mais, isto é, peço a mim mesmo para não me
interromper, pois estou cansado de começar e recomeçar retificando
os arranhões à verdade, lei suprema da vida. Suprema? Ora, eis-me
de novo mentindo e, o que é mais grave, mentindo em homenagem à
verdade, para atribuir-lhe supremacia que nunca teve entre os homens.
Já me perturbo e, francamente, não sei
como continuar, se apenas comecei e nem sequer este começo está
assentado em terreno sólido, o terreno das afirmações
indiscutíveis. Bem sei que Fulano é algo insofismável em sua
realidade física; sei perfeitamente que ele ia de qualquer maneira,
outro dia, a algum fim dele sabido e que não interessa investigar.
Ou interessa? Será um conspirador contra as instituições, ele que
toda a vida conheci morigerado, temente a Deus e ao governo,
cumpridor de deveres e partidário da conciliação universal? Será
que ultimamente…?
Sim, que ia ele fazer aquele dia, pois
alguma coisa na certa ia fazer, e quem me garante que não mentira a
vida inteira para mim, para o Imposto de Renda em particular e para
as nações em geral? Não seria ele um dos agentes de Watergate,
espião universal, disfarçado na modesta epiderme fulânica, para
insinuar-se em meu bairro, onde não há segredos de Estado, e
precisamente aí detectá-los, pois os segredos estão onde não
podiam estar, e onde são encontrados é onde nunca estiveram
ocultos?
Quem diria, hem? Conhecia-o há tantos
anos, tanto chope bebemos juntos, e no fundo do chope estava a
verdade. F-07, agente multinacional, infiltrado no coração da minha
confiança. Sabia mentir, o safado. Ou fui eu que, suspeitando de sua
dobrez, de resto sem o mínimo indício, ou por isso mesmo, pus-me a
fantasiá-lo assim. Menti, supondo que talvez me mentisse. Resta-lhe
o direito de mentir por sua vez, acusando-me de ladrão do cofre das
almas na igreja do Carmo, que para assaltante de supermercado não
dou, seria mentira demais. Sinto-me inerme, às mãos de Fulano, que
tem o direito de atribuir-me as piores coisas, os atos mais
estranhos, numerados ou não, as ações cometidas e as simplesmente
pensadas, que são as mais graves de todas. Até o ponto de eu
dizer-lhe: “Chega. Pois isto que acabas de dizer a meu respeito
infelizmente é verdade, e sei lá o que descobrirás depois”.
Paro aqui. Não direi que ele se dirigia
ao Colégio Eleitoral, ou ao cursinho prévio para habilitar-se ao
vestibular do dito Colégio, nem se existem vagas nesse
estabelecimento e se o currículo estimula as competências. O que
foi fazer Fulano outro dia, não há mais espaço, nem na calçada
nem na rua nem no papel, para narrá-lo ou adivinhá-lo. Esta é que
é a verdade.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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